quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Lars Gustafsson, A Amante Colombiana


Editado na Suécia em 1996, o romance A Amante Colombiana, de Lars Gustafsson (1936 – 2016) é uma crónica do novo mundo aberto por dois fenómenos concomitantes: a queda do Muro de Berlim, símbolo do fim da experiência do socialismo real, e a globalização. Dick Olsson, a personagem central da obra, é um consultor reputadíssimo na área da publicidade. A pequena dimensão do romance – 160 páginas na tradução portuguesa – não obsta a que sejam tratados narrativamente um conjunto diversificado de temas, que acabam por traçar uma visão do mundo que se começava a desenhar naquela época aos olhos da população dos países ocidentais.

Dick Olsson faz parte daquele grupo de pessoas que vive constantemente em viagem. Os aeroportos são uma espécie de segunda casa. A personagem é um exemplar daquilo que, mais tarde, o sociólogo polaco Zygmunt Bauman irá referir como elite nómada, contraposta, num mundo líquido, a uma espécie de plebe gregária. Ele possui várias casas, a principal em Austin, no Texas. Na verdade, é um emigrante sueco nos EUA, mas um emigrante muito especial, pois antes de se instalar ali, vindo da Suécia, já pertencia a essa nova elite que se estava a apoderar do mundo. Em contrapartida, a mulher colombiana referida no título da tradução portuguesa também é uma emigrante, mas não pertence à elite nómada. Pertence à plebe que entra clandestina nos EUA para trabalhar por baixos salários. Eleonora, era assim que Olsson lhe chamava embora o seu nome fosse Lucrezia, era mulher-a-dias, que vivia sem papéis e no terror de ser deportada. E como mulher-a-dias foi contratada por Olsson. O livro retrata assim dois tipos de nomadismo, com aceitação social e política radicalmente oposta.

A partir da existência de Olsson, o autor mostra-nos a desagregação da família. Quando ele recebe a notícia da morte da mãe, confronta-se com o seu afastamento e a estranheza que sentia perante ela. Essa estranheza não é diferente daquela que conduziu a que a sua mulher se separasse dele, ou a que levava a que não visse o filho há dez anos. O mundo nómada não é o lugar da família, nem de laços fortes e significativos. É composto por mónadas que estabelecem relações circunstanciais movidas pelos interesses próprios. E estes interesses próprios – ganhar muito dinheiro ou afirmar um certo poder – encontram na publicidade um mundo amoral. O publicitário tanto pode organizar uma campanha para tornar visível um grupo independentista da Transdniéstria ou outra para ajudar uma tabaqueira a combater o péssimo acto de deixar de fumar. No mundo nómada das elites, a moral sucumbiu ao peso da legalidade positiva, na qual se esteia o interesse individual. E é esta cultura que permite perceber o desagrado do protagonista com o modo de vida sueco, tão submetido às imposições da velha social-democracia e aos laços impostos pelo sindicalismo.

É neste horizonte social que se vão aproximar, tal como Olsson costuma fazer na publicidade com as ideias, dois mundos sem contacto entre si. O rico consultor de publicidade de origem europeia e a pobre e clandestina mulher-a-dias colombiana. Ela com os seus traços de índia nem sequer é bonita, mas ele sente-se atraído por ela, pelo seu cheiro. Ele reflecte sobre os perigos de se enredar naquela relação, nas exigências que ela poderá vir a fazer, mas a atracção é mais forte que o cálculo. Desta relação há dois pontos centrais no processo de humanização das personagens. Um diz respeito à primeira vez em que fazem amor e em que ele lhe faz notar que ela não é virgem, e ela responde-lhe que ele – o senhor Dick – é o primeiro homem que a toca. Ele não percebe o que ela quer dizer. O mistério deste primeiro toque é a revelação da humanidade de Eleonora. O segundo ponto central diz respeito a ele e combina a emergência de uma dor, a da falta dela numa viagem que faz à Europa para enterrar a mãe, e a sensação sentida de ter perdido a alma. A dor e a sensação de perda da alma são o sintoma de que a sua humanidade ainda pode emergir por debaixo da máscara social que adoptou para reger a sua existência. O amor surge então como a possibilidade – uma mera e remota possibilidade – de arrancar os seres humanos presos à esquadria social que habitam e tornarem-se seres humanos reais.

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