Descobri a 3.ª Sinfonia de Górecki ao ler um artigo
cujo autor e lugar de publicação esqueci. Recordo apenas uma daquelas
afirmações peremptórias que servem para balizar a história dos acontecimentos e
que valem o que valem. Dizia ele que o século XX musical tinha começado com a Sagração da Primavera, de Igor
Stravinsky (1913), e tinha acabado com a 3.ª
Sinfonia de Górecki (1976).
Durante
muito tempo a obra de Stravinsky exerceu sobre mim um fascínio total. Levado
por esse fascínio procurei a obra de Górecki. A experiência foi devastadora.
Quem experimenta a profunda alegria e a exuberante vitalidade proveniente da Sagração de Stravinski, não pode deixar de
se sentir socado em pleno estômago pela obra de Górecki. A lentidão dos três
movimentos que a compõem, sublinhados pela dolorosa voz da soprano, desenha o
horizonte onde três textos ganham vida e se fundem numa elegia.
O primeiro
texto é uma Lamentação da Virgem, do
séc. XV. O segundo, um pequeno poema escrito nas paredes da cela por uma jovem
prisioneira da Gestapo. O terceiro, a lamentação de uma mãe pela morte do filho
na 1.ª Guerra Mundial. Se a Sagração era
o símbolo da alegria portentosa da vida, a obra de Górecki fazia-me descobrir o
símbolo musical que talvez melhor se adapte ao lutuoso século passado.
Esta
simbologia pode, contudo, ser partilhada pela Paixão segundo S. Lucas (1966), de K. Penderecki. Também nela é a
morte o centro temático. Está, porém, nos antípodas da de Górecki. Nesta é o
sentimento de dor, a emoção da perda, a litania do sofrimento que crescem em
nós. Na Paixão de Penderecki, é a mecanicidade da morte que é sublinhada pela
violência sonora, pelo contraste entre o silêncio e massas sonoras crescentes.
O que nela há de elegíaco esbate-se na violência com que se anuncia a morte de
Cristo. Tudo está consumado. Eis o século XX em todo o seu esplendor.
A obra dessa
época que prefiro é, todavia, o Quatuor
pour la Fin du Temps, de Olivier Messiaen. Este quarteto para violino,
clarinete, violoncelo e piano, escrito nos anos de 1940 e 1941, quando o autor
estava preso pelos nazis, é, na sua complexidade musical, a obra onde melhor
sinto a reconciliação com a vida. O tempo é a imagem da morte e do sofrimento e
o seu fim é a vitória sobre essa morte. O Fim
do Tempo é a esperança crística na eternidade da vida e na imortalidade do homem.
A morte está presente no Quatuor de
Messiaen, mas, na opressão que esboça, há sempre uma abertura para a eternidade,
esse não-tempo onde a sagração da primavera será sem fim. (Jornal Torrejano (adaptado), 2004)
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