Luigi Russolo - Dinamismo en un automóvil (1911)
Quem quiser meditar a natureza dos homens pode começar por O Príncipe,
o extraordinário texto de Nicolau Maquiavel, e talvez em poucos outros lugares
encontrará lição mais adequada. Mas deixemos de lado a meditação sobre o
vício e a virtude da vontade humana. O texto do florentino é o ponto de partida
daquilo que hoje se chama ciência política, uma reflexão sobre o que é a
política e não sobre aquilo que deveria ser. Deste ponto de vista, O Príncipe é um dos textos que
inauguram a modernidade, sob cuja sombra ainda hoje, cerca de cinco séculos
depois, vivemos.
Maquiavel olha para os homens, neste caso os príncipes, como dotados
de uma certa natureza petrificada. Os espíritos impetuosos ou cautelosos triunfam
se os tempos estiverem adequados à sua índole. Mudando-se, todavia, os tempos,
a vontade individual permanece presa à sua inclinação e ao seu modo de ser o
que os arrastará para a ruína: «Concluo, pois, que, modificando a fortuna os
tempos e estando os homens obstinados nos seus modos, são bem-sucedidos
enquanto estes e aqueles concordam e mal-sucedidos quando eles discordam
(Maquiavel, O Príncipe: pp. 234).»
Hoje, porém, a ideia moderna de homem diz-nos que este é completamente
plástico e como tal moldável às múltiplas situações da vida. É isto que, por
exemplo, se pensa em conceitos como os da flexibilidade no trabalho ou da
multifuncionalidade. A pergunta que poderia colocar-se seria, então, a
seguinte: o que é que na modernidade permite fazer esta transição entre uma
concepção ontológica do homem visto como carácter permanente e a actual
concepção de uma flexibilidade manejável até ao infinito?
Quem quiser encontrar a resposta não precisa de sair do próprio
Maquiavel: «Eu julgo realmente isto, que seja melhor ser impetuoso que
cauteloso, porque a fortuna é mulher e é necessário, querendo-a ter debaixo,
vergá-la e acometê-la (idem).» É no conceito de impetuosidade que se deixa
perceber uma das categorias centrais da modernidade, aquela que faz a transição
entre duas visões de homem: a da mobilização (Peter Sloterdijk).
Perante os caprichos da fortuna só a mobilização contínua, o exercício
infindável do arrebatamento, é a resposta possível. Já no século catorze, Jean
Buridan, no campo da física, lançava uma teoria do ímpeto que dava uma
explicação para o movimento de projécteis e objectos em queda livre e preparava
o caminho para Galileu e Newton (para haver movimento deve haver uma força; o
movimento persiste porque essa força se incorpora ao corpo, e vai se consumindo
até acabar).
No cruzamento do conceito psicológico de impetuosidade, entendido como
carácter arrebatado, com o conceito físico de ímpeto nasce então o ideal da
mobilização infinita que já não se aplica apenas ao político (príncipe), mas
que se vai democratizando e anulando as diferenças que separam os homens. Hoje
todos temos o dever de estar mobilizados, isto é, devemos pelo arrebatamento e
pelo ímpeto fazer frente aos caprichos da fortuna para evitar não a ruína do
principado, mas a própria ruína pessoal.
Esse conceito de mobilização é aquele que exige de nós não um carácter
rígido, mas impetuosamente moldável às situações da vida. É por isso que há
políticos a fazer jogging, as
empresas fazem formação do pessoal, as escolas nomeiam professores
coordenadores. Tudo na esperança de que o arrebatamento e o ímpeto não
desfaleçam e nos mantenhamos mobilizados na prossecução eterna, e em cada
momento diferenciada e sempre nova, do movimento. Como se a morte não existisse
e um requiem eterno não fosse o destino único da impetuosa mobilização. (averomundo, 2008/07/15)
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