segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Um exercício de reinvenção


O Jornal Torrejano (JT), nesta segunda encarnação, a de Setembro de 1994, talvez fosse uma iniciativa já anacrónica. Isso, porém, ninguém o imaginaria. Nasceu numa época em que muitos ainda acreditavam na existência de uma esfera pública burguesa, isto é, civil e interessada nos problemas da comunidade, onde se teciam e terçavam argumentos sobre o bem comum. O JT vinha para alargar a esfera pública concelhia, retirá-la da modorra em que vivia há largas décadas. Quis pluralizar a opinião política local e centrá-la no debate do que fosse relevante. No fundo, era um projecto de jornalismo político ao nível concelhio, e isso fazia a diferença relativamente à situação. Nasceu também num tempo em que os jornais eram de papel, coisas materiais e sólidas. As pessoas compravam-nos, sentavam-se numa esplanada e liam-nos, enquanto tomavam café.

Seja no tempo longo da História, seja no tempo curto de uma vida, a verdade é que em 25 anos as coisas mudaram muito. A esfera pública burguesa explodiu. Foi dinamitada pela internet e pelas redes sociais. Com a explosão confundiram-se o público e o privado, a própria intimidade, último reduto do privado, tornou-se pública. O debate político foi substituído por campanhas de hooligans em que as partes se bombardeiam com mentiras e frases ocas. Não se trata de pensar e debater, trata-se de sentir e aniquilar simbolicamente, por enquanto, os oponentes. Por fim, a solidez dos jornais dada pelo papel está a evolar-se com a sua desmaterialização no ciberespaço. O JT foi-se adaptando e tentando andar sobre as águas, evitando o pior que os tempos trouxeram. Ter sobrevivido não foi pequeno feito.

Podemos sempre fazer um exercício de projecção. O que poderá ser o JT daqui a 25 anos, caso ainda exista? Duas coisas parecem claras, talvez as únicas. Será completamente desmaterializado. Será lido em dispositivos electrónicos como já sucede em muitos casos agora. Também a velha esfera pública burguesa, com os seus rituais de racionalidade, que animou o projecto em 1994, não voltará. Todo o resto é uma incógnita. O facto de ser uma incógnita é uma vantagem, pois obrigará o JT a repensar-se, a recriar-se, a tirar partido da contínua transformação tecnológica. Obrigá-lo-á a olhar para a sociedade e encontrar os destinatários que, através dele, renovarão o vínculo que os ligará a um destino comum. O melhor presente que o JT pode ter neste aniversário é o espaço fechado do futuro. Esse será o campo que terá de desbravar, o que lhe exigirá um repensar-se e um redesenhar-se constantes.

[A minha crónica na Revista dos 25 anos do Jornal Torrejano]

sábado, 28 de setembro de 2019

O prazer de ir a lado nenhum


O maior prazer daqueles que frequentam a literatura será o da deambulação, visitar lugares desconhecidos e confrontar-se com mundos inesperados, andar por aí sem ir a lado nenhum. Se quisermos uma prova sobre a existência de uma pluralidade de mundos, basta uma palavra: literatura. Cada romance traz com ele um mundo, diríamos um mundo potencial onde seria plausível imaginar pessoas de carne e osso a viver, carregadas com as suas expectativas, vitórias e o drama das derrotas. A poesia é ainda mais radical, pois cada poema, pequeno que seja, traz em si um universo. O que esses mundos da literatura possuem de especial é que a sua criação é feita a duas mãos. O escritor e o leitor que conclui no seu espírito a obra produzida pelo autor. Não há apenas um romance Os Maias ou um A Montanha Mágica. Há tantos quantos os leitores que, ao interpretarem os textos, os fazem viver sempre de forma singular.

Há quem diga que apenas lê os clássicos. A justificação que apresenta é pertinente. Como aquilo que há para ler é tanto e a esperança de vida tão curta, o mais ajuizado é dar atenção apenas ao que a tradição canonizou. No entanto, esta perspectiva impede-nos o prazer da descoberta, evita a experiência do erro, põe de lado toda uma riqueza literária que o tempo apagou. Se seguisse esse sábio conselho nunca teria descoberto Joaquim Paço de Arcos, nem estaria a ler Carlos Malheiro Dias. Este era visto, após a morte de Eça de Queiroz como o grande romancista português. O tempo não esteve de acordo, mas é um escritor que vale a pena ler. Tem um poder descritivo de grande alcance e precisão e não deixa de ecoar nos universos literários que constrói um ethos que desconhecemos.

Como dizia a princípio, o grande prazer é o da deambulação. E é isso que faço neste momento, indo entre Malheiros Dias, Filho das Ervas, e Anatole France, A Revolta dos Anjos, atravessando pelo meio os poetas Daniel Jonas, Canícula, Amândio Reis, Spinalonga, e Manuel Rodrigues, Anastática (em homenagem a Alberto Pimenta), sem esquecer os dois livros da Ivone Mendes da Silva, Dano e Virtude e A Mulher do Meio. O interesse desta errância é o da pluralidade das experiências que, enquanto leitor, sou submetido. Se apenas lesse aquilo que consta do cânone literário, talvez nem o Anatole France estivesse a ler. Não teria, contudo, o prazer de me perder por caminhos que se bifurcam, se opõem, se anulam e apagam, que, para dizer tudo, não vão a lado nenhum. E que prazer maior pode haver, num mundo onde toda a gente quer ir a algum lado, do que não ir a lado nenhum?

[A minha crónica no Jornal Torrejano]

sábado, 21 de setembro de 2019

Metamorfoses mecânicas

Marcel Duchamp, The Passage from Virgin to Bride, 1912
Subitamente é-nos dado a ver a natureza mecânica de toda a metamorfose, um exercício de desfiguração e de promessa de reconfiguração. A aura romântica que cobria a passagem da inocência ao compromisso mostra uma faceta maquinal que o discurso amoroso e social ocultava. A intensidade da luz projectada pelo quadro de Duchamp diminuiu drasticamente mais de um século depois. A distância que vai do estado virginal ao de compromisso matrimonial alongou-se desmedidamente, como se a mecanicidade que o habitava fosse insuportável.

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Uma doença

Aurelie Nemours, Axel, 1979

Não há nada como uma boa falácia. Para hoje uso a da bola de neve. A Idade Média foi uma época teocêntrica. Deus era o centro do universo e da vida social. O Renascimento e os Tempos Modernos representaram uma revolta contra o teocentrismo em nome do Homem. Este tornou-se o centro do universo e da sociedade. Nos dias de hoje, o antropocentrismo tem já muito má imprensa. Acusado pelos combatentes contra o especismo, o antropocentrismo arrisca-se a entregar a alma ao criador, estando nós na alvorada de um novo interesse dos homens, o animalismo, onde todas as espécies animais são irmãs. É de prever que, chegando-se ao estágio em que os interesses do homem não são Deus nem ele próprio mas o animal, se vislumbre que o animalismo é ainda uma espécie de racismo que protege os animais em detrimento das plantas, que também partilham com os animais a vida. O biologismo será a estação seguinte. A queda parece não ter fim. O raciocínio é falacioso? É. No entanto, há qualquer coisa de doentio na crítica ao antropocentrismo motivada pelo combate ao especismo e à diferença ontológica entre os seres humanos e os animais não humanos.

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Pretérito Imperfeito 5. Vila antiga

Peter Lanyon, Cross Country, 1960

5. Vila antiga

Abriram as vidraças
e o hálito da memória
chegou com o vento
vindo do casulo da serra

Sopravam tempestades
comércios de guarda-pó
um rossio de erva seca
indústrias sobre o rio

Domingo, o sino tocava:
a missa do meio-dia
as raparigas deslizavam
no inverno de S. Pedro.

[Pretérito Imperfeito, 1981]

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Espanha, a impossibilidade de uma geringonça

Pablo Picasso, Escenas de corrida, 1945
Duas coisas, conjugadas, impedem que a esquerda espanhola de formar governo, numa reedição do outro lado da fronteira da geringonça portuguesa, o que implica novas eleições a 10 de Nevembro, depois das inúteis legislativas de 28 de Abril passado. Em primeiro lugar, a vexata quaestio da Catalunha. Em segundo lugar, o peso demasiado grande do Unidos-Podemos. Poder-se-á argumentar que em Portugal, o peso eleitoral do BE e do PCP era maior e não foi obstáculo à formação de um governo suportado pelas esquerdas. É verdade, mas o facto de estarem divididos e possuírem objectivos diferenciados permitiu a António Costa formar governo sem ter de abdicar do essencial das suas convicções, as quais estão mais próximas do centro-direita do que da esquerda. O Unidos-Podemos ocupa um lugar à esquerda do PSOE sem concorrência e tem, por isso, mais poder para pôr em causa as políticas dos socialistas espanhóis, não muito diferentes das dos portugueses.

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Preconceito de género

Bartholomäus Spranger, Hermaphroditos and Salmacis, c. 1598
Um casal inglês recusa a revelar o sexo da(o) filha(o), que já vai pelos 17 meses, para que a criança não seja objecto do preconceito de género (ver aqui), e assim poder escolher livremente o género com que se identifica. Esta radicalização ingénua do Iluminismo, na luta deste contra o preconceito, vai acabar mal. De momento, já ajudou a eleger presidentes nos EUA e no Brasil. Se este tipo de atitudes em busca da correcção política se tornar uma praga na Europa, o provável é que os próprios europeus se sintam na necessidade de defender os velhos preconceitos e nada garante que atrás da defesa destes não venha a da autoridade e a do privilégio. No racionalismo das Luzes sempre habitou uma irracionalidade desmedida.

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Beatitudes (16) O lugar

Deborah Turbeville, Vera Arbuzova, Stroganov Palace, 1996
Esperar a morte onde a ruína se insinua. Entregar-se a uma longa agonia no lugar que a caliça infestou com o vírus da derrocada. Silenciar-se eternamente na palácio infestado pelo tempo. Esta é a última das beatitudes, aquela após a qual nenhuma devastação virá nem qualquer queda te arrastará para o desassossego da vida.

domingo, 15 de setembro de 2019

O sarilho do modo de vida europeu

Simón Vouet, El rapto de Europa, 1640
Talvez não exista melhor sintoma do sarilho político que varre a União Europeia do que a criação de uma vice-presidência da Comissão Europeia com a finalidade de "proteger o modo de vida europeu". Como a senhora Von der Leyen não provém de um governo de extrema-direita racista e xenófobo, pelo contrário, a escolha desta designação não deixa de ser o reconhecimento de que existe um problema político, e esse problema político está ligado a um desafio ao modo de vida europeu. Seja este desafio real ou ilusório, a verdade é que em política o que parece é. A ignorância deliberada que a direita e a esquerda europeias têm ostentado perante o problema foi a porta por onde a extrema-direita entrou para se instalar nos sistemas políticos de muitos países europeus. Reconhecer que há um problema é já uma boa coisa, apesar das críticas severas a que a nova Presidente da Comissão tem sido sujeita. Pelo menos, abre caminho para pensar uma política alternativa à extrema-direita, uma política que busque compatibilizar a integração de quem vem de fora com a tranquila certeza de que os valores da liberdade individual e da democracia política serão  defendidos sem quaisquer contemplações. Falta saber, porém, se não é já demasiado tarde e o crescimento da extrema-direita em países com a Itália, a França, a Alemanha, a Holanda e até em Espanha não será já imparável, apesar dos resultados das últimas eleições europeias.

sábado, 14 de setembro de 2019

Pretérito Imperfeito 4. Leveza

José Bellosillo, A contra muerte, 2000

4. Leveza

Havia leveza em tudo
o que fazias

Havia fontes de água morta
ao sol poente

E as horas cumpriam-se
em ser horas
a desaguar nos dias

[Pretérito Imperfeito, 1981]

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Ensaio sobre a luz (72)

Fernando Lerín, Sem título, 1959

Quem de súbito olha quase vê um fogo intenso, que esmorece quando se inclina para os lados, e se dissipa no interior da grande sala, para tecer zonas sombrias, naqueles pontos onde a luz se alimenta de um desejo de abandono e morte.

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Ensaio sobre a luz (71)

Irving Penn, Vogue cover, 1950
No princípio era a luz, depois surgiram as sombras e destas provieram as trevas. Nesse momento,  por frágil combinação das três, eclodiram os seres que logo povoaram os infinitos espaços vazios. Todos eles temem que um dia a luz se exceda e dissipe trevas e sombras. Seria o fim do mundo, dizem.

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Rituais eleitorais

Umberto Boccioni, Agitate Crowd Surrounding a High Equestrian Monument, 1908

No artigo do Público de sábado passado, Pacheco Pereira argumentava que as campanhas eleitorais são um contributo para a abstenção. Muito provavelmente sê-lo-ão. No entanto, o mais interessante é que elas são um exercício de nostalgia. Nostalgia de quê? Desses primeiros tempos fundadores da democracia, onde existia uma forte polarização política e as campanhas eleitorais eram exercícios de mobilização dos vários povos. Havia a crença de que uma grande mobilização na campanha se traduziria em votos nas urnas. Então, toda uma coreografia festiva, em parte importada em parte inventada localmente, era posta em movimento. O que hoje em dia assistimos é a um exercício nostálgico e revivalista desses tempos de polarização. Como não existe qualquer polarização na sociedade portuguesa, as campanhas eleitorais, com as suas arruadas, comícios e jantares, são exercícios patéticos que não comovem ninguém, não mobilizam ninguém, não influenciam ninguém. Tornaram-se um ritual eleitoral cujo sentido teológico se perdeu.

terça-feira, 10 de setembro de 2019

Alma Pátria 55: José Jorge Letria, Tango dos Pequenos Burgueses



Naquele tempo, os três pilares do regime eram Deus, Pátria e Família. Deus e a Pátria não se discutiam e a família era o lugar onde todos, virtuosamente, aprendiam a não discutir Deus, a Pátria, ou sequer - ou principalmente - a autoridade e o seu prestígio. A família era o lugar onde os seres humanos aprendiam a permanecer, na paz do lar, eternamente domésticos. O Tango dos Pequenos Burgueses, do álbum Até ao Pescoço (1972), de José Jorge Letria, é uma sátira à idealização da família feita pelo Estado Novo. Um exercício de desmontagem das estruturas ideológicas e das realidades sociais que se escondiam sob a aparência de uma família tão unida, tão discreta e ordenada, com o gato, a criada e a vizinha do lado. O pior é que foi tudo descoberto entre a criada e o patrão. Era a crise da habitação, isto é, o estertor de um regime já moribundo.

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Pretérito Imperfeito 3. Destino

Fernando Lerín, Sem título, 1998

3. Destino

Da perfeição do destino,
da obscura solidão,
da cadência das estrelas
a cintilar à luz das velas,
ninguém te fala.

Retiveram as palavras,
as águas do Outono,
a sombra do castelo
coberta de pedra
no vazio de Santa Maria.

Deus, cansado de luas,
deu-nos uma terra
e partiu em jangada
de areia e névoa
para o silo do silêncio.

[Pretérito Imperfeito, 1981]

sábado, 7 de setembro de 2019

Descalabros, duelos, metamorfoses e Inferno


O DESCALABRO DA DIREITA. As sondagens têm vindo a indicar que a direita democrática está à beira de um resultado desastroso, por volta dos 25%, somando velhos e novos partidos. Isto dificilmente será verdade e, caso seja, não será bom, nem para o país nem para a esquerda. A direita sociológica em Portugal não se reduz, nem de perto nem de longe, a um quarto da população e é uma direita activa e participativa. Certamente que chegada a hora os votos aparecerão nas urnas. Caso, porém, as sondagens se confirmem, teremos um problema. Uma parte significativa do eleitorado não encontrou representação e pode ficar disponível para alternativas radicalizadas.

O DUELO PS – BE. A animosidade entre PS e BE não é coisa nova. Data pelo menos do tempo de Sócrates. O motivo é simples: o BE tem grande capacidade de penetrar no eleitorado do PS. Uma das razões que levou António Costa à geringonça foi mesmo esse conflito. Costa sabia que um eventual apoio, mesmo que por abstenção, a um governo minoritário de direita, reduziria drasticamente o PS e daria ao BE um eleitorado que se poderia aproximar dos 20%. O PS está consciente que o seu eleitorado dificilmente votará no PCP, mas a questão não é a mesma com o BE. Ambos pescam nas mesmas águas eleitorais.

METAMORFOSES À ESQUERDA. Em entrevista ao Observador Catariana Martins diz que o programa do BE para as eleições é social-democrata. Isso causou gargalhadas em gente de direita e engulhos em crentes na revolução. No entanto, o processo de social-democratização da esquerda revolucionária portuguesa é muito antigo. O PCP está nesse processo desde o 25 de Novembro de 1975, se não antes. O BE nunca foi outra coisa. A criação do BE foi a forma como um conjunto de pessoas e organizações radicais encontraram para se social-democratizarem. Tirando um ou outro crente mais distraído, toda a gente percebeu que fora da economia de mercado e da democracia liberal o que existe não é o paraíso mas o inferno.

POR FALAR NO INFERNO. O Brasil e o Reino Unido entraram numa fase infernal. A polarização política em ambos conduziu a uma situação em que a prudência que deve pautar toda a acção política se está a diluir. Parece mesmo que estamos na fase de criação de uma Internacional da insensatez, sob a égide de Trump, cujo objectivo é substituir a prudência na política pelo risco, a porta do Inferno. Tudo isto, enquanto o planeta arde (não é só a Amazónia), os pirómanos negam que a acção humana contribua para as alterações climáticas e todos nós continuamos na nossa vidinha, a deitar mais lenha para a fogueira infernal.

[A minha crónica no Jornal Torrejano]

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Descrições fenomenológicas 47. Uma freira caminha

Carlos de Paz, Con pensamientos abollados I, 2001

Um matagal de ervas e arbusto baixos. Corta-o um carreiro de terra batida, calcada pela passagem contínua de seres humanos. Ao longe, suspeita-se um pântano, sobrevoado por patos. Ouvem-se tiros de caçadeira. Uma ave cai e o ladrido dos cães ressoa no espaço aberto. Alguns pinheiros esgalgados cortam a rasura da paisagem. Erguem-se aos céus com os seus troncos finos, dos quais brotam ramos que acabam por se cobrir de agulhas. O vento agita-os, fazendo vacilar o verde com que se disfarçam, e que assim toma diferentes tonalidades à luz baça da manhã. De um deles sai um corvo. Sobrevoa o território e torna a pousar no ramo de onde partiu. Um céu cinzento, mistura imprecisa de nuvens mais e menos densas, desenha um jogo de claros-escuros, de onde desliza a luz. No estreito caminho, uma freira move-se, mergulhada na solidão. Um passo firme, cadenciado, faz-lhe tremer o hábito, que esconde o corpo. Por vezes, quebrada a cadência, o impulso da caminhada faz-lhe saltar no peito o crucifixo pendente dum fio prateado. Da mão direita, cai um terço que, com o caminhar e o desfiar das contas, tremula inquieto. De hábito negro, ela inclina-se para a frente, enquanto anda, como se quisesse antecipar a chegada. Os lábios movem-se em surdina, segundo um ritmo a que o tempo tirou novidade, cobrindo-o com a precisão do hábito. Uma vez por outra, pára, olha o horizonte e com um lenço branco seca o rosto afogueado. Ao retomar o caminho, apressa-se, mas logo retoma à cadência monótona que a há-de levar ao mosteiro que, ainda oculto, a espera.

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Kôji Wakamatsu, O Embrião Caça em Segredo


Influenciado pela Nouvelle Vague, o filme do japonês Kôji Wakamatsu,  O Embrião Caça em Segredo (1966), filmado a preto e branco, é um exercício de grande depuração estética – certamente, com orçamento muito reduzido – sobre a prática continuada da violência e da dominação. Num curto espaço de 72 minutos, o autor condensa um conjunto de reflexões que dão densidade a um a obra de grande crueza. A abertura do filme começa com uma citação, em tradução talvez demasiado livre, do Livro de Job: Maldito seja o dia em que nasci, Por que não morri dentro da barriga da minha mãe? Porque não expirei ao sair das suas entranhas? O horizonte onde se inscreve a narrativa está dado, o da recusa da vida.

Yuka, uma jovem empregada de balcão, encontra-se com Sadao, um seu superior hierárquico, e aceita subir ao apartamento deste. Exceptuando as cenas iniciais num carro, todo o filme se passa no espaço concentracionário em que o apartamento se vai transformar. Yuka é assombrosamente parecida com a mulher de Sadao, que o abandonou. A fonte do conflito dentro casamento era a questão dos filhos. A mulher queria desesperadamente um filho, mas Sadao rejeitava-o categoricamente. Fizera-se operar para assegurar a esterilidade. A recusa de ter filhos residiria num acontecimento traumático da infância, ligado à sexualidade da mãe, uma presumida infidelidade. É o desejo de maternidade inscrito na carne das mulheres a origem de todo o mal e é isso que é necessário sacrificar como forma de libertação da mulher.

Devido à semelhança de Yuka com a mulher, Sadao vai projectar nela os sentimentos de amor e ódio que nutria por aquela que o trocou por um filho, traçando a partir dessa transferência um projecto de libertação para Yuka. Através da violência e da subjugação ao dominador, esta poderia libertar-se do nefando desejo que corrói as entranhas de todas as mulheres, gerar um embrião e transformá-lo num filho. Só essa emancipação da biologia libertará a mulher para um amor puro, não maculado pela estratégias ínvias da multiplicação da espécie. O filme é implacável na ostentação de cenas de grande violência exercida por Sadao sobre Yuka, a qual surge sempre despida. No entanto, o sadismo é um caminho de libertação e de emancipação para a vitima, a sua preparação para o mais puro dos amores.

Para além da reflexão sobre a transferência e a identidade, sobre a violência e a dominação sexual do outro, sobre o desejo e o amor, o filme contém uma subliminar mensagem política. Poderá uma longa ditadura, com o seu rol de violências inomináveis, conduzir a uma emancipação? Não será o exercício da violência política revolucionária a expressão de um sadismo que disfarça o seu prazer de praticar o mal com a proclamação um novo tempo em que todos serão livres e libertados do mal? A resposta que o filme dá é a da rejeição da autoridade irrestrita como caminho para a liberdade. O que acontece é que a violência do emancipador vai conduzir a que o emancipando se queira libertar do emancipador. Deste ponto de vista, todo o filme pode ser visto como uma metáfora política, uma desmontagem dos projectos revolucionários assentes na violência e na ditadura como caminho para a liberdade dos oprimidos. Na verdade, todas essas práticas não passam de um exercício sádico proveniente de uma relação patológica com a vida, um desejo de a aniquilar, uma expressão violenta do niilismo.

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Ensaio sobre a luz (70)

Henri Cartier-Bresson, Mexico, Oaxaca, 1963/Magnum Photos
As sombras pesam sobre a solidez da casa. Movem-se como corpos desterrados da pátria, entre paredes, escadas e colunas. O exílio nunca deixa de ser uma promessa de retorno, o princípio de um caminho que leva das trevas ao turvo rumor da luz.

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Pretérito Imperfeito 2. Avenida Marginal

Juán José Vera, Azul, 1982

2. Avenida Marginal

Erguem-se árvores
na margem do rio

Barcos a balançar
na raiva dos ventos,
dedos rugosos
e lentos e esguios

Mistérios da manhã
no rumor do roseiral.

[Pretérito Imperfeito, 1981]

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Um problema de prudência


A coisa vai acabar mal. A coisa é a vida dos homens sobre este planeta. Não se trata de prognosticar o desaparecimento da nossa espécie, mas de lembrar que as condições que suportam, na Terra, a existência de tantos indivíduos humanos possam estar a sofrer uma rápida erosão. É verdade que ao lado das correntes optimistas que se desenvolveram a partir do Iluminismo, como o liberalismo e o socialismo, foram surgindo também visões pessimistas, cuja obra emblemática é A Decadência do Ocidente, de Oswald Spengler, publicada na sequência da primeira Grande Guerra. Com a Guerra Fria e a ameaça nuclear, depois das experiência de Hiroxima e Nagasaki, o pessimismo radicalizou-se num catastrofismo. Este encontrou um reforço nos problemas ambientais e no tema do aquecimento global causado pela acção imprudente da humanidade.

A Guerra Fria foi um exercício de prudência das partes em confronto, o que permitiu evitar o desastre nuclear. A prudência é uma sabedoria prática fundada na boa capacidade de julgar, na excelência do carácter e na bondade dos hábitos. Quando, nos tempos modernos, falamos de políticos prudentes, porém, estamos a dar atenção a uma forma de prudência amputada. O político prudente é aquele que evita acções temerárias e que sabe calcular os passos que deve dar para atingir os seus objectivos com o menor custo possível. Deste ponto de vista, um político prudente pode ter um péssimo carácter e terríveis hábitos. Os tempos modernos tomaram consciência que a excelência política e a excelência moral poderiam – e muitas vezes deveriam – ser independentes.

Tanto com a actual vaga mundial de eleição de políticos insensatos como com a contínua desvalorização dos problemas climáticos, estamos a assistir às consequências da separação entre moral e política. A prudência política, em primeiro lugar, perdeu a virtude moral e, agora, está a perder a sensatez do cálculo, isto é, está a desaparecer. No entanto, o facto do mundo se estar a encher de líderes irresponsáveis não é ainda o principal problema. A inquietação fundamental reside na própria decadência da virtude da prudência entre os cidadãos. A excelência do carácter perdeu importância, os maus hábitos são motivo de ostentação e a sabedoria prática que ajuda a julgar correctamente as situações e o carácter de terceiros – nomeadamente, daqueles que escolhemos para nos representarem e governarem – está em franco retrocesso. Ora, sem cidadãos prudentes é possível que tudo possa acabar mal, muito mal.

[A minha crónica em A Barca]

domingo, 1 de setembro de 2019

Alma Pátria 54: Duo Ouro Negro, Au Revoir Silvye



Agora que Setembro começou, refira-se que um dos elementos estruturantes da alma pátria era, naqueles tempos, o engate de praia. Não havia nada mais patriótico do que, perdoe-se-me a coloquialidade da expressão, andar a comer uma bifa, assim se designando, por contiguidade metonímica, todas as incautas estrangeiras, mais ou menos alouradas, que aportavam pelas praias lusitanas. É do que trata o êxito de 1972, do Duo Ouro Negro, Au Revoir Silvye. É evidente que se nota aqui já uma acentuada degeneração rácica. Quando se canta "ela vai p'ra Paris e eu vou ficar / Vou ficar infeliz e Silvye vai lembrar", percebe-se que a pobre Silvye só pode lembrar-se eternamente do amante português ou não fora ele português. Que raio de homem, porém, é ele que se entrega à melancolia do sentimento e se  proclama infeliz depois de ter papado, uma expressão então em voga, a pequena? A coisa era comer e andar, que Silvyes era o que mais havia. A primavera marcelista estava já a ter consequências nefastas na qualidade da população masculina da pátria e tudo isso só podia prognosticar uma catástrofe, como se comprovou em Abril de 1974, que deve ter sido uma coisa de gajos infelizes que cantavam as Silvyes que os trocavam por Paris.