sábado, 31 de março de 2012

A síndrome do final d'Os Maias


A propósito deste post da Ivone e deste da minha autoria, retomo a questão da vida falhada. No final d'Os Maias, João da Ega diz para Carlos da Maia:

- Falhámos a vida, menino!

Aquilo que no post anterior discuti foi se, na vida efectiva, faz sentido dizer que alguém falhou na vida. Não é isso que me interessa aqui. Queria examinar a ideia de uma vida falhada de uma outra perspectiva. Como é que é possível elaborar tal proposição?

Uma vida só pode ser sentida como falhada se ela for uma vida avaliada ou, melhor, auto-avaliada. É no quadro geral da avaliação que pode emergir a ideia de uma vida consumada ou falhada. Na cultura ocidental, isso tem um topos preciso: Sócrates. Duas ideias que parecem ser centrais no seu pensamento fazem luz sobre esta questão. A primeira foi-lhe dada pelo oráculo de Delfos, o "conhece-te a ti mesmo". A segunda é o dito "uma vida que não é examinada não merece ser vivida". Estas duas ideias remetem para uma des-coincidência consigo mesmo. Por um lado, eu posso tomar-me como sujeito que deve conhecer e objecto que, sendo desconhecido, deve ser conhecido pelo sujeito. Esta ideia introduz uma fractura entre si e si. É no espaço fracturado que eu vou poder erguer um padrão que me permite a auto-avaliação. A segunda frase é mais terrível. Uma vida que não seja avaliada (examinada), isto é, uma vida que não tenha sido fracturada e que, por isso mesmo, coincida espontaneamente consigo mesmo, não merece ser vivida. O que Sócrates faz é fracturar o ser do homem, encontrar um espaço para construir um padrão (uma medida) de avaliação, e remata negando o valor de toda a vida que não se avalie a si mesma, segundo esse padrão. A monomania da avaliação começou aqui (coisas como a avaliação de desempenho nos locais de trabalho são fruto desta decisão de Sócrates). 

Muito diferente é a posição de um homem como Protágoras, o sofista de Abdera. Ao proclamar que o homem é a medida de todas as coisas, ele mantém a unidade originária e natural de cada homem, mantém cada um como a sua própria medida. Neste sentido, não pode haver des-coincidência de si consigo mesmo. Como tal, aquilo que cada um realiza na vida é a expressão de si, a autêntica expressão de si. Não há lugar para a dicotomia vida sucedida/vida falhada. Esta dicotomia deve-se à fractura introduzida por Sócrates. É ela que permite pensar um padrão ou uma medida estranha ao nosso próprio ser e que será a bitola pela qual avaliaremos a nossa existência. 

Não é a questão filosófica, porém, que quero pensar, mas a  romanesca. O "Falhámos a vida, menino!" é a constatação, por parte de Eça de Queirós, da efectiva natureza de uma actividade artística a que damos o nome de romance moderno. Não é que todos os romances sejam histórias protagonizadas por aqueles que falham a vida. Não é obrigatório, mas uma quantidade incalculável de romances tratam desse assunto. O que a frase de João da Ega sublinha é que sem uma vida examinada o romance não é possível. Quando Nietzsche chama a atenção para o facto do romance moderno ser um prolongamento dos diálogos platónicos, é sobre isto que ele pensa. O que distingue a vida examinada presente na filosofia e a presente no romance é apenas a faculdade que constrói o padrão de medida. Na filosofia, e por maioria de razões na filosofia socrático-platónica, é a razão que produz o padrão que servirá para examinar a vida. No romance, os padrões são construídos pela imaginação. O padrão construído pela imaginação, devido à plasticidade e maleabilidade desta, pode parecer menos universal e abstracto. No entanto, isso é um equívoco. O padrão é sempre uma abstracção, mesmo que ele seja composto pelos nossos sonhos de juventude. Eça de Queirós tem a plena consciência disso e como isso se liga à natureza da arte romanesca. Que resposta dá Carlos da Maia às palavras de João da Ega?

- Creio que sim... Mas todo o mundo mais ou menos falha. Isto é, falha-se sempre na realidade aquela vida que se planeou com a imaginação.

O romance é possível porque existe um hiato entre o padrão imaginário erguido ou transportado pelas personagens e a concretização que lhe dão durante o decurso da intriga romanesca. Esse hiato é o prolongamento da fractura do si (self) introduzida por Sócrates. A ideia de uma vida falhada é uma construção filosófico-artística, fundada no artifício socrático da fractura do si (self) e da des-coincidência de si consigo mesmo. Se olharmos para outras tradições, como por exemplo o Budismo, seja na variante do Tantra como na do Zen, seja o Taoísmo, a grande questão é de abandonar essa des-coincidência. A fractura de si consigo é uma ilusão. Tudo o que decorre dessa fractura, como a nossa monomania da avaliação, tem o carácter ilusório. A fractura, a des-coincidência de si consigo mesmo, a avaliação são formas defensivas perante o puro acontecer da vida. De uma forma paradoxal, poder-se-ia afirmar que erguer um padrão para avaliar a vida é falhar a própria vida, ausentar-se dela, des-coincidir com ela. Talvez não exista outra solução, pelo menos para os ocidentais, do que esse falhanço universal, sendo a filosofia e a arte do romance cartografias das nossas falhas tectónicas. O que permitiria escrever o seguinte: toda a filosofia, mesmo aquela eivada de optimismo, e toda a narrativa romanesca são um exercício do mais fundo cepticismo.

2 comentários:

  1. Ah, ah, mas, no final de Os Maias, os dois amigos acabam por correr para apanhar o «americano»...! «Ainda o apanhamos, ainda o apanhamos!». A esperança, apesar de tudo, contra todos os fracassos.

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    1. Curiosamente, é a esperança num objecto técnico, representante do progresso material. A ideia de progresso - a esperança nesse progresso - está reduzida já à ideia da materialidade. Seja como for, esse "ainda o apanhamos, ainda o apanhamos!" ainda continua a a ressoar na vida portuguesa, passado um século. Quero dizer, ainda não o apanhámos.

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