quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Kôji Wakamatsu, O Embrião Caça em Segredo


Influenciado pela Nouvelle Vague, o filme do japonês Kôji Wakamatsu,  O Embrião Caça em Segredo (1966), filmado a preto e branco, é um exercício de grande depuração estética – certamente, com orçamento muito reduzido – sobre a prática continuada da violência e da dominação. Num curto espaço de 72 minutos, o autor condensa um conjunto de reflexões que dão densidade a um a obra de grande crueza. A abertura do filme começa com uma citação, em tradução talvez demasiado livre, do Livro de Job: Maldito seja o dia em que nasci, Por que não morri dentro da barriga da minha mãe? Porque não expirei ao sair das suas entranhas? O horizonte onde se inscreve a narrativa está dado, o da recusa da vida.

Yuka, uma jovem empregada de balcão, encontra-se com Sadao, um seu superior hierárquico, e aceita subir ao apartamento deste. Exceptuando as cenas iniciais num carro, todo o filme se passa no espaço concentracionário em que o apartamento se vai transformar. Yuka é assombrosamente parecida com a mulher de Sadao, que o abandonou. A fonte do conflito dentro casamento era a questão dos filhos. A mulher queria desesperadamente um filho, mas Sadao rejeitava-o categoricamente. Fizera-se operar para assegurar a esterilidade. A recusa de ter filhos residiria num acontecimento traumático da infância, ligado à sexualidade da mãe, uma presumida infidelidade. É o desejo de maternidade inscrito na carne das mulheres a origem de todo o mal e é isso que é necessário sacrificar como forma de libertação da mulher.

Devido à semelhança de Yuka com a mulher, Sadao vai projectar nela os sentimentos de amor e ódio que nutria por aquela que o trocou por um filho, traçando a partir dessa transferência um projecto de libertação para Yuka. Através da violência e da subjugação ao dominador, esta poderia libertar-se do nefando desejo que corrói as entranhas de todas as mulheres, gerar um embrião e transformá-lo num filho. Só essa emancipação da biologia libertará a mulher para um amor puro, não maculado pela estratégias ínvias da multiplicação da espécie. O filme é implacável na ostentação de cenas de grande violência exercida por Sadao sobre Yuka, a qual surge sempre despida. No entanto, o sadismo é um caminho de libertação e de emancipação para a vitima, a sua preparação para o mais puro dos amores.

Para além da reflexão sobre a transferência e a identidade, sobre a violência e a dominação sexual do outro, sobre o desejo e o amor, o filme contém uma subliminar mensagem política. Poderá uma longa ditadura, com o seu rol de violências inomináveis, conduzir a uma emancipação? Não será o exercício da violência política revolucionária a expressão de um sadismo que disfarça o seu prazer de praticar o mal com a proclamação um novo tempo em que todos serão livres e libertados do mal? A resposta que o filme dá é a da rejeição da autoridade irrestrita como caminho para a liberdade. O que acontece é que a violência do emancipador vai conduzir a que o emancipando se queira libertar do emancipador. Deste ponto de vista, todo o filme pode ser visto como uma metáfora política, uma desmontagem dos projectos revolucionários assentes na violência e na ditadura como caminho para a liberdade dos oprimidos. Na verdade, todas essas práticas não passam de um exercício sádico proveniente de uma relação patológica com a vida, um desejo de a aniquilar, uma expressão violenta do niilismo.

2 comentários:

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.