A pequena obra El Teniente Sturm, do escritor e
pensador alemão Ernst Jünger, foi publicada pela primeira vez em 1923, como
romance-folhetim nas páginas do Hannoverscher Kurier, e, nos anos
sessenta do século passado, integrada nas obras completas do autor. Trata-se de
um romance que tem como pano de fundo a relação entre arte e vida observada a
partir da tensão entre literatura e guerra. O baptismo do personagem principal,
o tenente Sturm, simboliza isso mesmo. Em alemão, Sturm significa tempestade, o
que não será uma das piores metáforas para reflectir sobre a primeira grande
guerra, cenário dos acontecimentos narrados. Por outro lado, a palavra tem de
imediato uma conotação literária, evocando o movimento Sturm und Drang
(tempestade e ímpeto) que, na Alemanha do século XVIII, afrontou as concepções
estéticas provenientes de um certo classicismo e a influência francesa, e talvez,
mas os analistas dividem-se, o próprio projecto da Aufklärung
(Iluminismo).
O cenário é o das trincheiras numa frente de guerra onde se
opõem tropas alemãs e inglesas. Sturm e dois outros oficiais de baixa patente,
comandantes de pelotões, encontram-se no abrigo do primeiro, ao pôr-do-sol,
para discutir a evolução da guerra e literatura. Sturm é um zoólogo formado em
Heidelberg, mas essencialmente as suas preocupações são literárias. Quando não
tem de estar em combate, passa o tempo a fazer esboços de personagens de um
eventual futuro romance. Entre as discussões sobre a guerra e as sobre estética
e literatura, Sturm lê esses esboços aos seus camaradas de armas. Jünger, um
combatente voluntário da primeira grande guerra, medita sobre dois possíveis
focos produtivos da obra de arte.
Aqueles que ficaram de fora da guerra e que hão escrever
sobre ela e os que, como Sturm, escreverão a partir da experiência própria, do
facto de estarem no centro dos acontecimentos. A arte nasce de uma
esteticização da experiência ou é um produto da imaginação criadora que
suspende os laços com a realidade? Se romance de Jünger é um exemplo do realismo,
nas descrições de ambientes e das peripécias do combate, as personagens de
Sturm – Tronck e Kiel – são idealizações produzidas a partir de um foco
imaginário. Por um lado, um Tronck flâneur que, com elegância e fechado
na sua solidão, passeia entre a massa, num exercício de esteticização de si, de
maneira a que os olhos da multidão ou das mulheres se virem para ele. Kiel, por
outro lado, é a idealização do indivíduo cuja força vital, ardente e violenta,
o leva a rejeitar a ordem burguesa, a razão e a convenção, trocando tudo isso
pelo sentimento, com as consequentes explosões de violência.
O romance contém também uma meditação sobre a guerra, o
indivíduo e o Estado. A primeira grande guerra é um conflito em que a técnica é
determinante para os resultados. Não é que a guerra, desde há muito, não tenha
em si elementos tecnológicos, tanto ao nível das armas como da estratégia
militar. O que se passa agora, porém, é que o desenvolvimento tecnológico aniquilou
a ideia do confronto face-a-face com o inimigo. O indivíduo é submergido pelo
aparato tecnológico, tornando-se uma mera célula num organismo gigantesco que
combate contra outro organismo gigantesco. Na prática, o velho conceito de
honra militar desaparece. Este desenvolvimento da guerra é concomitante ao
desenvolvimento do Estado, o qual produz o mesmo efeito sobre os indivíduos na
sociedade civil. São apenas pequenas rodas dentadas numa engrenagem mecânica
desmedida.
Não se pense, contudo, que esta crítica ao peso desmesurado
Estado e aos efeitos dele – e da guerra – sobre os indivíduos se inscreve numa
perspectiva liberal, ou que anuncie, ainda que ao longe, os devaneios
libertários, de um liberalismo radicalizado. Não é a individualidade do
burguês, seja na empresa ou na universidade, que Jünger, no romance, lamenta.
Isso faz parte de um mundo convencional, o qual transforma os indivíduos em
meras repetições uns dos outros, submetidos à ditadura da massa, que se
expressa através dos desejos de consumo. O indivíduo que o Estado mata é o
homem que se singulariza pela acção ou pela arte, na verdade o aristocrata –
entendendo-se a aristocracia como uma casta político-militar – e o artista. O
primeiro seria um artista que, através da acção, configuraria a comunidade
política, o segundo seria um guerreiro que dobraria a resistências da matéria à
realização dos objectivos do espírito. O encontro, neste romance, entre guerra
e literatura não é um acontecimento fortuito. Há em ambos o poder de
configuração da realidade. Jünger, entre as duas guerras mundiais, é adepto do
se chama revolução conservadora, um projecto político em confronto com a
república de Weimar, o liberalismo e o marxismo. Como todo o revolucionário, vê
na revolução um trabalho de artista. Resta saber se, com a morte da
singularidade do guerreiro, não desaparece também a singularidade do artista. O
leitor poderá encontrar uma resposta ao ler este pequeno romance de Ernst
Jünger.
Lido com interesse.
ResponderEliminarAbraço
Obrigado.
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