sábado, 8 de agosto de 2020

Descrições fenomenológicas 55. Rua sombria

Juan Suárez Ávila, Paisaje imaginario, 1974

A custo o sol penetra a rua, apenas naquele momento em que cai a pique e logo começa a trepar pelas paredes dos prédios para se afastar, até que passadas vinte e quatro horas volta, se o dia não for toldado por nuvens grávidas de cinza e chumbo, prontas a desabar sobre a terra em grossas gotas de chuva. Não se avista ninguém, apenas as sombras desenham estranhas figuras, que se vão transformando perante o olhar. À esquerda, vê-se o anúncio de um hotel, daqueles onde se acolhe, quando chega à cidade, gente vinda dos campos, pouco abonada pelo trabalho da terra. Depois, os prédios de seis andares, são dedicados à habitação, apartamentos lúgubres, de vidros sujos. Num ou noutro prédio, há varandas onde se avistam plantas raquíticas. Há portadas entreabertas, mas ninguém parece espreitar por elas. Ao nível do rés-do-chão vêem-se alguns portões de metal, mas não escondem qualquer comércio, são apenas armazéns alugados a comerciantes que abriram o seu negócio em ruas mais promissoras, mais largas, onde a luz se demora com mais vagar e a massa dos clientes se passeia despreocupada, deixando-se ver quando a luz bate sobre os seus rostos pintados pelo quotidiano. O outro lado da rua é uma mancha negra de prédios desabitados, envelhecidos, casas construídas séculos atrás e onde ninguém que gastar os seus dias e as suas noites. Talvez um ou outro sirva de acomodação a algum sem-abrigo, mas o que sobressai é as manchas negras que os fungos multiplicados na humidade semeiam. Os caixilhos ainda vão segurando vidros, aqui e ali já partidos. Num ou noutro prédio, a porta da rua foi substituída por uma parede tosca, daquelas feitas de tijolo e cobertas de cimento, para evitar que se intrometam por ali, e um acidente faça nascer um fogo, ou que a casa abandonada seja lugar para um crime terrível. O tempo passa pela rua, enche-a de rugas e pústulas, sem que um veículo se atreva a passar pelas lajes gastas que a pavimentam. Uma mulher curvada, apoiando-se numa bengala, surge ao fundo. Desloca-se com vagar, passos trémulos, o olhar no chão. Uma gabardine envelhecida quase toca no chão. Traz com ela uma pequena maleta, que parece ter um peso excessivo para as suas forças. Detém-se perante a porta do hotel, poisa a mala no chão. Da algibeira tira um papel. Olha-o e olha para a designação do hotel. Guarda a informação de onde a tirara, pega na mala e entra.

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