Publicado nos EUA em 2009, Vício Intrínseco (Inherent
Vice), de Thomas Pynchon, é uma visita a uma certa cultura que floresceu
nos anos sessenta do século passado. A data dos acontecimentos narrados –
acontecimentos fictícios – é relativamente obscura, embora a referência ao caso
Charles Manson permita colocá-los no ano de 1970. O autor explora o mundo da
cultura hippie e as estranhas
relações que se tecem em torno do flower
power. Este tipo de cultura, que floresce como reacção à guerra no
Vietname, centra-se na promoção da não-violência, no corte com a exigência
burocrática do mundo do dinheiro, na libertação da sexualidade dos tabus que
ainda a enclausuravam, na emergência de uma contracultura marcada por uma
espécie de misticismo e de crenças sobre coisas tão intangíveis como o suposto
continente perdido da Lemúria e, fundamentalmente, no consumo de psicotrópicos.
Tudo isto aflora no romance de Pynchon.
No centro da narrativa encontra-se o detective Larry
Sportello, conhecido por Doc. Para quem conhece os detectives privados dos
policiais americanos é com surpresa que depara com este heróico investigador
privado. Doc é um hippie. Veste-se e
usa o cabelo como tal e anda sempre pedrado, embora o seu consumo de drogas se
confine, por norma, ao que hoje se poderia considerar drogas leves. Ao lado
desta cultura, ou fazendo parte dela, ergue-se uma outra, a do surf, com uma fileira musical que anima
as rádios locais e o coração do detective. O centro da acção é a zona de Los
Angeles e a narrativa é desencadeada pela visita de Shasta Fay Hepworth, antiga
namorada de Larry Sportello e actual amante de um poderoso homem da construção,
Mickey Wolfmann, para lhe pedir ajuda. Desconfiava que Wolfmann poderia ser
vítima de uma conspiração da mulher e do amante desta para o internarem e se
apoderarem do seu dinheiro. Descobre-se, depois, que Wolfmann teria tido uma
epifania hippie e como contrição pela
sua vida de duro homem de negócios propunha-se desbaratar a fortuna num
projecto social no deserto.
A partir deste ponto, Pynchon constrói um universo de
relações alucinantes entre polícias corruptos e assassinos, uns locais e outros
federais, hippies continuamente drogados, máfia ligada à distribuição de droga,
com passagem por Las Vegas e os casinos, todo um conjunto de universos
paralelos à lei e à ordem, onde se incluiu um saxofonista dado como morto, mas
que afinal não o estava, e uma organização, a Golden Fang, possuidora de um barco com o mesmo nome, que tanto
pode ser um poderoso cartel de droga, ou um grupo conspirador da direita radical
ou apenas uma empresa preocupada em fornecer cuidados de saúde, nomeadamente de
saúde oral. Ou talvez seja tudo isso ao mesmo tempo. Estamos perante um retrato
hilariante e mordaz do sonho americano, onde todas as relações sociais são equívocas
e o poder da lei e da ordem racional está submetido aos poderes fácticos dos
negócios obscuros e da violência.
O formato escolhido pelo autor, um romance policial, implica
que a narrativa esteja preocupada com a descoberta da verdade. É para isso que
existem detectives, incluindo os privados. Pynchon não é propriamente um
romancista policial e não parece ser isso que está em jogo em Vício Intrínseco. O essencial é a
construção da personagem de Doc, Larry Sportello. Este é um dos mais inverosímeis
detectives que se pode encontrar na literatura. Que relação poderá ter ele com a
verdade? Como poderá ser ele, continuamente pedrado, descobrir o que quer que
seja? A ironia – e, porventura, a crítica social – reside na conclusão que se
pode extrair. A verdade sobre a sociedade americana, sobre a chamado american dream, sobre a vida alucinada
só pode ser entrevista a partir da margem. Mais, a alucinação colectiva só será
compreensível a quem esteja não esteja num estado normal de consciência. Esta
já não tem poderes para compreender a realidade que a envolve. Vício Intrínseco é, deste modo, muito
mais que uma novela policial. Não estamos perante um exercício de
entretenimento a que, por descuido ou desfastio, Thomas Pynchon se tenha entregado.
Estamos antes perante uma visão sóbria da realidade americana a partir dos
olhos de um detective inverosímil. Só num estado alterado de consciência a
sociedade americana pode ser compreendida.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.