Editado na Suécia em 1996, o romance A Amante Colombiana, de Lars Gustafsson (1936 – 2016) é uma crónica
do novo mundo aberto por dois fenómenos concomitantes: a queda do Muro de
Berlim, símbolo do fim da experiência do socialismo real, e a globalização. Dick
Olsson, a personagem central da obra, é um consultor reputadíssimo na área da
publicidade. A pequena dimensão do romance – 160 páginas na tradução portuguesa
– não obsta a que sejam tratados narrativamente um conjunto diversificado de
temas, que acabam por traçar uma visão do mundo que se começava a desenhar
naquela época aos olhos da população dos países ocidentais.
Dick Olsson faz parte daquele grupo de pessoas que vive
constantemente em viagem. Os aeroportos são uma espécie de segunda casa. A
personagem é um exemplar daquilo que, mais tarde, o sociólogo polaco Zygmunt
Bauman irá referir como elite nómada, contraposta, num mundo líquido, a uma
espécie de plebe gregária. Ele possui várias casas, a principal em Austin, no
Texas. Na verdade, é um emigrante sueco nos EUA, mas um emigrante muito
especial, pois antes de se instalar ali, vindo da Suécia, já pertencia a essa
nova elite que se estava a apoderar do mundo. Em contrapartida, a mulher
colombiana referida no título da tradução portuguesa também é uma emigrante,
mas não pertence à elite nómada. Pertence à plebe que entra clandestina nos EUA
para trabalhar por baixos salários. Eleonora, era assim que Olsson lhe chamava
embora o seu nome fosse Lucrezia, era mulher-a-dias, que vivia sem papéis e no
terror de ser deportada. E como mulher-a-dias foi contratada por Olsson. O
livro retrata assim dois tipos de nomadismo, com aceitação social e política
radicalmente oposta.
A partir da existência de Olsson, o autor mostra-nos a
desagregação da família. Quando ele recebe a notícia da morte da mãe,
confronta-se com o seu afastamento e a estranheza que sentia perante ela. Essa
estranheza não é diferente daquela que conduziu a que a sua mulher se separasse
dele, ou a que levava a que não visse o filho há dez anos. O mundo nómada não é
o lugar da família, nem de laços fortes e significativos. É composto por
mónadas que estabelecem relações circunstanciais movidas pelos interesses
próprios. E estes interesses próprios – ganhar muito dinheiro ou afirmar um
certo poder – encontram na publicidade um mundo amoral. O publicitário tanto
pode organizar uma campanha para tornar visível um grupo independentista da
Transdniéstria ou outra para ajudar uma tabaqueira a combater o péssimo acto de
deixar de fumar. No mundo nómada das elites, a moral sucumbiu ao peso da
legalidade positiva, na qual se esteia o interesse individual. E é esta cultura
que permite perceber o desagrado do protagonista com o modo de vida sueco, tão
submetido às imposições da velha social-democracia e aos laços impostos pelo
sindicalismo.
É neste horizonte social que se vão aproximar, tal como
Olsson costuma fazer na publicidade com as ideias, dois mundos sem contacto
entre si. O rico consultor de publicidade de origem europeia e a pobre e
clandestina mulher-a-dias colombiana. Ela com os seus traços de índia nem
sequer é bonita, mas ele sente-se atraído por ela, pelo seu cheiro. Ele
reflecte sobre os perigos de se enredar naquela relação, nas exigências que ela
poderá vir a fazer, mas a atracção é mais forte que o cálculo. Desta relação há
dois pontos centrais no processo de humanização das personagens. Um diz
respeito à primeira vez em que fazem amor e em que ele lhe faz notar que ela
não é virgem, e ela responde-lhe que ele – o senhor Dick – é o primeiro homem
que a toca. Ele não percebe o que ela quer dizer. O mistério deste primeiro
toque é a revelação da humanidade de Eleonora. O segundo ponto central diz
respeito a ele e combina a emergência de uma dor, a da falta dela numa viagem
que faz à Europa para enterrar a mãe, e a sensação sentida de ter perdido a
alma. A dor e a sensação de perda da alma são o sintoma de que a sua humanidade
ainda pode emergir por debaixo da máscara social que adoptou para reger a sua
existência. O amor surge então como a possibilidade – uma mera e remota
possibilidade – de arrancar os seres humanos presos à esquadria social que
habitam e tornarem-se seres humanos reais.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.