segunda-feira, 31 de agosto de 2020

A Garrafa Vazia 12

Cristiano Cruz, Cena de guerra, 1916-18

O grude já não cola
o que sobra
dos sobejos da vida.

Tábuas empenadas
de ninguém
são salvação.

Resta o aroma
da miséria a dançar
na fronda da fogueira.

Novembro de 2019

domingo, 30 de agosto de 2020

Sonhos numa noite de Verão 21

António Soares, sem título, 1914
A atmosfera era tão difusa que nunca cheguei a perceber onde me encontrava, nem o que faziam as pessoas. Umas entravam, outras saíam. Algumas demoravam-se, como se aquele fosse o lugar onde habitavam. Andava perdido. Espreitava as faces de quem via, mas também elas eram indistintas. De súbito, vi, ainda ao longe, uma mulher vestida de preto. Caminhava como se deslizasse e foi-se aproximando sem pressa. O rosto estava definido. Belíssimo. Senti uma vertigem e uma sensação de terror nasceu em mim. Quando estava perto, perguntei-lhe se era a minha morte. Sou a sombra de uma sombra, respondeu, enquanto passava pelo meu corpo como se eu não fosse mais do que um espírito destituído de carne. Quando acordei, uma sombra coava-se pela porta do quarto.

sábado, 29 de agosto de 2020

Nocturnos 22

António Pedro, Nocturno, Árvores humanas, 1940
De noite, as mulheres são árvores. Deixam crescer as raízes e fendem a terra em busca do segredo que se esconde no fundo mais fundo do ser. 

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Saudades da ditadura


Das muitas fotografias que o fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson fez no nosso país, no ano de 1955, há uma que diz muito sobre o regime político em que se vivia e o grau de atraso social e tecnológico que era o de Portugal. Não me refiro a qualquer das fotografias onde surgem miúdos de pés descalços, nem a nenhuma das que mostram as portuguesas vestidas de negro, como se vivessem um luto eterno, tão pouco a alguma onde se observam homens adultos vestidos com roupas que não são mais que um conjunto de remendos cozidos entre si. Deixemo-las de lado.

A fotografia a que me refiro é aquela em que se vê uma planície alentejana a perder de vista, rasgada por uma estrada – uma recta sem fim – em estado de conservação medíocre. De um dos lados da estrada, vê-se uma fileira de postes de electricidade. Do outro, muito ao longe, uma casa isolada. Os campos estão sem cultura alguma, talvez numa fase entre duas campanhas do trigo. Esta sensação de abandono que se desprende da paisagem alentejana pega-se aos olhos como se fosse uma infecção difícil de debelar. Nessa estrada infinita, vê-se, de costas, um casal num veículo. Não são, obviamente, trabalhadores rurais. Ele tem fato e chapéu à lavrador alentejano e ela está vestida com algum cuidado, onde se vê que procura mostrar uma elegância discreta. O veículo, porém, não é um automóvel descapotável, mas uma rudimentar carroça. Estávamos em 1955.

Esta fotografia diz muito do que era Portugal nesses tempos, dos quais parece que há por aí gente saudosíssima, embora nunca os tenha vivido. Aquele casal não era, certamente, composto por pessoas ligadas ao grande latifúndio, mas também não pertencia ao mundo da terrível pobreza – de passar fome – que devastava então o Alentejo. Faziam parte do que se podia considerar a classe média local da altura. Costuma-se dizer que nesses tempos até os ricos eram pobres. Embora não seja exactamente verdade no que diz respeito aos muito ricos, as classes médias, além de pequenas em número, viviam numa austeridade contínua que tocava uma pobreza envergonhada.

Toda aquela desolação não se devia, nem de perto nem de longe, às condições tecnológicas da época, mas a opções políticas que fecharam o país não apenas à democracia e ao debate de ideias, mas ao desenvolvimento científico, tecnológico e empresarial. Uma parte do país, mesmo em 1974, quase 20 anos depois da fotografia referida, vivia praticamente como na Idade Média. Quando as pessoas louvam a ditadura e estendem o lençol dos encómios ao professor Salazar, seria bom que tivessem consciência de que, muitas delas, se vivessem nesse tempo passariam fome e andariam descalças. Talvez seja isso que desejam experimentar.

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Thomas Bernhard, Perturbação


Publicado em 1967, Perturbação (Verstörung) é o segundo romance do escritor austríaco Thomas Bernhard. O autor faz parte de uma linhagem notável de escritores austríacos, onde se inscrevem Robert Musil e Hermann Broch. Como nestes autores, também em Bernhard encontramos uma literatura que mais do que contar histórias pretende desvelar a realidade não apenas do mundo humano, mas do próprio mundo que se manifesta através da humanidade. Se o leitor pretender uma boa história, com uma intriga bem urdida e um desenlace de cortar a respiração, então não vale a pena abrir o romance. Se, todavia, achar que a arte, no caso a literatura, é um lugar de aprendizagem e de reflexão sobre aquilo que é essencial e um questionamento sobre o sentido da existência, então terá no escritor austríaco uma proverbial companhia.

O livro parte de uma ideia simples. Um médico da zona dos Alpes austríacos perante a incomunicabilidade crescente entre ele os dois filhos, agravada com a morte da mulher, decide convidar o mais velho, estudante de engenharia de minas e com a pretensão de se tornar cientista, a acompanhá-lo num dia de visitas aos pacientes que tem nas diversas aldeias. A ideia seria lançar uma ponte para estabelecimento de comunicação. O tempo romanesco corresponde assim apenas a um dia, a uma viagem de um dia pelo mundo dos enfermos tratados pelo pai. Se olharmos para a ordem do mundo, faz parte dela a doença. Esta, na verdade, não representa uma perturbação, mas apenas um elemento negativo em tensão com a saúde, tal como a morte se encontra em tensão com a vida, fazendo ambas parte de um mundo organizado e não caótico. O que o jovem candidato a cientista, um representante da racionalidade, e narrador, vai descobrir é uma realidade profundamente perturbada, muito além – ou aquém – da doença. O mundo rural da montanha que descreve Bernhard está longe da imagem idealizada da ruralidade que ainda hoje transportamos. Pelo contrário, é um mundo brutal, violento e profundamente perverso, onde o assassinato, a violação de crianças e o suicídio parecem ser correntes. Se se pensar que o mundo rural é o lugar onde persistem as sagradas normas da moralidade, as descrições de Bernhard são um terrível soco no estômago. Todo aquele mundo sofre, para além da doença física, uma doença moral resultante de uma incomunicabilidade entre os seres humanos, reflexo de uma perturbação radical da ordem do mundo.

Este mundo é descrito na primeira parte do romance, através dos diversos pacientes do pai do narrador. Esta primeira parte da viagem do jovem é uma verdadeira peregrinatio ad loca infecta, uma iniciação à vida tal como ela é. A segunda e última parte, mais de metade do romance, narra a visita ao príncipe Saurau, um grande latifundiário, cuja sombra se estende por toda aquela zona montanhosa. Aquilo que o narrador descreve é o longuíssimo monólogo do príncipe que se estende por cerca de 140 páginas. Tudo aquilo que inquieta, desassossega e perturba o príncipe é objecto do seu monólogo. As relações familiares, as relações com o mundo envolvente, o futuro da sua propriedade. Tudo é passado em revista, tecendo o príncipe comentários contraditórios, produzindo afirmações que se anulam entre si, deduzindo conclusões sustentadas por premissas inverosímeis. A questão central, porém, é a relação com o filho, e herdeiro único, e por causa disso a profunda preocupação com o futuro de Hochgobernitz, a propriedade da família, com os seus interesses económicos diversificados e o grande número de pessoas dependentes dos Saurau.

Se a incomunicabilidade entre o médico e o filho/narrador é grande, este assiste à exposição de uma incomunicabilidade mais radical. Um dos momentos mais extraordinários do monólogo do príncipe é quando este, numa espécie de prolepse profética, descreve minuciosamente a destruição de Hochgobernitz pelo filho, após a sua morte. É uma destruição que é apresentada como se fosse uma luta de alguém que se afastou para Londres e se pretende defender de tudo o que há de perturbante naqueles lugares, na sua própria família, nas gentes que dependem ou vivem na área de influência dos Saurau. O facto de o filho do médico assistir ao discurso do príncipe é o ritual final da cerimónia iniciática ao mundo da vida como desrazão, iniciada na primeira parte, em que foi tomando conhecimento da perturbação do mundo rural. O jovem candidato a cientista toma conhecimento de uma outra realidade onde a razão com os seus imperativos técnicos e morais não funciona.

Existem algumas leituras do romance que defendem que a principal personagem é a morte. É verdade que em diversas passagens a morte se encontra presente, seja num homicídio, seja num cancro em estado avançado, seja no suicídio. Todavia, como se disse acima, a morte faz parte de uma ordem e de um cosmos, não representando aí qualquer perturbação. Não será perda de tempo dar atenção à epígrafe escolhida, por Bernhard, para abrir o romance. Trata-se do célebre fragmento 206 de Pascal: Le silence éternel de ces espaces infinis m'effraie (O silêncio eterno destes espaços infinitos assusta-me). Ora aquilo que, no início dos tempos modernos, descoberto a partir dos trabalhos de Galileu, se apresentou com algo assustador, não deixou de crescer com o passar dos séculos até se tornar uma grande perturbação, uma incapacidade de encontrar uma orientação existencial e, como descobre na sua delirante eloquência o príncipe, para estruturar um futuro. Esta perturbação nasceu no momento em que o homem olhou o céu e nele apenas viu um silêncio eterno de espaços vazios.

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

A Garrafa Vazia 11

José María Herrero Gómez, Amor de agua perdida, 1995

De gorgulhos e traças
sou pasto.
O bolor cresce-me
no despudor das mãos,
e na boca
supuram cáries
quando alberga
corvos cansados
do tamborilar da morte.

Novembro de 2019

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Perfis 3. A bailarina

Manuel Casimiro, Estrutura, 1970
Olhou em volta, espreitou por detrás de uns arbustos e dos troncos das árvores, apurou o ouvido e fez o catálogo dos sons, passou-os mentalmente em revista para ver se alguns deles poderia vir de um ser humano. Certificou-se que não havia ninguém que a pudesse surpreender e começou a despir-se. Os sapatos saltaram-lhe dos pés, o vestido caiu no solo, o corpo nu fulgurou na luz da madrugada. Liberta do que a incomodava, flectiu a perna esquerda até que o joelho tocou no chão e a perna e o pé se estenderam, formando com a coxa um ângulo recto. A direita vinha do quadril paralela ao chão, quando o joelho se dobrou de modo a que a perna, apoiada no pé, desenhou com a coxa um ângulo de quarenta e cinco graus. O púbis era uma sombra na geometria dos membros inferiores. O tronco ergueu-se muito direito, deixando ver os seios redondos e contidos. Então, levantou os braços e começou a inclinar a parte superior do corpo para trás, até que as mãos e, de seguida, a cabeça tocaram o chão. Os seios pareciam espalmar-se devido à tensão a que o corpo se submetia. O ventre subia e descia, imperceptivelmente, segundo o arbítrio da respiração. Repousou naquela posição longos segundos, até que levou o joelho direito ao chão para que a perna e a coxa, alinhadas agora com as da esquerda, desenhassem também elas um ângulo de noventa graus. Assim firmada no solo, ergueu os braços, depois o tronco, desfazendo o arco que construíra, e logo os inclinou para a frente até que mãos, braços e cabeça descansaram na relva, como se fosse aquele o momento em que saudava, não sem contida alegria, a natureza, num longo abandono, numa preparação para o momento em que, ao dançar, se esqueceria da gravidade e da terra ascenderia aos céus.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Diálogos aporéticos (08) - O modelo

Emmerico Nunes, O pintor e o modelo, 1909

- Quero pintá-la.
- Que horror, não lhe reconheço talento de maquilhador.
- Quem falou em maquilhá-la?
- Não falou?
- Ainda não desci tão baixo, a minha arte é outra.
- Quer dizer que pintar-me seria degradá-lo? Estou a ver a conta em que me tem.
- Não, não se trata disso.
- Trata-se de quê?
- Eu não sou maquilhador, só isso.
- Não é e quer pintar-me? Acha que lhe permitiria que tocasse o meu rosto?
- Eu não quero tocar o seu rosto.
- Ainda bem.
- Quero pintar o seu corpo.
- Mas não se maquilha o corpo todo, só o rosto.
- Eu não quero maquilhar-lhe o corpo, apenas o quero pintar.
- …
- Quero que se dispa e se sente tranquila, numa posição natural.
- E é assim que me quer pintar?
- É, é, claro.
- E julga que o vou deixar pôr esses seus pincéis nojentos em cima da minha pele?
- Meu Deus, eu não quero pintar sobre a sua pele nua, mas pintá-la na tela, um nu como o que qualquer artista faz.
- E se eu recusei casar consigo, acha que iria ser o modelo das suas fantasias? Se quiser pintar um corpo nu, dispa-se e ponha-se à frente do espelho. Dispenso ver o resultado.

domingo, 23 de agosto de 2020

Nocturnos 21

Roberto Domingo, Nocturno, s/d
A noite é um mar turbulento batido por esquivos raios lunares. Nela, os homens espreitam a escuridão que os habita, os desejos mais hediondos, os terrores inexplicáveis, tudo aquilo que no segredo do coração faz nascer perplexidade e horror.

sábado, 22 de agosto de 2020

Ramón del Valle-Inclán, Sonata de Estío


Depois da Sonata de Outono (1902), o primeiro romance da tetralogia conhecida como Sonatas, Valle-Inclán publica, em 1903, o segundo volume das memórias amorosas do Marquês de Bradomín, com o título, em castelhano, Sonata de Estío. A ordem de publicação dos romances não obedece à ordem cronológica das aventuras galantes deste marquês, um dândi galante, feio, católico e sentimental, tal como ele se define. A tetralogia inicia-se com as aventuras da idade outonal, onde a maturidade se prepara para dar lugar à velhice, seguem-se as aventuras estivais, as de uma primeira maturidade. O terceiro volume, Sonata de Primavera, retrocede aos tempos de juventude do inveterado conquistador e a série conclui-se com a Sonata de Invierno. O Marquês de Bradomín é uma reinterpretação do mito, muito espanhol, de D. Juan. No entanto, esta reinterpretação é profundamente irónica, como se torna patente em Sonata de Estío.

O amável e amoroso marquês decide fazer uma viagem para o México. Um triplo objectivo o guiava. Conhecer os bens de família que por lá herdou, reviver a conquista espanhola daqueles territórios e esquecer uma certa Lilí que o traíra. Estamos assim, ao entrar no romance, perante um D. Juan seduzido e abandonado, que sente necessidade de mudar de lugar para se recompor da falência amorosa. A ironia de Valle-Inclán acentua-se na tensão entre o D. Juan conquistado e abandonado e a necessidade compensatória de reviver a conquista espanhola de novos mundos. Uma das linhas de leitura do romance é então o jogo de compensações que enquadravam a aventura galante deste dândi quixotesco. Tudo isto não deixa de lançar uma sombra sobre a época áurea castelhana. Todo aquele processo de submissão dos povos ameríndios teria sido, também ele, a compensação de que frustração espanhola?

Esta linha de subtil reflexão histórica emerge também numa cena rocambolesca em que o Marquês de Bradomín enfrenta corajosamente um grupo de bandidos para defender a vida de Juan Guzman, um homem com aspecto corajoso e nobre, mas na verdade um bandoleiro como aqueles que o atacavam. Ao tomar conhecimento do tipo de homem que tinha salvo, lamentou-se da decadência dos tempos. Na época da conquista colonial, homens como aquele teriam sido elevados à condição de nobres pelos serviços prestados à coroa, mas hoje em dia, numa antiga colónia agora independente, não passam de criminosos. Aquilo que nos tempos gloriosos da conquista seria motivo de glória é, agora, motivo de castigo. Não é a crítica histórica ou política que dá o conteúdo ao romance. Aparece incidentalmente, sempre envolta na ironia, como acontece quando Bradomín se depara com o mordomo do palácio que herdara no México, um velho soldado que conspira para reconquistar o México e a partir daí colocar na coroa espanhola Carlos de Bourbon, príncipe das Astúrias, naquilo que ficou conhecido como o movimento carlista, de natureza tradicionalista, antiliberal e absolutista, que esteve na origem de três guerras civis em Espanha, durante o século XIX.

A obra gira em torno da nova paixão do marquês, agora por uma crioula, uma mulher de beleza espantosa, a Niña Chole e que, de alguma maneira, lhe recordava a traidora Lilí, um novo jogo compensatório. Esta mulher, porém, é filha e amante de um terrível militar mexicano, o general Bermúdez, que, se descobre que ela se envolve com o marquês, não hesitará em matar ambos. Como já acontecera, de certa forma, no primeiro romance da tetralogia, a Sonata de Otoño, também aqui emergem motivos que se integram numa área que, na altura da publicação dos romances, estava a consolidar-se, a psicanálise, podendo o incesto entre o general e a filha ser lido como uma refiguração do complexo de Electra, para usar uma designação de Carl-Gustav Jung. O conjunto de peripécias amorosas entre Bradomín e Niña Chole é todo ele atravessado por situações equívocas, nas quais a conduta do nobre galego parece desacordar-se com a imagem que dá de si mesmo. Na verdade, não apenas o marquês não passa de um D. Juan pífio, como a coragem e ousadia são dúbias. Valle-Inclán é notável no uso de processos que, numa primeira leitura, parecem dizer uma coisa, mas que, na verdade, não deixam de sugerir o contrário do que afirmam.

Notável é a capacidade do escritor galego em recriar ambientes. As suas descrições do Novo Mundo são extraordinárias, dando-lhes uma vida exuberante, salientando o que naquelas paragens é excessivo e perigoso, mas ao mesmo tempo extremamente atractivo para quem nasceu na Europa, num mundo muito mais contido e cinzento. A descrição da exuberância da paisagem mexicana e dos ambientes sociais é ainda perpassada por uma grande sensualidade, a qual, claro, não emana do marquês, mas da bela crioula. Se se meditar no título da novela, o Estio encontra-se mais na própria paisagem e ambiências do que na idade do marquês. Tudo isto torna um pequeno romance de aparência simples – estruturado em torno dos delíquios de Eros – numa obra complexa, que permite diversas e contraditórias linhas de leitura, tal como sucede com a primeira Sonata.

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

A Garrafa Vazia 10

João Vieira, sem título, 1972

Os poetas roubam
à língua
o grés da gramática,
explodem a sintaxe
com bombas
de borato de sódio
e no enterro
contam as moedas
compradas ao preço
de uma metáfora.

Novembro de 2019

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Ensaio sobre a luz (85)

Artur Bual, Casario
Paisagens de silêncio cortadas pelo rumor da luz, essa luminosidade que desce pela encosta da Primavera e se derrama na planície das paredes, arquitecturando, com lápis de carvão e sombra, um bairro, uma cidade, um mundo breve como uma canção cantada na solidão do crepúsculo.

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Descrições fenomenológicas 56. O molhe

Hafidh Al-Droubi, Harmony in Blue, 1966

De um lado, as águas cor esmeralda, do outro azul cinza. Divide-as um molhe, que as segura e fende, para aquietar-lhes ímpetos, torcer-lhes energias, submetê-las aos devaneios humanos. Desenha nelas, à superfície, uma cicatriz de betão armado, amparada por enormes blocos de pedra, para ali arrastados como protecção contra a cólera do oceano.  São seiscentos metros que separam o início da construção, ainda em terra seca, da ponta onde o molhe se termina num farol, uma torre, já bem dentro do mar, com paredes pintadas às riscas brancas e verdes, encimadas por uma enorme lâmpada, também ela verde. Passeiam por ali famílias vindas de fora, pessoas que o aproveitam como terreno para as suas caminhadas, a pé ou de bicicleta, gente da terra que nunca se cansa de olhar o mar. Velhos pescadores, agora reformados, espreitam com nostalgia a passagem dos barcos de pesca. Outros, pescadores amadores, distribuem-se pela metade final da construção e, equipados com grandes canas de pesca, entretêm-se em manipulá-las, lançando ao mar a linha terminada num anzol onde prendem o isco, fazendo rodar para trás e para a frente um carreto, numa coreografia arduamente adquirida. Depois, prendem as canas ao chão. Uns, deitando-as sobre o cimento. Outros aproveitando as fendas disponíveis. Por fim, sentam-se em bancos e cadeiras apropriadas à função e ficam a conversar com amigos ou a família, ou a olhar para a cor do mar, numa espera interminável que a cana dê um sinal que anuncie um peixe caído no engodo humano, preso pela boca na ponta acerada do anzol. Solitária, uma mulher jovem, vestida com roupa desportiva, caminha em direcção ao farol. Um passo decidido, as pernas compassadas num corpo elegante, o cabelo a ondular com o movimento, erguendo-se se o vento o açoita com mais violência. Os olhos escondem-se nuns óculos de sol de marca famosa. Olha em frente, um passo, e outro, e outro, até que cumpre os seiscentos metros. Pára, olha o mar e senta-se na borda do molhe, as pernas caídas em direcção às rochas de protecção, o corpo apoiado nas palmas da mão que repousam no chão. As gaivotas esvoaçam, aterram sobre o cimento, levantam voo, se alguém se aproxima, planam empurradas pela energia eólica. Passados alguns minutos, a mulher levanta-se, a roupa realça-lhe as formas. Volta-se, vira-se para terra e caminha, no mesmo passo decidido e cadenciado, indiferente a quem passa, concentrada em si, no corpo que se oferece ao olhar dos espectadores. Chegada ao fim do molhe, entra num bar que ali há e desaparece na suave obscuridade que a acolhe.

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Populismo e destruição do senso-comum

Amadeo de Souza-Cardoso, Le Tigre, 1912
The fascist politician possesses specific techniques to destroy information spaces and break down reality.
Jason Stanley, How Fascism Works

Aquilo a que temos vindo a assistir nos últimos anos – e agora também em Portugal de forma muito clara – é a um processo que, fundado na propaganda e ampliado pelas redes sociais, visa destruir a relação do cidadão com a realidade e aquilo a que os anglo-saxónicos chamam common sense. Uma definição de senso comum pode ajudar a perceber o que está em causa. Por senso comum entende-se o nível básico de conhecimento prático e de capacidade de julgar que todos necessitamos para viver de um modo razoável e seguro (ver aqui).

O primeiro passo na destruição do senso comum inerente aos regimes de democracia liberal é dado no campo da informação. Trata-se de demolição a esfera pública através de processos de uso da desinformação e da mentira. Trata-se de subverter a distinção entre a informação verdadeira e a falsa. Não é apenas o caso de se usar a mentira, mas de algo muito mais tenebroso. Fazer crer às pessoas que a mentira é a verdade e que a verdade é pura e simplesmente uma conspiração e uma mentira. Neste processo de subversão, o ataque aos media mais credíveis é impiedoso, enquanto se promovem órgãos de comunicação enviesados, fantasiosos, mentores de teorias da conspiração, lugares de pura propaganda.

Este processo de destruição da esfera pública onde deveria ocorrer um debate político informado é, ao mesmo tempo, um fim em si mesmo e um instrumento para outra coisa. Ele visa também fazer com que os cidadãos deixem de ter qualquer relação sensata com a realidade, para criar, desse modo, uma irrealidade propícia às políticas populistas (fascistas ou outras), para deslocar a questão política de um espaço onde as afirmações são confrontadas com a realidade, para um espaço onírico, em que qualquer afirmação contrária aos políticos populistas é desmentida e, em sentido contrário, as mais delirantes teorias encontram apoio. A verdade passa a ser aquilo que agrada e não aquilo que está de acordo com os factos.

O que está em jogo nas tácticas dos políticos populistas é a destruição, nos cidadãos, daquele nível básico de conhecimentos práticos e de capacidade de julgar os factos que permite aos homens viver razoavelmente e em segurança. Aquilo que muitos dos apoiantes deste tipo de políticos não percebem (outros sabem-no muito bem), cegos pelo seu ressentimento e pela propaganda, é que a destruição do senso comum na política é o caminho para a destruição de uma vida razoável e segura, o começo de uma aventura que, por norma, acaba na mais atroz violência e com muitos cadáveres no caminho. O populismo nacionalista – tenha ou não um claro cariz fascista – é um perigo para todos aqueles que querem viver razoavelmente em paz e segurança.

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Nocturnos 20

António Carneiro, Nocturno, 1906
A noite estende o seu braço de veludo e antracite sobre a terra. Refugiados em casa, os homens dormem ou, das janelas entreabertas, espreitam as águas onde frágeis raios de luz se afogam como penhor do dia a vir.

domingo, 16 de agosto de 2020

A Garrafa Vazia 9

Amadeo de Souza-Cardoso, título desconhecido, 1913

Não tenho cognome.
O meu reino foi
demasiado curto
para declinar
na algaravia
de uma alcunha
ou inscrever
na pedra de papel
com que enfeito
o jardim estuprado
pela tília da tarde.

Novembro de 2019

sábado, 15 de agosto de 2020

Emancipar a direita da esquerda?

Está em curso um conjunto de manobras para integrar o Chega, de André Ventura, numa possível alternativa de direita ao governo de centro-esquerda de António Costa. Ao mesmo tempo, assiste-se a diversas proclamações de pessoas ligadas à direita onde se afirma ser tempo de a direita ser aquilo que quer ser e não aquilo que a esquerda quer que ela seja. Em resumo, afirma-se que os diversos projectos políticos do centro-direita não representam a direita, mas aquilo que a esquerda permite que a direita seja. Este tipo de proclamações entusiasma algumas pessoas, talvez mais do que deveria, mas é um sintoma de um perigoso caminho de degradação da vida política e uma tentativa de romper o pacto que une os portugueses.

Imaginemos um cenário ao contrário. Imaginemos que radicais de esquerda afirmam que é tempo de a esquerda ser esquerda e de se libertar da tutela da direita. Fará sentido? Podemos crer que sim. É um facto que tanto o BE e o PCP, para não falar do PS, toleram, convivem e praticam políticas que são tradicionalmente de direita. Admitem a democracia liberal, a economia de mercado, a existência de propriedade privada dos meios de produção, a liberdade religiosa. Nenhum destes itens fez parte da esquerda original. O que aconteceu é que estes partidos, não deixando de ser de esquerda, sentiram necessidade de participar no consenso político para que a sociedade funcione. Militantes radicais de esquerda encontrarão razões para afirmar que a esquerda que existe – PS, PCP e BE – é apenas aquilo que a direita permite que ela seja. Podem afirmar que chegou a hora de a esquerda se libertar da tutela da direita.

O que certas correntes de direita – onde o Chega é um elemento central – pretendem é o mesmo que estes militantes radicais de esquerda: destruir o consenso tácito que permite à nossa sociedade funcionar e à generalidade das pessoas encontrar um lugar nela. É evidente que a direita democrática é condicionada pela esquerda, mas não o é mais nem menos do que a esquerda democrática o é pela direita. Este duplo condicionamento é o melhor que nos pode acontecer, pois evita que tenhamos de suportar o que há de pior na direita e o que há de pior na esquerda, e em ambas há coisas muito más. Quando o Chega fala em pôr fim à terceira República, a que nasceu com o 25 de Abril, propõe-se destruir o pacto que permite a Portugal ser um país politicamente moderado e civilizado, onde direita e esquerda se limitam mutuamente. Será que os portugueses querem que direita e esquerda se libertem da tutela uma da outra e fiquem entregues aos seus terríveis demónios?

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Nocturnos 19

Brassaï, Les arbres des quais avec le Pont-Neuf, 1945
Lacrimosa, a luz traceja o véu da noite com súbitos clarões. No silêncio, ouve-se o marulhar das águas e o murmúrio do vento, ouve-se o troar das folhas mortas ao cair no chão.

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Perfis 2. O actor

Willem de Kooning, 24 dibujos con los ojos cerrados, 1966
O chapéu de aba larga, cor de mel com fita castanho escuro, descai para a direita, uma postura largamente ensaiada ao espelho, para acentuar o ar másculo com que o mundo o deve ver. Na mão direita ergue uma vara, talvez com uns três metros, na verdade uma cana de bambu. Os braços abrem-se para equilibrar o corpo. Os sapatos brilham batidos pela luz quentes do sol, que ilumina uma paisagem que combina pequenos bosques e prados amplos, aonde não se vê, por enquanto, qualquer animal. O homem, na casa dos trinta anos, encarna o papel de aventureiro em férias. Veste um fato claro, uma camisa branca, o colarinho aberto. Exibe-se perante um grupo de gente da mesma idade, em que proliferam as mulheres, algumas ninfas que habitam, por certo, o ribeiro que ele se propõe atravessar. O tronco caído de uma árvore abatida há pouco torna-se uma ponte, talvez com dez metros de comprimento. Os pés poisam lateralmente, avançam com cuidado, ora um, ora outro, os braços abrem-se, o bambu parece uma antena à procura de sinal. Ouvem-se gritos de incentivo, o homem pára, pés firmes sobre o tronco estreito, sorri, a vara erguida para os céus, com cuidado passa a mão pelo rosto e retoma a caminhada. Avança o pé direito, apoia-o na ponte improvisada, assim que o firma com segurança, logo avança o esquerdo, repetindo o ritual, enquanto a água dolente do ribeiro corre serena e as árvores reverberam batidas pelo sol. Quando chega ao fim da travessia, recebe um estrondoso aplauso, as ninfas particularmente excitadas. Ele finca a cana no chão, com a mão esquerda retira o chapéu, pegando com cuidado pela copa e dobra-se numa mesura excessiva, enquanto no rosto exibe um sorriso rasgado. Sou um funâmbulo, diz. 

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Alma Pátria 64: Maria Clara, Figueira da Foz



Houve um tempo em que os veraneantes portugueses não se precipitavam todos em direcção aos calores do Algarve. Na costa ocidental – a norte de Lisboa, entenda-se – havia um conjunto de praias que recebiam, com mais sol ou mais nevoeiro, e de acordo com uma distribuição de classe ordenada segundo princípios implícitos, que por o serem eram indiscutíveis, os que podiam pisar areias de Portugal e ver o mar. Entre as mais distintas, segundo os critérios da época, estava a Figueira da Foz, que deu origem a esta canção de António Sousa Freiras e Nóbrega e Sousa, interpretada por uma das grandes vedetas da rádio portuguesa, Maria Clara. Interessante na canção é a plena erotização da praia e dos elementos naturais, onde não faltam alusões a cândidas ménages à trois, isto para não entrarmos em insinuações sobre o género das partes envolvidas e para não se especular sobre o tipo de amplexos possíveis. O passado é um país estrangeiro, lá fazem-se as coisas de forma diferente, como diria o romancista Leslie Poles Hartley.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

A Garrafa Vazia 8

Peter Lanyon, Clevedon Night, 1964

Os olhos amarrotados
pelo velcro da noite
perdem-se
no enigma do vidro,
no vinho bebido
à luz de um bolero
dançado
no mosto da morte.

Novembro de 2019

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Nocturnos 18

Eugène Carrière, Place Clichy, Night, 1899-1900
A noite é um pássaro indomável. Resiste à luz e quando o dia, com tiro certeiro, lhe fere a asa, esconde-se na mais negra das cavernas para, restabelecidas as forças, voltar a cair sobre a terra com o seu corpo tecido de veludo e pérolas pretas.

domingo, 9 de agosto de 2020

Carlos Fuentes, Aura


A fortuna da obra é quase inversamente proporcional ao seu tamanho. Aura é uma pequena novela publicada em 1962 pelo escritor mexicano Carlos Fuentes. Desenrola-se numa ambiência própria à literatura gótica e essa não será a menor das razões que estará na base do seu sucesso. São múltiplas as leituras – a que de certa forma o próprio escritor dará fundamento – que vêem na novela um exercício simbólico de feitiçaria. Aliás, Fuentes convoca para epígrafe uma citação de La Sorcière, de Jules Michelet. Essas leituras, que fazem uma hermenêutica exaustiva de todos os elementos da obra, desde os nomes dos personagens até aos animais e plantas nela referidas, passando pelos acontecimentos em que se estrutura a acção, são plausíveis. No entanto, é possível uma outra leitura que, não negando o compromisso da obra com esse mundo, tente encontrar aquilo que a literatura questiona e procura na forma de experiência literária.

Por norma, as narrativas são feitas na primeira ou na terceira pessoas. Aura, todavia, é narrada na segunda pessoa, o que introduz de imediato um elemento de perturbação. Logo no início diz-se: Lês esse anúncio: uma oferta dessa natureza não se faz todos os dias. Lês e relês o aviso. Parece dirigido a ti, a ninguém mais. Toda a narrativa é feita neste registo. À partida, o narrador parece dirigir-se para o leitor, como se este fosse o protagonista, como se ele estivesse envolvido nos acontecimentos. No entanto, pode ser também uma estratégia narrativa que leve à letra o dito platónico que afirma que pensar é falar consigo mesmo, uma espécie de diálogo em que o eu se cinde artificialmente para tentar alcançar a verdade. Pode ainda ser uma radicalização do topos platónico, o eu se tenha cindido efectivamente, e o tu seja uma forma coloquial com que o eu se dirige a um tu que é e não é ele mesmo. Seja como for, o primeiro efeito literário está conseguido. Há um efectivo questionamento da identidade do eu. Esta ideia será a chave que pode permitir uma leitura da obra que não se perca nos efeitos góticos com que ela é construída.

Um anúncio num jornal, prometendo um salário generoso e acomodação condigna para a tarefa a realizar, pede alguém, do sexo masculino, que domine o francês e seja historiador. Felipe Montero responde a esse anúncio. Trata-se de ordenar e completar as memórias, escritas em francês, de um homem ligado à revolução mexicana, o General Llorente, que terá morrido há sessenta anos. Quem o pede é a viúva do militar, Consuelo Llorente, que, pelos cálculos que a certa altura o historiador faz, terá então 109 anos. Não tem muito tempo, dirá ela, para publicar as memórias do marido. Vive acompanhada por uma sobrinha, Aura, que, para sobrinha de uma mulher mais que centenária é surpreendentemente jovem. Os olhos verdes dela fazem de imediato Montero apaixonar-se. É entre estes três personagens que se desenrola a trama narrativa, que segue, sem nunca o afirmar explicitamente, o fio de um ritual de feitiçaria, segundo alguns intérpretes da obra.

Aquilo que o leitor vai encontrar de imediato é a ambiguidade das personagens. Será que Aura existe mesmo ou não passa de uma projecção de Consuelo? E a Aura com que Felipe faz amor será mesmo a Aura, ou será na verdade Consuelo ou, ainda, o feminino que habita em Felipe e que, no decorrer da trama narrativa, se separa de si mesmo, simbolizando o acto sexual o desejo de união que todo o ser humano aspira a realizar consigo mesmo, pois todos os seres racionais sofrem desse sentimento de cisão consigo e a concomitante nostalgia de um estado existencial onde estariam completos. Há uma clara utilização do mito do andrógino original narrado por Platão. Por outro lado, também não é claro que Felipe não seja uma metamorfose do próprio General Llorente, cuja parecença ele descobre numas velhas fotografias.

Ao lado do problema da identidade pessoal, outras são trabalhados e que se entretecem com ele. Salientem-se apenas três. Em primeiro lugar, o problema do espaço. Pode-se recorrer à distinção introduzida por Mircea Eliade entre espaço profano e espaço sagrado. Ao entrar na casa de Consuelo Llorente, Felipe Montero abandona o espaço profano da vida quotidiana e entre no espaço sagrado onde decorre a acção. O que é interessante, no entanto, não é associar o espaço onde decorre a narrativa à sacralidade devido ao facto de nele ocorrer, eventualmente, um ritual de feitiçaria, mas perceber que toda a literatura vive da distinção que Mircea Eliade observou no fenómeno religioso. A arte, a literatura narrativa, no caso, introduz uma cisão no espaço, sacralizando aquele onde decorre a narrativa, por oposição ao espaço profano da vida real.

Em segundo lugar, o problema do tempo. A vida quotidiana decorre segundo a regra do calendário. Vivemos inquestionadamente num presente. Recordamos o que se passou e apontamos a seta dos nossos temores e desejos para o que há-de vir. O tempo é vivido como uma linha contínua, que se desloca uniformemente do passado para o futuro. O que a novela de Fuentes faz é questionar essa compreensão do tempo. O tempo de amor entre Consuelo e o General não está apenas num passado irremediável que a morte de um pôs fim. Esse amor torna-se presente, pois Aura é a mulher que o General amou e Felipe é o General amado por Consuelo. Esse tempo compreendido como uma seta arremessada no início do mundo em direcção ao seu fim pode não ser mais que uma capa ilusória de um outro tempo, mais real que se vai manifestando no tempo do calendário.

Por fim, o problema do amor. A novela de Fuentes abra para um conjunto de interrogações sobre a natureza do amor, sobre quem ama aquele que ama, sobre a persistência do amor para além da morte. Contrariamente a um exercício filosófico que tentaria dar resposta a estas questões, expondo teses e argumentos, a literatura enfatiza os próprios problemas, dá-lhes um corpo, para que elas não despareçam e continuem a atormentar o homem. O notável em Aura é que no final estas questões tornam-se mais vivas, mais perturbantes, mais inquietantes. Ela rapta o amor do hábito, da sua quotidianidade e torna-o sujeito de questionamento, como se apenas na inquietação do questionamento de si mesmo o amor fosse possível. Ora, isto mostra, por fim, que o amor vive fundado num princípio de incerteza e é este princípio que o alimenta.

sábado, 8 de agosto de 2020

Descrições fenomenológicas 55. Rua sombria

Juan Suárez Ávila, Paisaje imaginario, 1974

A custo o sol penetra a rua, apenas naquele momento em que cai a pique e logo começa a trepar pelas paredes dos prédios para se afastar, até que passadas vinte e quatro horas volta, se o dia não for toldado por nuvens grávidas de cinza e chumbo, prontas a desabar sobre a terra em grossas gotas de chuva. Não se avista ninguém, apenas as sombras desenham estranhas figuras, que se vão transformando perante o olhar. À esquerda, vê-se o anúncio de um hotel, daqueles onde se acolhe, quando chega à cidade, gente vinda dos campos, pouco abonada pelo trabalho da terra. Depois, os prédios de seis andares, são dedicados à habitação, apartamentos lúgubres, de vidros sujos. Num ou noutro prédio, há varandas onde se avistam plantas raquíticas. Há portadas entreabertas, mas ninguém parece espreitar por elas. Ao nível do rés-do-chão vêem-se alguns portões de metal, mas não escondem qualquer comércio, são apenas armazéns alugados a comerciantes que abriram o seu negócio em ruas mais promissoras, mais largas, onde a luz se demora com mais vagar e a massa dos clientes se passeia despreocupada, deixando-se ver quando a luz bate sobre os seus rostos pintados pelo quotidiano. O outro lado da rua é uma mancha negra de prédios desabitados, envelhecidos, casas construídas séculos atrás e onde ninguém que gastar os seus dias e as suas noites. Talvez um ou outro sirva de acomodação a algum sem-abrigo, mas o que sobressai é as manchas negras que os fungos multiplicados na humidade semeiam. Os caixilhos ainda vão segurando vidros, aqui e ali já partidos. Num ou noutro prédio, a porta da rua foi substituída por uma parede tosca, daquelas feitas de tijolo e cobertas de cimento, para evitar que se intrometam por ali, e um acidente faça nascer um fogo, ou que a casa abandonada seja lugar para um crime terrível. O tempo passa pela rua, enche-a de rugas e pústulas, sem que um veículo se atreva a passar pelas lajes gastas que a pavimentam. Uma mulher curvada, apoiando-se numa bengala, surge ao fundo. Desloca-se com vagar, passos trémulos, o olhar no chão. Uma gabardine envelhecida quase toca no chão. Traz com ela uma pequena maleta, que parece ter um peso excessivo para as suas forças. Detém-se perante a porta do hotel, poisa a mala no chão. Da algibeira tira um papel. Olha-o e olha para a designação do hotel. Guarda a informação de onde a tirara, pega na mala e entra.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Diálogos aporéticos (07) - Escolhas

Norman Parkinson, Margot Fonteyn; Sir Robert Murray Helpmann, 1951

- É só para isso que eu sirvo.
- O que estás a dizer?
- Isso mesmo. Só sirvo para isso.
- Falas por enigmas, agora.
- Não entendeste?
- Explica-te. Cansam-me os mistérios.
- Só sirvo para me pores o pé em cima.
- Não me faças, rir. Estás só a ser gentil.
- Posso estar, mas só sirvo para essas gentilezas.
- Não serves apenas para eu te espezinhar. És o meu par, danças comigo.
- Sim, levanto-te e seguro-te, para que não caias.
- É essa a tua função, ou querias ver-me a rebolar pelo chão diante do público.
- Não passo, para ti, de um carregador.
- O que querias mais?
- Sair daqui contigo, ir jantar e depois…
- E achas que sairia alguma vez com quem se veste dessa maneira?
- Não sejas perversa. Faz parte do meu papel.
- Devias ter escolhido.
- Escolhido?
- Ou dançavas comigo ou saías comigo, e cala-te, preciso de acabar o que estou a fazer.

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

A Garrafa Vazia 7

Victor Vasarely, 166 Sirs-Kek, 1953

A garrafa vazia reluz
ao sol da tarde
batida pelo vento,
encostada
ao pedestal
onde se ergue
a estátua de um rei
perdida
no ramalhar da república.

Novembro de 2019

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Nocturnos 17

Eve Arnold, Bar girl in a brothel in the red light district. Havana, Cuba, 1954
No bordel da noite, a melancolia desliza pelas ruas, abre-se como uma violeta exausta na tristeza de um rosto esquecido sobre o brilho de um balcão onde se serve a cerveja escura do abandono.

terça-feira, 4 de agosto de 2020

Ernst Jünger, El Teniente Sturm


A pequena obra El Teniente Sturm, do escritor e pensador alemão Ernst Jünger, foi publicada pela primeira vez em 1923, como romance-folhetim nas páginas do Hannoverscher Kurier, e, nos anos sessenta do século passado, integrada nas obras completas do autor. Trata-se de um romance que tem como pano de fundo a relação entre arte e vida observada a partir da tensão entre literatura e guerra. O baptismo do personagem principal, o tenente Sturm, simboliza isso mesmo. Em alemão, Sturm significa tempestade, o que não será uma das piores metáforas para reflectir sobre a primeira grande guerra, cenário dos acontecimentos narrados. Por outro lado, a palavra tem de imediato uma conotação literária, evocando o movimento Sturm und Drang (tempestade e ímpeto) que, na Alemanha do século XVIII, afrontou as concepções estéticas provenientes de um certo classicismo e a influência francesa, e talvez, mas os analistas dividem-se, o próprio projecto da Aufklärung (Iluminismo).

O cenário é o das trincheiras numa frente de guerra onde se opõem tropas alemãs e inglesas. Sturm e dois outros oficiais de baixa patente, comandantes de pelotões, encontram-se no abrigo do primeiro, ao pôr-do-sol, para discutir a evolução da guerra e literatura. Sturm é um zoólogo formado em Heidelberg, mas essencialmente as suas preocupações são literárias. Quando não tem de estar em combate, passa o tempo a fazer esboços de personagens de um eventual futuro romance. Entre as discussões sobre a guerra e as sobre estética e literatura, Sturm lê esses esboços aos seus camaradas de armas. Jünger, um combatente voluntário da primeira grande guerra, medita sobre dois possíveis focos produtivos da obra de arte.

Aqueles que ficaram de fora da guerra e que hão escrever sobre ela e os que, como Sturm, escreverão a partir da experiência própria, do facto de estarem no centro dos acontecimentos. A arte nasce de uma esteticização da experiência ou é um produto da imaginação criadora que suspende os laços com a realidade? Se romance de Jünger é um exemplo do realismo, nas descrições de ambientes e das peripécias do combate, as personagens de Sturm – Tronck e Kiel – são idealizações produzidas a partir de um foco imaginário. Por um lado, um Tronck flâneur que, com elegância e fechado na sua solidão, passeia entre a massa, num exercício de esteticização de si, de maneira a que os olhos da multidão ou das mulheres se virem para ele. Kiel, por outro lado, é a idealização do indivíduo cuja força vital, ardente e violenta, o leva a rejeitar a ordem burguesa, a razão e a convenção, trocando tudo isso pelo sentimento, com as consequentes explosões de violência.

O romance contém também uma meditação sobre a guerra, o indivíduo e o Estado. A primeira grande guerra é um conflito em que a técnica é determinante para os resultados. Não é que a guerra, desde há muito, não tenha em si elementos tecnológicos, tanto ao nível das armas como da estratégia militar. O que se passa agora, porém, é que o desenvolvimento tecnológico aniquilou a ideia do confronto face-a-face com o inimigo. O indivíduo é submergido pelo aparato tecnológico, tornando-se uma mera célula num organismo gigantesco que combate contra outro organismo gigantesco. Na prática, o velho conceito de honra militar desaparece. Este desenvolvimento da guerra é concomitante ao desenvolvimento do Estado, o qual produz o mesmo efeito sobre os indivíduos na sociedade civil. São apenas pequenas rodas dentadas numa engrenagem mecânica desmedida.

Não se pense, contudo, que esta crítica ao peso desmesurado Estado e aos efeitos dele – e da guerra – sobre os indivíduos se inscreve numa perspectiva liberal, ou que anuncie, ainda que ao longe, os devaneios libertários, de um liberalismo radicalizado. Não é a individualidade do burguês, seja na empresa ou na universidade, que Jünger, no romance, lamenta. Isso faz parte de um mundo convencional, o qual transforma os indivíduos em meras repetições uns dos outros, submetidos à ditadura da massa, que se expressa através dos desejos de consumo. O indivíduo que o Estado mata é o homem que se singulariza pela acção ou pela arte, na verdade o aristocrata – entendendo-se a aristocracia como uma casta político-militar – e o artista. O primeiro seria um artista que, através da acção, configuraria a comunidade política, o segundo seria um guerreiro que dobraria a resistências da matéria à realização dos objectivos do espírito. O encontro, neste romance, entre guerra e literatura não é um acontecimento fortuito. Há em ambos o poder de configuração da realidade. Jünger, entre as duas guerras mundiais, é adepto do se chama revolução conservadora, um projecto político em confronto com a república de Weimar, o liberalismo e o marxismo. Como todo o revolucionário, vê na revolução um trabalho de artista. Resta saber se, com a morte da singularidade do guerreiro, não desaparece também a singularidade do artista. O leitor poderá encontrar uma resposta ao ler este pequeno romance de Ernst Jünger.

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Perfis 1. O pianista

Ellsworth Kelly, Awnings, Avenue Matignon, 1950
A mão pega uma folha da partitura, como se houvesse uma longa hesitação na interpretação daquela passagem da obra. Sentado, o pianista olha-a com o zelo da atenção prestada a um objecto amado. Depois, parece que vai voltar a página, mas alguma coisa o atormenta, e o gesto fica suspenso, a folha presa entre o polegar e o indicador, os olhos fixos no papel e uma concentração que traz à memória o rapto místico de algum santo. Mais do que tempo de ensaio, é hora de reflexão meditativa sobre as intenções do compositor. Da boca pende-lhe um cachimbo, de onde, por vezes, se soltam nuvens de um fumo espesso, subindo em espiral para desaparecerem tragadas pelo amarelado do tecto. O silêncio é interrompido, o artista executa uns acordes com a mão esquerda, mas logo pára e concentra os olhos na partitura. Lá fora o dia desliza cinzento, há muito que um céu de chumbo cobre a luz do sol. De perfil, o pianista parece uma ave pré-histórica, os cabelos sobre o pescoço lembram penas levemente desarranjadas por algum movimento repentino, e o nariz, ao desenhar uma curva da base onde nasce até à ponta, deixa no observador a sensação de um bico de pássaro. Há uma tensa energia naquele homem que suspendeu os movimentos. A reflexão não é nele uma via para o cepticismo e para indiferença, perante a impossibilidade de escolher um caminho. Quem o vê percebe de imediato, pela inclinação do corpo, pela forma como a cabeça enfrenta a partitura, que encontrará uma solução que o satisfaça. Uma baforada sai-lhe de entre os lábios, a mão direita vira a página, a esquerda retira o cachimbo da boca e pousa-o num pequeno dispositivo para o acolher. Cerra os olhos, e uma música vigorosa responde ao dedilhar subtil das teclas do piano. 

domingo, 2 de agosto de 2020

Um problema com a democracia


A importância do parlamento não deriva tanto do facto de ali se fazer a lei como daquilo que o parlamento substitui. E o parlamento substitui o quê? Substitui a guerra civil ou a ditadura, que é uma espécie de guerra civil em que uma parte tem as armas e a outra não.  A existência de deputados que representem as diversas sensibilidades é fundamental. Eles conflituam com palavras e isso é muito melhor do que a violência ou as perseguições políticas. Numa sociedade é impossível que todos pensem da mesma maneira sobre o modo de a governar. A democracia parlamentar é uma invenção notável, pois permite, ao mesmo tempo, que o país seja governado e que as pessoas possam viver em paz, livres e sem medo.

Um governo eleito deve governar, mas não pode fazer o que quer e terá de se submeter ao controlo do parlamento. As democracias maduras olham para a prestação de contas no parlamento como um momento muito importante, pois possibilita às diversas partes escrutinarem e pronunciarem-se sobre a governação. Em Portugal estava instituído que o primeiro-ministro fosse ao parlamento todos os quinze dias. Não era excessivo. O espantoso é que por iniciativa do presidente do maior partido da oposição, Rui Rio, essa prestação de contas foi drasticamente reduzida. A justificação é a de deixar o primeiro-ministro trabalhar. Extraordinário. Não faz parte do trabalho de um político responder pelo que faz e ser sistematicamente escrutinado? Na verdade, descobrimos que os dois principais partidos da nossa democracia, PS e PSD, são liderados por pessoas que não acreditam nela. Rui Rio pela proposta inaceitável que fez. António Costa pelo oportunismo de a ter aceitado.

Rui Rio, e António Costa por cumplicidade, inscrevem-se numa linha de pensamento político que desvaloriza o parlamento e a democracia. Essa linha passa por Cavaco Silva e tem a sua raiz em Salazar. Não estou a afirmar que Rio, Costa ou Cavaco Silva são salazaristas. Não o são. Estou apenas a dizer que há neles uma atitude que desvaloriza os rituais da democracia parlamentar e que essa atitude se funda no autoritarismo do Estado Novo. Esta desvalorização do parlamento é preocupante pois pode abrir caminho para que, mais tarde ou mais cedo, ganhe força, num país em que a democracia é demasiado nova, a ideia de que se pode dispensar o parlamento, isto é, o sítio onde os representantes dos portugueses conflituam em torno de ideias para que os cidadãos não se matem nas ruas e não se persigam uns aos outros. 23 de Julho foi um dia negro para a democracia em Portugal.

[A minha crónica em A Barca]

sábado, 1 de agosto de 2020

Anatole France, A Revolta dos Anjos


Estava-se no ano de 1914, um ano de má memória na história do mundo, quando foi publicado o romance A Revolta dos Anjos, de Anatole France. Não se trata de uma utopia ou, numa versão negativa, de uma distopia, nas quais se apreenda um aspecto particularmente sedutor ou decididamente repulsivo do poder político. Há, na verdade, uma prosaica meditação sobre o poder, mas ela é feita através de uma fantasiosa rebelião dos anjos contra o poder de Deus, a retomado do projecto luciferino de conquista do poder. A obra combina elementos teológicos com elementos políticos, como se fosse um sinal irónico sobre o que a história da Europa começaria a trazer com o advento das teologias políticas que foram ocupando, a partir de 1917, o poder em importantes países europeus.

No centro da intriga está uma decisão filosófica sobre a origem do conhecimento e da verdade. Não se trata, todavia, da querela entre racionalistas e empiristas, pendência marcadamente moderna, mas da questão sobre se o conhecimento autêntico tem uma origem divina ou humana, libelo trazido pelo fim daquilo a que se convencionou chamar, talvez com demasiada condescendência pelas opiniões renascentistas, Idade Média. Esse problema não é colocado por nenhum homem, mas por um anjo, um anjo da guarda de um dos protagonistas humanos da narrativa. A família Esparvieu tinha um hobby sério, demasiado sério. Coleccionava livros, não quaisquer livros, mas aqueles que de uma forma ou de outra se ligavam ao conhecimento, fossem de ciência, religião, filosofia. Fantasias da imaginação, como o romance, estavam excluídas. A colecção era, além de numerosa, muito valiosa, e acabou por exigir a contratação de um bibliotecário, o senhor Sariette, que fez dela e da sua ordem a razão da existência.

Os problemas começam quando súbitos e inexplicáveis desordenamentos e roubos de livros se sucedem. Se do ponto de vista físico não se encontram razões para estes acontecimentos, o mesmo não se passa do ponto de vista metafísico. Um dos Esparvieu, Maurice, tinha, para além de uma garçonnière, onde recebia as suas amantes, um anjo da guarda. E é após um encontro amoroso que o anjo se decide manifestar. A função aborrecia-o e decidiu, aproveitando-se da sua condição, estudar a biblioteca dos Esparvieu. Os acontecimentos inexplicáveis tinham uma explicação. A sede do conhecimento levou-o à luz e a luz conduziu-o à revolta contra o seu Senhor, que, via-o agora, era ávido de louvores, um tirano. Da blasfémia à revolta é um pequeno passo e o anjo demissionário de Maurice, como todo o revolucionário recém-convertido à revolução, deseja com ardor depor o tirano e colocar outro no seu lugar, neste caso Lúcifer, o anjo da luz.

Parte substancial da narrativa gira em torno da organização e preparação desse grande acontecimento que se haveria de passar no reino dos Céus, com o assalto final ao Castelo divino, deposição do Monarca absoluto e sua substituição pelo anjo da luz. O antigo anjo protector de Maurice começa a estabelecer, na Terra, ligações com os muitos anjos que tinham abandonado a suas antigas funções, dedicando-se a diversas ocupações, desde a conspiração terrorista até à jardinagem, passando pela sedução de mulheres. O descontentamento, como todos sabemos, não é uma prerrogativa dos homens. Antes deles, já os anjos se revoltaram com os resultados que todos sabemos. Os planos subversivos foram progredindo e tinham todas as possibilidades de saírem vencedores, não fora a recusa de Lúcifer em derrubar e ocupar o lugar de Deus.

A Revolta dos Anjos não é uma mera fantasia sobre o mundo do além e do aquém, uma espécie de antecipação da literatura fantástica que nos nossos dias tem tido tão grande fortuna. A obra é uma reflexão irónica sobre as ilusões políticas revolucionárias e algumas pretensões nascidas com o Iluminismo. A ironia nasce do próprio estatuto de verdade da obra romanesca. Recorde-se que na biblioteca dos Esparvieu, preocupada com o conhecimento e a verdade, o romance, produto da ficção, estava proscrito. Esta ironia não nega a possibilidade de haver uma verdade na ficção, mas questiona-a e, ao mesmo tempo, questiona, na economia do romance, se a verdade residirá no conhecimento proveniente da ciência, da filosofia e da teologia. Do ponto de vista da relação entre conhecimento e revolta política, isto é, entre o Iluminismo e Revolução, a ironia não é menor. O que torna o anjo da guarda de Maurice em revolucionário é o conhecimento. Este leva-o a negar Deus, ao mesmo tempo que O afirma ao pretender combatê-lo. Que a revolução não ocorra porque o futuro incumbente do trono se recuse a isso em nome da inutilidade do acontecimento, pois teria de desempenhar o papel daquele a quem derrubaria, não é a menor das ironias.