domingo, 2 de agosto de 2020

Um problema com a democracia


A importância do parlamento não deriva tanto do facto de ali se fazer a lei como daquilo que o parlamento substitui. E o parlamento substitui o quê? Substitui a guerra civil ou a ditadura, que é uma espécie de guerra civil em que uma parte tem as armas e a outra não.  A existência de deputados que representem as diversas sensibilidades é fundamental. Eles conflituam com palavras e isso é muito melhor do que a violência ou as perseguições políticas. Numa sociedade é impossível que todos pensem da mesma maneira sobre o modo de a governar. A democracia parlamentar é uma invenção notável, pois permite, ao mesmo tempo, que o país seja governado e que as pessoas possam viver em paz, livres e sem medo.

Um governo eleito deve governar, mas não pode fazer o que quer e terá de se submeter ao controlo do parlamento. As democracias maduras olham para a prestação de contas no parlamento como um momento muito importante, pois possibilita às diversas partes escrutinarem e pronunciarem-se sobre a governação. Em Portugal estava instituído que o primeiro-ministro fosse ao parlamento todos os quinze dias. Não era excessivo. O espantoso é que por iniciativa do presidente do maior partido da oposição, Rui Rio, essa prestação de contas foi drasticamente reduzida. A justificação é a de deixar o primeiro-ministro trabalhar. Extraordinário. Não faz parte do trabalho de um político responder pelo que faz e ser sistematicamente escrutinado? Na verdade, descobrimos que os dois principais partidos da nossa democracia, PS e PSD, são liderados por pessoas que não acreditam nela. Rui Rio pela proposta inaceitável que fez. António Costa pelo oportunismo de a ter aceitado.

Rui Rio, e António Costa por cumplicidade, inscrevem-se numa linha de pensamento político que desvaloriza o parlamento e a democracia. Essa linha passa por Cavaco Silva e tem a sua raiz em Salazar. Não estou a afirmar que Rio, Costa ou Cavaco Silva são salazaristas. Não o são. Estou apenas a dizer que há neles uma atitude que desvaloriza os rituais da democracia parlamentar e que essa atitude se funda no autoritarismo do Estado Novo. Esta desvalorização do parlamento é preocupante pois pode abrir caminho para que, mais tarde ou mais cedo, ganhe força, num país em que a democracia é demasiado nova, a ideia de que se pode dispensar o parlamento, isto é, o sítio onde os representantes dos portugueses conflituam em torno de ideias para que os cidadãos não se matem nas ruas e não se persigam uns aos outros. 23 de Julho foi um dia negro para a democracia em Portugal.

[A minha crónica em A Barca]

2 comentários:

  1. Concordo genéricamente com o texto, mas não estou assim tão certo de que o Cavaco não seja um salazarista envergonhado.

    Um abraço

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Quanto ao Cavaco, nós não podemos penetrar na mente dele para o descobrir. No entanto, enquanto ocupou o poder, apesar de um estilo desagradável, não mobilizou nenhum daqueles temas que fornecem o combustível ao autoritarismo. Manteve-se sempre dentro do espírito democrático.

      Abraço

      Eliminar

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.