Data de 1977, cerca de três anos após o derrube do regime
político do Estado Novo, a publicação, pelo embaixador Franco Nogueira, do
primeiro volume, de seis, da biografia de Salazar. Este volume tem por título Salazar Vol. I A Mocidade e os Princípios.
O interesse desta biografia não reside
no facto de estarmos perante um historiador preocupado com a
independência e a objectividade histórica nem de um especialista na narrativa
biográfica. O seu interesse releva do olhar de alguém que foi não um mero compagnon de route, mas de um correligionário
do ditador português, de cujos governos foi ministro dos Negócios Estrangeiros
entre 1961 e 1969. Apesar dos protestos de independência apresentados no “Esclarecimento”
com que inicia a obra – É neste espírito,
de absoluto desprendimento, de rigoroso exame das fontes, mesmo de gelado
realismo, que concebi o relato do consulado de Oliveira Salazar. Não é obra de
vitupério, nem de apostolado: busco a verdade, à luz dos factos e documentos
(p. X). –, o leitor facilmente
perceberá a simpatia com que a figura de Salazar é tratada. Seja como for, é um
documento que merece leitura por quem se interessar pela História portuguesa do
século XX. Franco Nogueira não foi um protagonista qualquer.
Este primeiro volume abarca o período que vai desde os
finais do século XIX até ao 28 de Maio de 1926. Divide-se em cinco capítulos. O
primeiro dedicado aos tempos de infância, no Vimieiro e em Santa Comba Dão, e
aos do seminário em Viseu. O segundo capítulo abarca os tempos de estudante de
Coimbra. O terceiro, o ingresso no professorado universitário e a sua afirmação
enquanto docente. O quarto capítulo caracteriza a natureza doutrinadora do
militante católico e o último retrata os primeiros tempos do regime nascido do
golpe militar que pôs fim à primeira República.
Um dos motivos por que vale a pena ler a obra de Franco
Nogueira reside no fresco que ele oferece dos tempos políticos que vão desde os
último anos da Monarquia até aos primeiros tempos do Estado Novo, com especial
atenção à primeira República. Nesta fase, há traços comuns aos três regimes e
cuja descrição prepara uma possível explicação da emergência e consolidação de
Salazar enquanto figura política central do Portugal dos anos trinta até aos
anos setenta. Por um lado, o défice crónico das contas públicas, a difícil
gestão dos dinheiros do Estado, a necessidade de viver de empréstimos das
potências estrangeiras e a relutância destas. Concomitante ao descalabro
financeiro é o pandemónio político. Naquele período, assiste-se à desagregação
da monarquia constitucional, às tentativas sempre falhadas de estabilizar a
primeira República (quarenta governos em menos de dezasseis anos) e, por fim,
às enormes dificuldades sentidas pela ditadura do Estado Novo para controlar a
situação emergente. Este é o pano de fundo que Franco Nogueira descreve e que,
de forma subliminar, deixa perceber como causa que gera a resposta política
encarnada pelo homem que veio de Santa Comba.
Encontrar-se-ão, na obra, múltiplos traços da formação pessoal
e política de Salazar. Os aspectos pessoais, muito curiosamente, são descritos
com uma linguagem paroquial, como se o autor quisesse através da selecção dessa
estratégia linguística pintar o país e as relações sociais onde Salazar
emergiu. Um dos traços centrais da narrativa é a equívoca relação com as
mulheres. A ligação com a mãe, Maria do Resgate, tem um carácter de preocupação
obsessiva e parece ter ocupado um papel relevante na vida do futuro ditador.
Por outro lado, o biógrafo não se cansa de salientar a atracção que o jovem
universitário exercia sobre as mulheres das classes altas de Coimbra, embora
nenhuma dessas relações passasse de um domínio platónico. A linha narrativa de
Franco Nogueira – e isso vai ser reforçado no segundo volume – é a de desmentir
a ideia de que Salazar teria sido uma espécie de frade laico, dedicado aos
negócios de Estado. Parece mesmo querer sublinhar o contrário, embora os
elementos apresentados para construir essa imagem de um Salazar D. Juan sejam
particularmente débeis.
Um segundo traço importante é o do militante católico,
integrado no Centro Académico da Democracia Cristã, de Coimbra, e colaborador
do jornal O Imparcial. É neste âmbito
que nasce e se consolida a amizade com o padre Cerejeira, futuro
Cardeal-Patriarca de Lisboa, e com muitos dos que vão ser seus amigos pela vida
fora. A militância de Salazar escora-se na leitura das encíclicas de Leão XIII,
dos textos de Charles Maurras e de Gustav Le Bon. A sua acção visa defender a
Igreja Católica dos ataques da República, fundamentalmente dos sectores mais
radicais. Apesar de ser simpatizante monárquico, as suas concepções políticas
derivam em primeiro lugar do catolicismo e das preocupações da Igreja em
integrar no seu seio as classes operárias, numa visão antagónica do marxismo e
da luta de classes.
Um terceiro traço, focado por duas vezes pelo biógrafo, é o
que está ligado à descoberta, por Salazar, da sua mais profunda e autêntica
vocação. Numa conversa entre amigos, o universitário, num dos raros momentos de
exposição do seu pensamento mais íntimo, confessa que sentia como sua vocação
mais funda ser primeiro-ministro de um rei absoluto. Embora Franco Nogueira não
faça a hermenêutica desta confissão, ela é fundamental. Não tanto porque
prefigura a sua ambição – e a ambição é um dos traços mais salientes do
carácter de Salazar – de ser um futuro ditador, mas do seu indeclinável
afastamento dos valores da modernidade e do Iluminismo. O 28 de Maio vai
abrir-lhe a porta para a realização dessa sua ambição, embora Salazar não tenha
posto em causa a natureza republicana do regime. Limitou-se a ser primeiro-ministro
de uma república autocrática.
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