João Queiroz - Uma das aguarelas da exposição (e livro) Stanca Luce
Nele estava a vida, e a vida era
a luz dos homens. E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a
compreenderam. (João 1:4,5)
Uma metáfora poderosa, stanca
luce (luz fatigada), deu título à exposição de 60 aguarelas de João
Queiroz, na Fundação Carmona e Costa. Para quem não teve oportunidade de ver a
exposição – como foi o meu caso – há um objecto extraordinário, um livro que é
o ao mesmo tempo, segundo julgo, o catálogo da exposição (onde todas as
aguarelas são reproduzidas), onde podemos contemplar lentamente aquilo que uma
luz fatigada nos deixa ver. Vale a pena comprar o livro – o preço, tendo em
conta a qualidade das reproduções e o arranjo gráfico da obra, é baixo, muito
baixo – e ficar a olhá-lo demoradamente, passando de página em página para
deixar que perante nós se manifeste uma multiplicidade de mundos possíveis,
mundos ainda por definir, iluminados por uma luz que já não é viva e brilhante,
mas aquela que resulta do cansaço da própria luz.
Podemos sempre discutir o motivo que conduz ao cansaço da luz. O
evangelista João abre-nos uma possibilidade: o cansaço da luz provém da
incompreensão com que ela é recebida nas trevas. A luz cansa-se de iluminar e
na sua fadiga, mais do que mostrar o mundo que é, ela sugere mundos possíveis,
mundos difusos que nascem das manchas presentes no papel e apelam à imaginação
do espectador para que penetre nesses mundos, e descubra neles o possível que
ali se esconde, descubra a luz necessária não apenas à manifestação desses mundos mas
também à sua colonização.
Ao ver estas aguarelas de João Queiroz – melhor estas reproduções das
aguarelas – sou conduzido pela metáfora da luz cansada (stanca luce) para uma zona de limiar que é, ao mesmo tempo, uma
fronteira. É o que está para além dessa fronteira que é iluminado pela fatigada
luz que é a nossa, que é a luz que cabe aos homens de hoje. A grande tentação,
até tendo em conta trabalhos anteriores do artista, é falar de paisagens. O
problema, contudo, é que a luz não é suficientemente forte e viva (clara e
distinta, para falar à maneira de Descartes) para nos permitir o peremptório.
Imaginemos que são paisagens. Serão elas paisagens físicas que perdem os
contornos e se desfiguram, à pouca luz, em manchas que entretecem entre si
relações ficcionais que nos levam a imaginar paisagens? Ou serão agregados de
entidades metafísicas que, à luz fatigada do mundo, irrompem no nosso campo de
visão e parecem reivindicar, apesar da sua natureza não física, o direito a
tomarem figura, a serem quase corpo e quase espaço?
Perante esta perplexidade, prefiro ver em cada aguarela, como referi
acima, um mundo possível. O que há de extraordinário nestes 60 mundos possíveis
é que eles são, independentemente da sua natureza física ou metafísica, uma
negação do nosso próprio mundo, da sua fisicalidade e da violência fáctica que
o habita. Neles não avistamos o contorno da figura humana. Não há rasto ou indício
de colonização, o que os denuncia na sua virgindade e como tal, apesar de se
apresentarem como negações do nosso mundo, como territórios, físicos ou metafísicos,
que apelam aos exploradores e à coragem daqueles que decidem passar a fronteira para se embrenharem, ainda sob a luz fatigada que nos cabe, em territórios
inóspitos. Sem o fazer, sem esse risco de se perder num mundo possível, nunca
saberemos se um dia as trevas compreenderão a luz.
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