André Masson - Confusão (1941)
Portugal, este
pobre país que nos coube em sorte, vive uma autêntica explosão de despoletanços.
Nunca ouviu, o improvável leitor, essa palavra? Não, certamente! Mas terá já
ouvido amiúde o verbo despoletar. Não há jornal, nem televisão onde, a
propósito seja do que for, não seja proferido esse novo achado linguístico. O
ministro despoletou uma reforma, o avançado-centro, para não ficar atrás,
despoletou, também ele, uma jogada perigosa que culminou em golo. No outro dia, ia a
caminho da escola, naquele ritmo lento com que gosto de atravessar a cidade, e
escutava a Antena 2. Não é que, até aí, apareceu um crítico de arte que não se
calava com o despoletar produzido pela obra de certo artista? Enfim, não há cão
nem gato que não despolete.
Ora todas estas
bondosas pessoas, as que se fartam de despoletar, empregam a palavra como se
ela significasse desencadear, dar início a qualquer coisa, promover ou produzir
uma certa acção. Destino cruel, porém, aquele que a semântica traça a estes
ousados utilizadores de tão requisitado vocábulo. Se se tiver a humildade de
consultar um dicionário de língua portuguesa, descobre-se que o termo significa
exactamente o contrário daquilo que os seus utilizadores querem que signifique.
Despoletar quer dizer tirar a espoleta a… (por exemplo, a uma granada); tornar
impossível o disparo ou a explosão; impossibilitar a acção; tornar inactivo;
travar.
Quando a
epidemia do despoletar começou a alastrar e o exército dos despoletadores
engrossou, pensei que se tratava apenas de uma aliança, aliás muito portuguesa,
entre a prosápia mais inchada e a néscia fatuidade da ignorância. Enganei-me,
porém, e, como em muitas outras coisas, a vida levou-me a mudar de opinião.
Depois de muito meditar neste mistério, descobri que, no fundo, os portugueses apenas
cometem um acto falhado, isto é, a boca foge-lhes para a verdade.
Quando alguém profere
«vou despoletar uma acção», como se quisesse dizer «vou dar início a uma
acção», no fundo está a afirmar o que verdadeiramente sente: «vou travar esta
treta toda antes que o pessoal se lixe». O despoletar é a palavra mágica que
resume o sentimento dos portugueses: o que queremos é não fazer nada, estar ali
na retranca, travar, mas convém dar a ideia de que somos todos modernaços,
inovadores, empreendedores cheios de iniciativa e de criatividade e, pimba, toca de
despoletar.
Tenho pena do
pobre Engenheiro Sócrates, do rapaz da Economia e da infeliz senhora da
Educação (hoje escreveria, do pobre doutor Coelho, do azougado Pires da Economia
e do Crato, o infeliz inimigo do eduquês). Como podem eles modernizar um povo que, quando
quer dizer acção, utiliza um vocábulo que significa parar, que, quando quer
exprimir a necessidade de dar início a qualquer coisa, emprega uma palavra que
significa travar? Não há plano tecnológico que resista (hoje, diria: não há
empreendedorismo que empreenda). Mas entre um povo de despoletadores, não serão
os governantes os melhores e mais competentes a despoletar? Despoletemos, então!
(Jornal Torrejano, 2006)
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