Juan Uslé - Transferencia equivocada (1992)
Os limites da minha capacidade de transferência são os limites do meu mundo. (Peter Sloterdijk, Esferas I)
É compreensível que um filósofo - Peter Sloterdijk é um dos mais influentes filósofos alemães actuais - coloque as coisas neste ponto: a capacidade de transferência como padrão de amplitude do mundo de cada um. A filosofia é a tradição da prática de descentramento do singular em direcção ao universal. Esta tradição, porém, não é única. Tomemos o exemplo da literatura. O que é ela senão um exercício contínuo de transferência e de descentramento? Tome-se em consideração o romance moderno e a poesia lírica.
O romance é uma prática contínua de transferência, um jogo de múltiplas transferências. O autor, na sua singularidade, transfere-se para os narradores que cria e as personagens cujas acções e metamorfoses os narradores relatam. Não se trata, no romance, de uma transferência do ego concreto do autor para uma universalidade dada na abstracção do pensamento, mas antes de uma transferência de um ego para outros egos tomados na sua singularidade, presos ao trágico do acontecer e da vida dos homens no mundo. O mundo amplia-se pela multiplicação de egos, com as suas experiências diferenciadas. A imaginação produtora, para usar um conceito kantiano, é o veículo de transferência e de ampliação do universo. Esta ampliação não é apenas a do autor. Também o leitor, ao ler o romance - tomando-o, de certa forma, como uma partitura musical - desenvolve o seu poder de transferência e amplia o seu mundo através do convívio com os mundos narrados e as personagens que os habitam.
O caso da poesia lírica é diferente tanto da filosofia como do romance. Nela não há a transferência nem para um universal abstracto preso ao destino dos conceitos, nem o descentramento do sujeito poético em múltiplas personagens. Aparentemente, a poesia lírica é o contrário. A singularidade do poeta exprime-se a si mesma, numa aparente oclusão, na qual emerge uma linguagem singular, uma linguagem que resiste à comunicação imediata. Contudo, o cerne da poesia lírica - a metáfora - é ele própria um exercício de transferência, a transferência do sentido de uma palavra para outra semanticamente afastada.
O uso da metáfora não se deve interpretar apenas do ponto de vista técnico de produção de um artifício poético. Ele é o sinal de que uma outra coisa, para além da afirmação do ego do poeta, está em jogo na poesia lírica. Não se trata de uma transferência do eu para o outro ou para o universal do conceito. Trata-se antes da misteriosa transferência do que está para além do eu do poeta para dentro da sua linguagem. Aquilo que fala na linguagem da poesia lírica - mesmo quando o poeta lírico diz eu - não é o ego do poeta mas o ser. Na poesia, toda a transferência essencial é dada pela abertura do poeta para que nele, aquilo que o transcende, se possa manifestar e tomar voz. A estranha transferência poética é o fundo onde se enraízam todas as outras transferências, as quais não são mais do que sucessivos e inconscientes exercícios hermenêuticos daquilo que veio à linguagem através da poesia lírica.
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