O voto (elemento masculino) penetra na fenda da urna (elemento feminino) e o acto fica
consumado. Esta analogia rasteira entre o exercício de voto e o acto sexual não
é apenas uma comparação de mau gosto, um devaneio de um eleitor frustrado. Um
daqueles acasos, em que a realidade é pródiga, acabou por simbolizar no acto de
votar o erotismo presente numas eleições democráticas. Há todo um investimento
libidinal que leva os eleitores às mesas de voto. Não é a racionalidade do
dever cívico que é o motor do comportamento do eleitor não abstinente, mas o
desejo. Que desejo é esse? O desejo de a realidade social se conformar com
aquilo que necessitamos, com aquilo em que acreditamos, com os nossos
projectos, em resumo, com a nossa felicidade. E, como todos sabemos, a felicidade
é o objecto último de todo e qualquer desejo.
Pensar-se-á, então, que os eleitores abstinentes sofrem de uma
perturbação da esfera erótica, uma impotência – talvez congénita – perante a fenda
que espera a semente do seu voto. Em leituras com uma inclinação mais
terapêutica, poder-se-ia mesmo dizer que esses eleitores precisariam de um viagra ou de um addyi (o viagra feminino) eleitorais. As farmácias de serviço –
isto é, os partidos concorrentes – têm sido incapazes de encomendar a medicação
e os abstinentes continuam sem desejo de ir votar. No entanto, devemo-nos
perguntar se esses cidadãos serão mais doentes do que nós, os eleitores que
enfrentamos os recessos da urna. Não será o nosso investimento libidinal no
acto eleitoral uma patologia?
É certo que se decidem coisas importantes numas eleições, mas a verdade
é que segurança pública, defesa externa, educação, saúde, impostos, etc., etc.
são matérias de uma chatice incomensurável e que não dão ponta a quem quer que seja. São assuntos dignos de verdadeiros contabilistas,
de gente que sabe usar a sua razão calculadora para precisar os ganhos e as
perdas. O normal seria, então, que em vez de irmos votar cheios de desejo de um mundo
melhor, onde seríamos ilimitadamente felizes, fôssemos direitos à urna de voto,
máquina de calcular na mão, a fazer contas à vidinha. Nada de erotismo, nada de
desejo, apenas a rude frieza daquelas homens que copulam, no calendário
acertado, a mulher para cumprir o dever matrimonial. Isto seria uma
relação saudável com as eleições. Mas embarcámos num terrível transfert e deslocámos o objecto do nosso
desejo de felicidade para estruturas políticas anónimas e impessoais, cuja
função está longe de ser satisfazer os nossos desejos e o ardor da nossa libido.
Este transfert é uma verdadeira
patologia, uma perversão da bênção que o deus Eros derramou sobre os mortais. E o que não falta por aí é gente apaixonada pelo amanhã que cantará se o seu partido ganhar.
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