quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Villa Cardillio 12. Árvore do Desejo

Anónimo Romano, Fresco que representa un jardín, Casa de Livia, Roma

12. ÁRVORE DO DESEJO

Habitaram mulheres a pedra da casa
e nelas ferozes dedos o silêncio ecoaram.
Ramos de flores vinham pela Primavera
e se um amante descuidado chegava,
rodeado de vento, rosas e anáforas,
rodeado pelo zinabre do cansaço,
elas abriam os braços para a noite
e colhiam sem pressa da árvore do desejo
o fruto que o Estio tinha demorado.

1979

Ensaio sobre a luz (53)

Barend Arendsen, Winter in Holland, c1910

A luz trémula e lívida, cercada pela invernia, hesita e desliza sobre um mundo de espectros, corpos envoltos em grandes lençóis de sombra e solidão.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Mathias Enard, Bússola


Bússola, o sexto romance do francês Mathias Enard, prémio Goncourt de 2015, é uma obra que está colocada sob o signo do desconcerto. Este manifesta-se nas duas coordenadas essenciais da obra. A insónia e a bússola que em vez do Norte aponta o Leste, o Oriente. É neste enquadramento que Franz Ritter, um musicólogo de Viena, fascinado pelo Oriente, por Sarah, uma orientalista deambulante, e temeroso das opiniões da mãe e dos resultados que estão para vir de uns exames médicos, se vai entregar a um longo exercício de rememoração da sua vida e dos seus interesse. Esta rememoração – é sempre difícil fugir à tutela literária de Platão – é um questionamento sobre a verdade das relações entre o Ocidente e o Oriente, entre nós e o outro.

Estar num estado insone é encontrar-se em plena perturbação. Esta perturbação é marcada por uma ambiguidade. Por um lado, o estado vígil parece trazer uma grande lucidez racional ao espírito. Há na insónia uma racionalidade hiperbólica. Por outro lado, aquilo que alimenta a insónia é a impossibilidade de dominar razoavelmente os pensamentos, que se atropelam numa associação incontrolável. É este o estado de Franz Ritter, perturbado e em pleno desconcerto. Franz Ritter, porém, é a imagem do Ocidente actual, da sua perturbação e desconcerto. Um Ocidente que sofre de uma hipertrofia da razão e que, por isso mesmo, perdeu a razoabilidade e o controlo de si e da sua vida.

É neste estado que, entre as 23:00 e talvez as 7:00 da manhã seguinte, as relações do Ocidente e do Oriente são revisitadas. Revisitadas nas histórias de orientalistas e aventureiros que se deixam seduzir pelos países muçulmanos – da Síria à Pérsia – e por lá encontram, entre o triunfo e a morte, a razão de viver, mas também na dívida que a música – a grande música erudita – e a literatura ocidentais terão para com esse Oriente. O Oriente será então esse outro que está em nós e nos constitui. Contra a construção do muçulmano – a partir da experiência do terrorismo e dos acontecimentos dos últimos tempos – como um outro radicalmente diferente, Mathias Enard aposta, através do exercício de rememoração de Ritter, na suposição de construções identitárias fluidas, onde as contaminações são o essencial. Contra os muros da ideologia, o autor joga, segundo o próprio, a carta das pontes que ligam o que parece separado e diferente.

Esta intenção é corroborada por entrevistas de Enard. A questão, porém, é que as obras, ao serem publicadas, fogem ao autor. Este passa a ser um leitor entre outros dessas obras e a sua leitura, até porque enviesada, não possui mais autoridade que qualquer outra. Na verdade, esta apologia das pontes e da contaminação é colocada sob o signo do estado perturbado da insónia. Ela é o resultada de uma falência fisiológica. Ritter delira acordado. O próprio carácter da personagem – a sua dependência da opinião maternal, a sua timidez erótica, a sua fragilidade perante o médico – têm um efeito deletério em relação à intencionalidade explícita do autor. Há nele um excesso de desejo a que não corresponde uma vontade capaz de realizar o desejo. Efectivamente, ele é impotente para construir qualquer ponte, como se compreende da sua relação amorosa com Sarah.

Este desconcerto é acentuado com a história da bússola, uma lembrança oferecida por Sarah ao musicólogo insone. Esta é duplamente desconcertante. Desconcerta porque aponta o Leste e não o Norte. Este desconcerto, porém, é fruto de um outro. É causado por um truque na construção da bússola, onde a agulha magnética está oculta sob o mostrador, estando visível uma agulha falsa acoplada à primeira de tal forma que quando a agulha invisível aponta o Norte a que se vê aponta o Leste. A metáfora da bússola mostra-se assim mais complexa do que parece. O que ela nos diz é que toda essa atracção dos ocidentais pelo Oriente, toda a construção de pontes e de identidades fluidas fruto da contaminação, tudo isso é resultado de um truque, de um engano, de uma falsificação. Mais do que a grande erudição invocada pelo autor – Pessoa, por exemplo, é visita frequente – ou as descrições desse Oriente, o que fará a fortuna do romance de Mathias Enard será o desconcerto entre a intenção proclamada pelo autor e o poder de a contrariar que as metáforas usadas – a insónia e a bússola – possuem na economia narrativa. Talvez um autor nunca devesse abrir a boca sobre a obra que produz. Talvez.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Sonhos numa noite de Verão 14

Alfred Eisenstaedt, Richard Schafer studying complicated formula on blackboard, 1947

O sono devia ter sido bastante agitado. Primeiro, fugi de um labirinto onde um touro me perseguia. Não havia qualquer fio de Ariadne e ter saído de lá foi pura sorte. Chegado ao ar livre, sinto-me empurrado para dentro de um grande edifício. Não havia nele qualquer decoração. Vagueei por ali perdido até que uma mão me conduziu para dentro de uma sala. Sentei-me diante de um quadro negro, preenchido por uma fórmula algébrica. Eu não sabia álgebra mas tinha de a decifrar e resolvê-la. Suava mais que no labirinto ao fugir do touro. Talvez o touro se tivesse tornado numa fórmula. Não quero saber disto. Gritei, impotente. Uma voz suave respondeu: não tens outro remédio. É a equação da tua vida. Acordei ao som do meu nome.

domingo, 24 de fevereiro de 2019

Remodelação, Bloco, Greves e Exames


1. REMODELAÇÃO DO GOVERNO. A importância da remodelação do governo ocorrida no início da semana é, do ponto de vista da orientação política, tendencialmente nula. No entanto, ela é da máxima importância para o futuro do Partido Socialista. Dela ressaltam três nomes que merecem atenção e que, por certo, irão desempenhar um importante papel na vida política portuguesa. Pedro Marques que deixa de ser ministro e é o candidato dos socialistas ao parlamento Europeu. Pedro Nuno Santos e Mariana Vieira da Silva que sobem de secretários de Estado a ministros. Todos eles com excelente preparação e não menor ambição política.

2. BLOCO DE ESQUERDA. A dissidência de vinte e seis militantes do BE e a respectiva justificação vieram confirmar aquilo que toda a gente sabia. O Bloco não é, apesar de alguma retórica, um partido revolucionário. Desde o início do projecto que ele representa a social-democratização de antigos trotskistas, estalinistas e maoistas, uma forma da sua integração no sistema político nacional. E isto não é tanto uma traição aos velhos ideais, mas a confissão de que eles não fazem sentido nos dias de hoje. O Bloco de Esquerda representa o triunfo do princípio de realidade sobre o princípio do prazer (esse grande orgasmo que se espera que a revolução seja). E foi em nome da recusa da realidade que os militantes dissidentes bateram com a porta.

3. GREVES NA FUNÇÃO PÚBLICA. Em ano eleitoral o governo enfrenta uma terrível onda de greves. A ideia dos grupos grevistas parece ser dobrar o governo às suas reivindicações para evitar o desgaste político que essas greves implicam. O governo tem resistido e os grevistas têm replicado com furor. Quem tem razão? Ambos. O governo tem razão pois o Estado não tem dinheiro para responder às reivindicações dos seus funcionários. Os funcionários têm razão porque é inexplicável a imoralidade do poço por onde corre o dinheiro público, desde as PPP aos sucessivos e intermináveis resgates à banca. As greves actuais da função pública são também o retrato do desastre da gestão da República nas últimas décadas.

4. EXAMES E RANKINGS. Saíram os rankings dos exames nacionais, o que por norma é motivo de grandes equívocos e de enorme excitação. O Público foi uma imagem de tudo isso, mas uma imagem cruel. Enquanto havia artigos onde as escolas com melhores resultados se mostravam ufanas, um estudo muito consistente de duas universitárias do Porto mostrava uma coisa terrível. Os alunos que pertencem às escolas – privadas mas também públicas – com melhores resultados nos exames têm piores desempenhos na Universidade. Sim leitor, leu bem: piores resultados. O mundo é cruel.

[A minha crónica no Jornal Torrejano]

sábado, 23 de fevereiro de 2019

Villa Cardillio 11. Os dias de Avita

Anónimo romano, Cabeza de la inicadora sedente, Villa de los Misterios. Pompeya


11. Os dias de Avita

Sentada, Avita distribui o pão.
Parcas migalhas escorrem
pelas mãos e abrem-se à luz
dos mitos, ao terror dos segredos.

Aos ombros, leva pesado encargo.
A voz da terra à luz do meio dia,
a voz que ressoa na Primavera,
a rosa que ondula no horizonte.

No silêncio demorado do Estio,
brilham no bragal dos seus braços
rios, astros, terras de sangue,
ondas podadas ao azul do mar.

1979

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Arnaldo Matos


Morreu Arnaldo Matos. O fundador do MRPP (Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado) foi uma personagem destacada nos anos conturbados de 1974 e 1975. Não que o seu partido - uma organização maoista construída a partir de estudantes universitários - tenha alguma vez tido qualquer peso eleitoral. No entanto, a sua retórica radical e tonitruante, aliada à origem social dos seus militantes, acabou por ter acolhimento nos mass media da época e faz plenamente parte do folclore que envolveu a intensa luta política que se travou no país. Arnaldo Matos, um advogado madeirense radicado em Lisboa, foi responsável por muita dessa retórica, que enfeitou com uma tropologia rica, fundada num imaginário proveniente da mitologia comunista de inspiração leninista, estalinista e maoista, a qual nunca deixou de enfurecer os seus adversários - a começar pelos social-fascistas (MRPP, dixit) de vários matizes, isto é, o PCP e todos os grupos de extrema-esquerda que não o próprio MRPP - e fez sorrir os que, à direita dos comunistas, acabavam por acolher aquele palavreado trovejante com bonomia, sabendo que dali não vinha mal ao mundo. Com a morte do grande dirigente e educador do proletariado português - era assim que o partido o apresentava - desaparece mais um protagonista daqueles anos quentes. É o fim simbólico de algo que já acabou há muito, aquele tipo de retórica política com a sua grandiloquência, e que muita gente nunca conheceu ou não tem idade para se lembrar. 

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Ensaio sobre a luz (52)

Ezra Stoller, Inside view of Guggenheim museum designed by Frank Lloyd Wright, New York, ca. 1959

Uma luz discreta poisa sobre os espectadores, traça-lhes um perfil e ilumina-os até que se tornem um esboço de carvão, o anúncio das trevas, um rasto de desejo na vertigem da solidão.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Lars Gustafsson, A Amante Colombiana


Editado na Suécia em 1996, o romance A Amante Colombiana, de Lars Gustafsson (1936 – 2016) é uma crónica do novo mundo aberto por dois fenómenos concomitantes: a queda do Muro de Berlim, símbolo do fim da experiência do socialismo real, e a globalização. Dick Olsson, a personagem central da obra, é um consultor reputadíssimo na área da publicidade. A pequena dimensão do romance – 160 páginas na tradução portuguesa – não obsta a que sejam tratados narrativamente um conjunto diversificado de temas, que acabam por traçar uma visão do mundo que se começava a desenhar naquela época aos olhos da população dos países ocidentais.

Dick Olsson faz parte daquele grupo de pessoas que vive constantemente em viagem. Os aeroportos são uma espécie de segunda casa. A personagem é um exemplar daquilo que, mais tarde, o sociólogo polaco Zygmunt Bauman irá referir como elite nómada, contraposta, num mundo líquido, a uma espécie de plebe gregária. Ele possui várias casas, a principal em Austin, no Texas. Na verdade, é um emigrante sueco nos EUA, mas um emigrante muito especial, pois antes de se instalar ali, vindo da Suécia, já pertencia a essa nova elite que se estava a apoderar do mundo. Em contrapartida, a mulher colombiana referida no título da tradução portuguesa também é uma emigrante, mas não pertence à elite nómada. Pertence à plebe que entra clandestina nos EUA para trabalhar por baixos salários. Eleonora, era assim que Olsson lhe chamava embora o seu nome fosse Lucrezia, era mulher-a-dias, que vivia sem papéis e no terror de ser deportada. E como mulher-a-dias foi contratada por Olsson. O livro retrata assim dois tipos de nomadismo, com aceitação social e política radicalmente oposta.

A partir da existência de Olsson, o autor mostra-nos a desagregação da família. Quando ele recebe a notícia da morte da mãe, confronta-se com o seu afastamento e a estranheza que sentia perante ela. Essa estranheza não é diferente daquela que conduziu a que a sua mulher se separasse dele, ou a que levava a que não visse o filho há dez anos. O mundo nómada não é o lugar da família, nem de laços fortes e significativos. É composto por mónadas que estabelecem relações circunstanciais movidas pelos interesses próprios. E estes interesses próprios – ganhar muito dinheiro ou afirmar um certo poder – encontram na publicidade um mundo amoral. O publicitário tanto pode organizar uma campanha para tornar visível um grupo independentista da Transdniéstria ou outra para ajudar uma tabaqueira a combater o péssimo acto de deixar de fumar. No mundo nómada das elites, a moral sucumbiu ao peso da legalidade positiva, na qual se esteia o interesse individual. E é esta cultura que permite perceber o desagrado do protagonista com o modo de vida sueco, tão submetido às imposições da velha social-democracia e aos laços impostos pelo sindicalismo.

É neste horizonte social que se vão aproximar, tal como Olsson costuma fazer na publicidade com as ideias, dois mundos sem contacto entre si. O rico consultor de publicidade de origem europeia e a pobre e clandestina mulher-a-dias colombiana. Ela com os seus traços de índia nem sequer é bonita, mas ele sente-se atraído por ela, pelo seu cheiro. Ele reflecte sobre os perigos de se enredar naquela relação, nas exigências que ela poderá vir a fazer, mas a atracção é mais forte que o cálculo. Desta relação há dois pontos centrais no processo de humanização das personagens. Um diz respeito à primeira vez em que fazem amor e em que ele lhe faz notar que ela não é virgem, e ela responde-lhe que ele – o senhor Dick – é o primeiro homem que a toca. Ele não percebe o que ela quer dizer. O mistério deste primeiro toque é a revelação da humanidade de Eleonora. O segundo ponto central diz respeito a ele e combina a emergência de uma dor, a da falta dela numa viagem que faz à Europa para enterrar a mãe, e a sensação sentida de ter perdido a alma. A dor e a sensação de perda da alma são o sintoma de que a sua humanidade ainda pode emergir por debaixo da máscara social que adoptou para reger a sua existência. O amor surge então como a possibilidade – uma mera e remota possibilidade – de arrancar os seres humanos presos à esquadria social que habitam e tornarem-se seres humanos reais.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Alma Pátria - 48: Tino Flores, O Povo em Armas Esmagará a Burguesia



A vida simples a que a ditadura tentava submeter os portugueses tinha o condão de gerar também respostas simples, uma espécie de reflexo condicionado que respondia com vermelho à simplicidade do negro. Tino Flores é um dos cantores de intervenção que estava, na altura do 25 de Abril de 1974, exilado em França. É de lá que lança estes panfletos acompanhados por música. O título do single é sintomático: O Povo em Armas Esmagará a Burguesia (1973). Na alma da pátria daquele tempo não havia só fado, nacional cançonetismo ou canções de intervenção com relativa sofisticação. Hoje em dia custa a crer que este tipo de canção tenha tido significado para uma geração de jovens. Seja como for, o povo não pegou em armas, nem a burguesia foi esmagada. Os exilados voltaram, o tempo passou e foi tudo.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Villa Cardillio 10. Augúrio

Anónimo Romano, Mosaico del perro guardián, Pompeya

10. AUGÚRIO

Cardílio atiçou os cães
presos ao andaime do dia.
Ouviu a raiva ladrar
na pulsação da memória.
Era um augúrio, um eco
de folhas no frio do Inverno,
a escarpa viva do medo,
prelúdio, sombra e solidão.

1979

domingo, 17 de fevereiro de 2019

Ensino privado? Bons resultados em exame?

Voul Papaioannou, Boys playing in the schoolyard, Pireus, c.1945

Este estudo do Público sobre o desempenho dos alunos nos exames nacionais e o posterior desempenho na primeiro ano da universidade, efectuado por uma professora da Católica Porto Business School e outra da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, pode passar despercebido devido à agitação que os rankings dos exames nacionais introduzem entre as pessoas que se interessam pela educação em Portugal. Os resultados do estudo não são propriamente uma novidade e reforçam estudos anteriores da Universidade do Porto.

Fica patente que as classificações obtidas em exame não correspondem ao desempenho posterior dos alunos nas universidades. Duas ideias parecem claras nos estudos estatísticos efectuados. Os alunos do ensino privado têm melhores resultados em exame, mas são os que vêm do ensino público que obtém mais sucesso no primeiro ano da faculdade. O segundo efeito surpreendente  mostra que os alunos que vêm de escolas secundárias – privadas ou públicas, embora com maior relevância nas privadas – com maiores médias nos exames nacionais têm desempenhos inferiores aos alunos que vêm de escolas secundárias com médias de exame mais baixas.

Se noutras universidades os dados forem idênticos, então duas crenças que têm animado o debate na educação nas últimas décadas estão erradas. A primeira crença é a da superioridade do ensino privado sobre o ensino público, tal como é atestado pelos rankings. O desempenho dos alunos no ensino superior desmente essa superioridade. A segunda crença é a do papel do exame nacional do ensino secundário no reconhecimento do mérito dos alunos e da consequente justiça na selecção para entrada nas universidades. Os resultados parecem apontar para um efeito de protecção, através dos exames, das elites sociais em detrimento do mérito real dos alunos.

Caso estes estudos recebam novas corroborações, repito, os exames, que não são capazes de prever de forma claramente positiva o desempenho dos alunos na universidade, estão a servir para proteger alunos, por norma provenientes do ensino privado ou de escolas públicas frequentadas pela elite social, que são inferiores aos alunos de escolas secundárias com resultados inferiores nos exames nacionais. Este trabalho das Professoras Conceição Silva e Ana Camanho, pela importância dos resultados a que chegou, precisa de ser ampliado e replicado noutras universidades, para se compreender a profundidade do problema e corroborar ou não as conclusões que mostram que o país está a seleccionar mal os seus recursos para a frequência do ensino superior e, assim, a cometer graves injustiças na distribuição de um bem raro.

sábado, 16 de fevereiro de 2019

Arnaldo Gama, A Caldeira de Pêro Botelho


Desde o século XIX que no romance moderno português existe uma dupla linhagem. A do romance de actualidade e a do romance histórico. Este último encontra entre os seus cultores Alexandre Herculano e Almeida Garrett. Há no entanto um conjunto de escritores de segunda linha – isto é, que não atingiram a canonização de Herculano, Garrett, Camilo, Eça e mesmo de Júlio Dinis – que cultivaram o género e que terão tido uma influência efectiva na sociedade de então, continuando a ser lidos ainda no século XX. Uma dessas figuras foi o escritor portuense Arnaldo Gama (1828 – 1869), que se pode inscrever no segundo romantismo. O romance A Caldeira de Pêro Botelho (1866) foi a última obra publicada em vida do autor.

O tempo romanesco é o de Luís de Camões e a narrativa cobre acontecimentos que se desenrolam em Coimbra, na Madeira e, no epílogo, passados trinta e sete anos dos acontecimentos centrais, em Lisboa, o que permite ao autor fornecer aos leitores uma visão completa do desenlace dos acontecimentos. Uma questão de amor – os amores contrariados de D. Beatriz de Moura, uma nobre coimbrã, e de Diogo Botelho, um aristocrata madeirense – abre o caminho para um conjunto de aventuras, em que participam os amigos de Diogo Botelho, Luís Vaz de Camões e Simão de Ornelas, então estudantes em Coimbra. Posteriormente, o centro da acção, já sem a presença de Camões, transita para a Madeira onde se conhece o desenlace dos amores entre Beatriz e Diogo, envolvidos em novas aventuras e desventuras.

Uma literatura de entretenimento, para usar uma palavra hoje em voga? Sim e não. Sim, porque o conjunto de peripécias mantém o leitor comprometido com a leitura. Não, porque há uma intenção didáctica, uma visão moral do mundo e uma reflexão sobre aspectos da própria literatura, isto é, uma espécie de considerações meta-literárias que o autor partilha com os leitores. Estamos longe de uma obra que queira pura e simplesmente ajudar o leitor da classe média da época a enfrentar o tédio da vida burguesa, oferecendo-lhe uma narrativa de capa e espada.

Do ponto de vista didáctico, há uma espécie de trabalho de historiador que procura dar a conhecer, a um leitor que vive três séculos depois, como era vida dos universitários de Coimbra no século XVI, bem como alguns aspectos da vida das famílias mais poderosas da Madeira ou algumas vicissitudes pelas quais a população do arquipélago passava devido à sua situação geográfica. Percebe-se também como os poderes fácticos se sobrepunham à justiça, a qual é mostrada como uma espécie de joguete entre os poderes rivais. Este didactismo residirá na ilusão de que aquilo que História não consegue fazer – transportar-nos para o passado – a imaginação literária terá o poder de o fazer, ao mergulhar-nos nas vidas e acções das personagens romanescas.

Considerando que as personagens pertencem a famílias aristocráticas, o problema da honra é central na questão moral. O bem e o mal são aferidos a partir de questões de honra, tendo esta o papel, juntamente com o amor e o desejo erótico, de desencadear as acções dos protagonistas. No entanto, o desenlace e o destino das várias personagens acaba por representar uma reflexão tingida pelo cepticismo, como se as visões do mundo e da vida que os homens acalentam e a que dão tanta importância não passassem, como é dito no Eclesiastes, de vaidade de vaidades. É tudo vaidade. Os destinos dos protagonistas – e onde se incluiu a morte de Camões na miséria – confirmam que a vaidade humana acabará por ser castigada pela própria vida e que os projectos que os homens desenham, e pelos quais lutam, não passam de ilusões que a realidade acabará por reduzir a pó. Esta visão moral do mundo é solidária das reflexões meta-literárias que o autor introduz no romance. A dada altura diz que os seus romances não têm heróis e esse é o problema deles, mas ele não vê razões para os criar, pois está interessado na realidade. E a realidade reside no destino sombrio das personagens. De todas elas.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Cristas, uma ajuda a António Costa

Francis Bacon, Head of a Woman, 1960

Dentro da direita trava-se uma luta pouco surda. Não me refiro ao aparecimento do Aliança, do inevitável Santana Lopes, nem de outras agremiações que tentam encontrar um nicho de mercado eleitoral com a ajuda dos ventos que nos chegam de Espanha. Refiro-me à moção de censura ao governo apresentada pelo CDS. A única finalidade é obrigar Rui Rio a tomar uma posição. Sabe-se que o actual presidente do PSD é avesso a este tipo de espectáculo e que duvida, com razão, da sua eficácia. O CDS, porém, pretende crescer à custa do PSD e não se importa de dar uma mãozinha a António Costa.

O primeiro-ministro tem tudo a ganhar com a moção de Assunção Cristas. Se por acaso o BE e o PC, em coligação com a direita, fizessem cair o actual governo, o PS caminharia para a maioria absoluta sobre o cadáver do BE e ainda com ajuda de muitos eleitores do PC. Como não é provável que isso suceda, a moção de censura serve para António Costa mostrar que não está tão abandonado quanto parece neste momento, em que o governo está a enfrentar uma onda enorme de contestação social. A moção do CDS é o tónico que o governo do PS estava mesmo a precisar, no momento de maior desconforto e de ausência de discernimento político.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Olhar do alto

Ilse Bing, Champ-de-Mars from the Eiffel Tower, 1931

De quanto mais alto se olha para os homens, melhor compreendemos a sua realidade. Um olhar próximo leva-nos a projectar na espécie a nossa auto-consideração e o nosso narcisismo. Vistos do alto, os homens mostram-se na sua verdadeira dimensão. Grãos de areia a deambular num universo incomensurável.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Villa Cardillio 9. Penumbra

Anónimo Romano, Fresco que representa um jardim, Casa de Livia, Roma

9. PENUMBRA

A penumbra do arvoredo
é um fogo glacial
no rumor das cigarras.

O cântico ergue-se,
cresce para a obscuridade,
uma sombra no coração.

O vento bate, rasteja
e o silêncio desce
na luz ferida de mágoa.

1979

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Ensaio sobre a luz (51)

Caspar David Friedrich, Árvore com corvos

Iluminada, a árvore chama, no seu silêncio feito de anos, os corvos. E eles vêm envoltos na capa negra que sempre os veste, pousam sobre os ramos descarnados e esperam que a luz os roube ao domínio das trevas.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Franco Nogueira, Salazar vol. 1 A Mocidade e os Princípios


Data de 1977, cerca de três anos após o derrube do regime político do Estado Novo, a publicação, pelo embaixador Franco Nogueira, do primeiro volume, de seis, da biografia de Salazar. Este volume tem por título Salazar Vol. I A Mocidade e os Princípios. O interesse desta biografia não reside  no facto de estarmos perante um historiador preocupado com a independência e a objectividade histórica nem de um especialista na narrativa biográfica. O seu interesse releva do olhar de alguém que foi não um mero compagnon de route, mas de um correligionário do ditador português, de cujos governos foi ministro dos Negócios Estrangeiros entre 1961 e 1969. Apesar dos protestos de independência apresentados no “Esclarecimento” com que inicia a obra – É neste espírito, de absoluto desprendimento, de rigoroso exame das fontes, mesmo de gelado realismo, que concebi o relato do consulado de Oliveira Salazar. Não é obra de vitupério, nem de apostolado: busco a verdade, à luz dos factos e documentos (p. X). –, o leitor facilmente perceberá a simpatia com que a figura de Salazar é tratada. Seja como for, é um documento que merece leitura por quem se interessar pela História portuguesa do século XX. Franco Nogueira não foi um protagonista qualquer.

Este primeiro volume abarca o período que vai desde os finais do século XIX até ao 28 de Maio de 1926. Divide-se em cinco capítulos. O primeiro dedicado aos tempos de infância, no Vimieiro e em Santa Comba Dão, e aos do seminário em Viseu. O segundo capítulo abarca os tempos de estudante de Coimbra. O terceiro, o ingresso no professorado universitário e a sua afirmação enquanto docente. O quarto capítulo caracteriza a natureza doutrinadora do militante católico e o último retrata os primeiros tempos do regime nascido do golpe militar que pôs fim à primeira República.

Um dos motivos por que vale a pena ler a obra de Franco Nogueira reside no fresco que ele oferece dos tempos políticos que vão desde os último anos da Monarquia até aos primeiros tempos do Estado Novo, com especial atenção à primeira República. Nesta fase, há traços comuns aos três regimes e cuja descrição prepara uma possível explicação da emergência e consolidação de Salazar enquanto figura política central do Portugal dos anos trinta até aos anos setenta. Por um lado, o défice crónico das contas públicas, a difícil gestão dos dinheiros do Estado, a necessidade de viver de empréstimos das potências estrangeiras e a relutância destas. Concomitante ao descalabro financeiro é o pandemónio político. Naquele período, assiste-se à desagregação da monarquia constitucional, às tentativas sempre falhadas de estabilizar a primeira República (quarenta governos em menos de dezasseis anos) e, por fim, às enormes dificuldades sentidas pela ditadura do Estado Novo para controlar a situação emergente. Este é o pano de fundo que Franco Nogueira descreve e que, de forma subliminar, deixa perceber como causa que gera a resposta política encarnada pelo homem que veio de Santa Comba.

Encontrar-se-ão, na obra, múltiplos traços da formação pessoal e política de Salazar. Os aspectos pessoais, muito curiosamente, são descritos com uma linguagem paroquial, como se o autor quisesse através da selecção dessa estratégia linguística pintar o país e as relações sociais onde Salazar emergiu. Um dos traços centrais da narrativa é a equívoca relação com as mulheres. A ligação com a mãe, Maria do Resgate, tem um carácter de preocupação obsessiva e parece ter ocupado um papel relevante na vida do futuro ditador. Por outro lado, o biógrafo não se cansa de salientar a atracção que o jovem universitário exercia sobre as mulheres das classes altas de Coimbra, embora nenhuma dessas relações passasse de um domínio platónico. A linha narrativa de Franco Nogueira – e isso vai ser reforçado no segundo volume – é a de desmentir a ideia de que Salazar teria sido uma espécie de frade laico, dedicado aos negócios de Estado. Parece mesmo querer sublinhar o contrário, embora os elementos apresentados para construir essa imagem de um Salazar D. Juan sejam particularmente débeis.

Um segundo traço importante é o do militante católico, integrado no Centro Académico da Democracia Cristã, de Coimbra, e colaborador do jornal O Imparcial. É neste âmbito que nasce e se consolida a amizade com o padre Cerejeira, futuro Cardeal-Patriarca de Lisboa, e com muitos dos que vão ser seus amigos pela vida fora. A militância de Salazar escora-se na leitura das encíclicas de Leão XIII, dos textos de Charles Maurras e de Gustav Le Bon. A sua acção visa defender a Igreja Católica dos ataques da República, fundamentalmente dos sectores mais radicais. Apesar de ser simpatizante monárquico, as suas concepções políticas derivam em primeiro lugar do catolicismo e das preocupações da Igreja em integrar no seu seio as classes operárias, numa visão antagónica do marxismo e da luta de classes.

Um terceiro traço, focado por duas vezes pelo biógrafo, é o que está ligado à descoberta, por Salazar, da sua mais profunda e autêntica vocação. Numa conversa entre amigos, o universitário, num dos raros momentos de exposição do seu pensamento mais íntimo, confessa que sentia como sua vocação mais funda ser primeiro-ministro de um rei absoluto. Embora Franco Nogueira não faça a hermenêutica desta confissão, ela é fundamental. Não tanto porque prefigura a sua ambição – e a ambição é um dos traços mais salientes do carácter de Salazar – de ser um futuro ditador, mas do seu indeclinável afastamento dos valores da modernidade e do Iluminismo. O 28 de Maio vai abrir-lhe a porta para a realização dessa sua ambição, embora Salazar não tenha posto em causa a natureza republicana do regime. Limitou-se a ser primeiro-ministro de uma república autocrática.

domingo, 10 de fevereiro de 2019

Sonhos numa noite de Verão 13

Giuseppe Pelizza Da Volpedo, Broken Flower, 1896-1902

Era uma procissão, reconheço-o agora que acordei. Na frente, seguia o sacerdote. Cantava, mas os versos eram incompreensíveis. Pareciam feitos de palavras de uma língua não humana. Atrás dele, seguiam em silêncio virgens vestidas de branco. Pisavam o chão com cuidado e, por vezes, inclinavam a cabeça em direcção à terra ou erguiam as mãos ao céu. Atrás delas, seguiam crianças, acompanhadas por algumas mulheres. Eu estava ali, temeroso e extasiado pelo cântico. Era uma criança entre as outras, sentia o odor das virgens, as flores que se quebravam ao serem pisadas. Ao entrar no bosque, o sacerdote calou-se. No meio do silêncio, voltou-se e foi com horror que descobri no seu o meu próprio rosto.

sábado, 9 de fevereiro de 2019

Caixa, Marcelo, Venezuela e Papa


A minha crónica no Jornal Torrejano.

1. CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS. O que se tem vindo a saber da Caixa Geral de Depósitos dá razão aos que, na União Europeia, julgam ser necessário impor uma espécie de protectorado aos países do sul da Europa. O banco do Estado serviu de depósito a gente que vinha da política e ali encontrou um porto, bom e rico, onde lançar âncora. E não apenas aportaram confortavelmente como permitiram que a instituição quase fosse destruída, enquanto um número significativo de empreendedores se esquecia de liquidar os empréstimos ao banco. Se se quiser um exemplo da degradação moral da nossa vida política, o que aconteceu durante muitos anos na CGD é um dos principais candidatos.

2. MARCELO NO BAIRRO DA JAMAICA. O modo de fazer política de Marcelo tem muitos detractores, tanto na direita como na esquerda. Contudo, ele tem um papel fundamental no equilíbrio da sociedade portuguesa. A visita surpresa ao Bairro da Jamaica, no Seixal, e o compromisso de lá voltar para uma festa dos moradores são um novo sinal que o actual PR tem um instinto certeiro para apagar fogos. Ser bombeiro era uma possibilidade inscrita na função presidencial que só agora está a ser descoberta. Felizmente.

3. VENEZUELA. O actual problema da Venezuela não começou com Maduro. Começou com Chávez e a chamada revolução bolivariana. Enquanto o petróleo ajudou, as opções erradas foram sendo disfarçadas, dando a ilusão que se estava a tirar parte significativa da população da miséria. Quando a realidade mudou, as pessoas descobriram que a miséria é bem mais persistente do que pensavam. Descobriram também que não há passes de mágica que resolvam as grandes desigualdades sociais. Depois, como ensinou Bismarck, a política é a arte do possível. Quando, em nome do deslumbramento revolucionário, se acha que se pode ir para além do possível, o mais certo é a miséria estar do outro lado da porta.

4. O PAPA NO CENTRO DO ISLÃO. A visita do Papa Francisco à península arábica é um acontecimento da maior relevância. Tanto pela ida do Sumo Pontífice romano como pelo acolhimento das autoridades islâmicas, com destaque para o xeque Ahmed el-Tayeb. A conflitualidade religiosa é um dos principais problemas geopolíticos. Qualquer aproximação entre as diversas autoridades espirituais é um passo para a difícil pacificação das paixões religiosas. Ninguém imagina que essa paz está ao virar da esquina. No entanto, é melhor construir pontes entres os homens do que erguer muros. E o Papa Francisco, contra o desejo de muitos, tem-no feito.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Villa Cardillio 8. As mulheres

Anónimo Romano, Cena de gineceu, Vila Imperial, Pompeia

8. AS MULHERES

As mulheres moviam-se
ao rumorejar da noite.

Abriam-se à seiva escura
marejada de outonos.

Abriam-se ao galope
da sombra nos olivais.

Abriam-se ao ruído
do silêncio das searas.

1979

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Afundar-se em mediocridade

Pierre Dubreuil, La Metronome, 1920s

Em 2000, o rendimento de Portugal era 84% do da média europeia. Em 2018, é de apenas 74%.  O país divergiu em mais 10%. Enquanto isto, Portugal recebeu no mesmo período, para ajudar à convergência com a União Europeia, fundos no valor de mais de 79 mil milhões de euros. O endividamento externo passou dos 45 mil milhões para os 205 mil milhões, também nesse período. Este comportamento é diferente da generalidade dos outros países e Portugal prepara-se para cair para o quinto lugar entre os países mais pobres da UE (ver aqui). Pior do que a irresponsabilidade generalizada atribuível às elites políticas nacionais é a sensação de que o país está a caminho de se tornar inviável. A União Europeia - na altura CEE - foi vista como a saída possível para um país que perdera as colónias. Os portugueses acharam que esse acto mágico os dispensava da disciplina, do esforço, do espírito de sacrifício, da justiça na distribuição dos encargos e dos ganhos. Acharam que se podia dispensar o rigor nas contas do Estado e que este podia tornar a todos europeus nos rendimentos. Nem sequer a entrada da troika no país ensinou coisa alguma. Para lá do espalhafato das facções e dos conflitos em torno da ocupação do poder, Portugal desperdiçou as duas últimas legislaturas. Passos Coelho e a direita perderam-se no ressentimento e em devaneios  ideológicos sem qualquer sentido. António Costa e a esquerda mergulharam na gestão dos votos e das migalhas do crescimento da economia, o qual pouco deve ao esforço nacional. Nem num lado nem no outro há uma ideia para o país, um caminho para o retirar da mediocridade em que se afunda. Há escândalos, casos de polícia, egoísmos exacerbados. Não há uma política para o país.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

O que resta

Sabine Weiss, Seine, Paris, 1953

No fim da vida, tudo o que resta é sentarmo-nos ao sol, na margem de um qualquer rio, e olhar a sombra que de nós se desprende ou procurar num livro gasto e enxovalhado o epílogo da nossa história.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

O amor à mentira


Nos últimos anos, a questão da verdade e da mentira no discurso político tornou-se um ponto central. No entanto, o problema é tão velho quanto a própria política, e todos aqueles que se interessam, ainda que de forma lateral, pelo fenómeno político sabem que a mentira sempre fez parte da luta pela conquista e manutenção do poder. Pensar-se-á, por outro lado, que o problema estará na rápida propagação da mentira através dos recursos que as tecnologias de informação e comunicação colocam ao dispor de quem mente. Isso esquece contudo que os mesmo dispositivos estão ao dispor da verdade e que esta, do ponto de vista tecnológico, pode propagar-se tão rapidamente quanto a mentira.

O problema encontrar-se-á noutro lugar. A mentira em política era usada, mas quem mentia corria um risco. Ser apanhado a mentir poderia ter consequências negativas na imagem e nas pretensões ao poder. Os políticos usavam a mentira, fazendo crer que as suas mensagens falsas eram verdadeiras, pois os cidadãos valorizavam a verdade. A mentira valia pela sua aparência de verdade. O que mudou foi a relação de parte substancial dos eleitorados com a verdade.

A verdade deixou de os interessar, pois tem o poder de os ferir nas suas convicções, de os pôr em causa, de lhes mostrar uma realidade hostil ou meramente difícil. Preferem a mentira e quem a usa para dizer o que eles sentem necessidade de ouvir. Assistimos à transição moral, do homem comum, do amor pela verdade para o amor pela mentira política. Esta conforta e confirma a identidade dos indivíduos, os quais se sentem ameaçados por uma realidade que, devido à sua complexidade, deixou de ser compreensível e manejável no âmbito da sua experiência e saber.

O que dá que pensar não é haver políticos mentirosos, mas a existência de eleitorados que preferem a mentira à verdade. A desvalorização do ser verdadeiro, como virtude exigida pelos cidadãos aos políticos, mostra-nos quanto esses cidadãos se sentem ameaçados pela realidade e como esta desencadeia neles um sentimento de fuga. A valorização moral da mentira pelos eleitores torna manifesto que os nossos dispositivos políticos estão desfasados do tempo em que vivemos. As nossas instituições democráticas estão fundadas no sentimento de que justiça e verdade são duas faces da mesma moeda. Ora Isso deixou de funcionar. O que significa que a democracia tal como a conhecemos está a colapsar, enredada no triunfo moral da mentira.

[A minha crónica em A Barca]

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Thomas Pynchon, Vício Intrínseco


Publicado nos EUA em 2009, Vício Intrínseco (Inherent Vice), de Thomas Pynchon, é uma visita a uma certa cultura que floresceu nos anos sessenta do século passado. A data dos acontecimentos narrados – acontecimentos fictícios – é relativamente obscura, embora a referência ao caso Charles Manson permita colocá-los no ano de 1970. O autor explora o mundo da cultura hippie e as estranhas relações que se tecem em torno do flower power. Este tipo de cultura, que floresce como reacção à guerra no Vietname, centra-se na promoção da não-violência, no corte com a exigência burocrática do mundo do dinheiro, na libertação da sexualidade dos tabus que ainda a enclausuravam, na emergência de uma contracultura marcada por uma espécie de misticismo e de crenças sobre coisas tão intangíveis como o suposto continente perdido da Lemúria e, fundamentalmente, no consumo de psicotrópicos. Tudo isto aflora no romance de Pynchon.

No centro da narrativa encontra-se o detective Larry Sportello, conhecido por Doc. Para quem conhece os detectives privados dos policiais americanos é com surpresa que depara com este heróico investigador privado. Doc é um hippie. Veste-se e usa o cabelo como tal e anda sempre pedrado, embora o seu consumo de drogas se confine, por norma, ao que hoje se poderia considerar drogas leves. Ao lado desta cultura, ou fazendo parte dela, ergue-se uma outra, a do surf, com uma fileira musical que anima as rádios locais e o coração do detective. O centro da acção é a zona de Los Angeles e a narrativa é desencadeada pela visita de Shasta Fay Hepworth, antiga namorada de Larry Sportello e actual amante de um poderoso homem da construção, Mickey Wolfmann, para lhe pedir ajuda. Desconfiava que Wolfmann poderia ser vítima de uma conspiração da mulher e do amante desta para o internarem e se apoderarem do seu dinheiro. Descobre-se, depois, que Wolfmann teria tido uma epifania hippie e como contrição pela sua vida de duro homem de negócios propunha-se desbaratar a fortuna num projecto social no deserto.

A partir deste ponto, Pynchon constrói um universo de relações alucinantes entre polícias corruptos e assassinos, uns locais e outros federais, hippies continuamente drogados, máfia ligada à distribuição de droga, com passagem por Las Vegas e os casinos, todo um conjunto de universos paralelos à lei e à ordem, onde se incluiu um saxofonista dado como morto, mas que afinal não o estava, e uma organização, a Golden Fang, possuidora de um barco com o mesmo nome, que tanto pode ser um poderoso cartel de droga, ou um grupo conspirador da direita radical ou apenas uma empresa preocupada em fornecer cuidados de saúde, nomeadamente de saúde oral. Ou talvez seja tudo isso ao mesmo tempo. Estamos perante um retrato hilariante e mordaz do sonho americano, onde todas as relações sociais são equívocas e o poder da lei e da ordem racional está submetido aos poderes fácticos dos negócios obscuros e da violência.

O formato escolhido pelo autor, um romance policial, implica que a narrativa esteja preocupada com a descoberta da verdade. É para isso que existem detectives, incluindo os privados. Pynchon não é propriamente um romancista policial e não parece ser isso que está em jogo em Vício Intrínseco. O essencial é a construção da personagem de Doc, Larry Sportello. Este é um dos mais inverosímeis detectives que se pode encontrar na literatura. Que relação poderá ter ele com a verdade? Como poderá ser ele, continuamente pedrado, descobrir o que quer que seja? A ironia – e, porventura, a crítica social – reside na conclusão que se pode extrair. A verdade sobre a sociedade americana, sobre a chamado american dream, sobre a vida alucinada só pode ser entrevista a partir da margem. Mais, a alucinação colectiva só será compreensível a quem esteja não esteja num estado normal de consciência. Esta já não tem poderes para compreender a realidade que a envolve. Vício Intrínseco é, deste modo, muito mais que uma novela policial. Não estamos perante um exercício de entretenimento a que, por descuido ou desfastio, Thomas Pynchon se tenha entregado. Estamos antes perante uma visão sóbria da realidade americana a partir dos olhos de um detective inverosímil. Só num estado alterado de consciência a sociedade americana pode ser compreendida.

domingo, 3 de fevereiro de 2019

Villa Cardillio 7. Perdido

Anónimo romano, Mosaico de las figuras (detalhe), procedente de Alcolea del Río. Museo Arqueológico. Córdoba. España

7. PERDIDO

Nas mãos, o macerado
fruto de Setembro,
um rasto de sombra
na fuligem da memória.

Cardílio é um trapo
perdido ao vento,
a penumbra que pulsa
na gangrena do poente.

1979

sábado, 2 de fevereiro de 2019

Alma Pátria - 47: Lucília do Carmo, Tudo Isto É Fado



Uma das grandes vozes femininas do fado, no longo período do Estado Novo, foi a de Lucília do Carmo, proprietária da importante casa de fados O Faia e mãe de Carlos do Carmo. Estreia-se como fadista em 1936, aos dezassete anos, numa mítica casa de fados, o Retiro da Severa. O fado escolhido foi também cantado por Amália Rodrigues, e é um repositório da ideologia corrente nas classes populares não apenas de Lisboa e não apenas populares. O país, naqueles tempos, vivia, simbolicamente, com um pé na Igreja e outro na Mouraria. Entre uma religiosidade beata e esse mundo onde cantam rufias, choram guitarras, tudo mergulhado num oceano de amores e ciúmes, de dores e pecados. Seja como for, foi isso que nos trouxe aonde estamos.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Ensaio sobre a luz (50)

Alfred Eisenstaedt, Street Scene, Italy, circa 1932

Os homens predispõem-se a suportar a luz não porque desejem que ela os ilumine e lhes dê um caminho, mas porque acima de tudo temem a própria sombra.