terça-feira, 4 de agosto de 2020

Ernst Jünger, El Teniente Sturm


A pequena obra El Teniente Sturm, do escritor e pensador alemão Ernst Jünger, foi publicada pela primeira vez em 1923, como romance-folhetim nas páginas do Hannoverscher Kurier, e, nos anos sessenta do século passado, integrada nas obras completas do autor. Trata-se de um romance que tem como pano de fundo a relação entre arte e vida observada a partir da tensão entre literatura e guerra. O baptismo do personagem principal, o tenente Sturm, simboliza isso mesmo. Em alemão, Sturm significa tempestade, o que não será uma das piores metáforas para reflectir sobre a primeira grande guerra, cenário dos acontecimentos narrados. Por outro lado, a palavra tem de imediato uma conotação literária, evocando o movimento Sturm und Drang (tempestade e ímpeto) que, na Alemanha do século XVIII, afrontou as concepções estéticas provenientes de um certo classicismo e a influência francesa, e talvez, mas os analistas dividem-se, o próprio projecto da Aufklärung (Iluminismo).

O cenário é o das trincheiras numa frente de guerra onde se opõem tropas alemãs e inglesas. Sturm e dois outros oficiais de baixa patente, comandantes de pelotões, encontram-se no abrigo do primeiro, ao pôr-do-sol, para discutir a evolução da guerra e literatura. Sturm é um zoólogo formado em Heidelberg, mas essencialmente as suas preocupações são literárias. Quando não tem de estar em combate, passa o tempo a fazer esboços de personagens de um eventual futuro romance. Entre as discussões sobre a guerra e as sobre estética e literatura, Sturm lê esses esboços aos seus camaradas de armas. Jünger, um combatente voluntário da primeira grande guerra, medita sobre dois possíveis focos produtivos da obra de arte.

Aqueles que ficaram de fora da guerra e que hão escrever sobre ela e os que, como Sturm, escreverão a partir da experiência própria, do facto de estarem no centro dos acontecimentos. A arte nasce de uma esteticização da experiência ou é um produto da imaginação criadora que suspende os laços com a realidade? Se romance de Jünger é um exemplo do realismo, nas descrições de ambientes e das peripécias do combate, as personagens de Sturm – Tronck e Kiel – são idealizações produzidas a partir de um foco imaginário. Por um lado, um Tronck flâneur que, com elegância e fechado na sua solidão, passeia entre a massa, num exercício de esteticização de si, de maneira a que os olhos da multidão ou das mulheres se virem para ele. Kiel, por outro lado, é a idealização do indivíduo cuja força vital, ardente e violenta, o leva a rejeitar a ordem burguesa, a razão e a convenção, trocando tudo isso pelo sentimento, com as consequentes explosões de violência.

O romance contém também uma meditação sobre a guerra, o indivíduo e o Estado. A primeira grande guerra é um conflito em que a técnica é determinante para os resultados. Não é que a guerra, desde há muito, não tenha em si elementos tecnológicos, tanto ao nível das armas como da estratégia militar. O que se passa agora, porém, é que o desenvolvimento tecnológico aniquilou a ideia do confronto face-a-face com o inimigo. O indivíduo é submergido pelo aparato tecnológico, tornando-se uma mera célula num organismo gigantesco que combate contra outro organismo gigantesco. Na prática, o velho conceito de honra militar desaparece. Este desenvolvimento da guerra é concomitante ao desenvolvimento do Estado, o qual produz o mesmo efeito sobre os indivíduos na sociedade civil. São apenas pequenas rodas dentadas numa engrenagem mecânica desmedida.

Não se pense, contudo, que esta crítica ao peso desmesurado Estado e aos efeitos dele – e da guerra – sobre os indivíduos se inscreve numa perspectiva liberal, ou que anuncie, ainda que ao longe, os devaneios libertários, de um liberalismo radicalizado. Não é a individualidade do burguês, seja na empresa ou na universidade, que Jünger, no romance, lamenta. Isso faz parte de um mundo convencional, o qual transforma os indivíduos em meras repetições uns dos outros, submetidos à ditadura da massa, que se expressa através dos desejos de consumo. O indivíduo que o Estado mata é o homem que se singulariza pela acção ou pela arte, na verdade o aristocrata – entendendo-se a aristocracia como uma casta político-militar – e o artista. O primeiro seria um artista que, através da acção, configuraria a comunidade política, o segundo seria um guerreiro que dobraria a resistências da matéria à realização dos objectivos do espírito. O encontro, neste romance, entre guerra e literatura não é um acontecimento fortuito. Há em ambos o poder de configuração da realidade. Jünger, entre as duas guerras mundiais, é adepto do se chama revolução conservadora, um projecto político em confronto com a república de Weimar, o liberalismo e o marxismo. Como todo o revolucionário, vê na revolução um trabalho de artista. Resta saber se, com a morte da singularidade do guerreiro, não desaparece também a singularidade do artista. O leitor poderá encontrar uma resposta ao ler este pequeno romance de Ernst Jünger.

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