domingo, 9 de agosto de 2020

Carlos Fuentes, Aura


A fortuna da obra é quase inversamente proporcional ao seu tamanho. Aura é uma pequena novela publicada em 1962 pelo escritor mexicano Carlos Fuentes. Desenrola-se numa ambiência própria à literatura gótica e essa não será a menor das razões que estará na base do seu sucesso. São múltiplas as leituras – a que de certa forma o próprio escritor dará fundamento – que vêem na novela um exercício simbólico de feitiçaria. Aliás, Fuentes convoca para epígrafe uma citação de La Sorcière, de Jules Michelet. Essas leituras, que fazem uma hermenêutica exaustiva de todos os elementos da obra, desde os nomes dos personagens até aos animais e plantas nela referidas, passando pelos acontecimentos em que se estrutura a acção, são plausíveis. No entanto, é possível uma outra leitura que, não negando o compromisso da obra com esse mundo, tente encontrar aquilo que a literatura questiona e procura na forma de experiência literária.

Por norma, as narrativas são feitas na primeira ou na terceira pessoas. Aura, todavia, é narrada na segunda pessoa, o que introduz de imediato um elemento de perturbação. Logo no início diz-se: Lês esse anúncio: uma oferta dessa natureza não se faz todos os dias. Lês e relês o aviso. Parece dirigido a ti, a ninguém mais. Toda a narrativa é feita neste registo. À partida, o narrador parece dirigir-se para o leitor, como se este fosse o protagonista, como se ele estivesse envolvido nos acontecimentos. No entanto, pode ser também uma estratégia narrativa que leve à letra o dito platónico que afirma que pensar é falar consigo mesmo, uma espécie de diálogo em que o eu se cinde artificialmente para tentar alcançar a verdade. Pode ainda ser uma radicalização do topos platónico, o eu se tenha cindido efectivamente, e o tu seja uma forma coloquial com que o eu se dirige a um tu que é e não é ele mesmo. Seja como for, o primeiro efeito literário está conseguido. Há um efectivo questionamento da identidade do eu. Esta ideia será a chave que pode permitir uma leitura da obra que não se perca nos efeitos góticos com que ela é construída.

Um anúncio num jornal, prometendo um salário generoso e acomodação condigna para a tarefa a realizar, pede alguém, do sexo masculino, que domine o francês e seja historiador. Felipe Montero responde a esse anúncio. Trata-se de ordenar e completar as memórias, escritas em francês, de um homem ligado à revolução mexicana, o General Llorente, que terá morrido há sessenta anos. Quem o pede é a viúva do militar, Consuelo Llorente, que, pelos cálculos que a certa altura o historiador faz, terá então 109 anos. Não tem muito tempo, dirá ela, para publicar as memórias do marido. Vive acompanhada por uma sobrinha, Aura, que, para sobrinha de uma mulher mais que centenária é surpreendentemente jovem. Os olhos verdes dela fazem de imediato Montero apaixonar-se. É entre estes três personagens que se desenrola a trama narrativa, que segue, sem nunca o afirmar explicitamente, o fio de um ritual de feitiçaria, segundo alguns intérpretes da obra.

Aquilo que o leitor vai encontrar de imediato é a ambiguidade das personagens. Será que Aura existe mesmo ou não passa de uma projecção de Consuelo? E a Aura com que Felipe faz amor será mesmo a Aura, ou será na verdade Consuelo ou, ainda, o feminino que habita em Felipe e que, no decorrer da trama narrativa, se separa de si mesmo, simbolizando o acto sexual o desejo de união que todo o ser humano aspira a realizar consigo mesmo, pois todos os seres racionais sofrem desse sentimento de cisão consigo e a concomitante nostalgia de um estado existencial onde estariam completos. Há uma clara utilização do mito do andrógino original narrado por Platão. Por outro lado, também não é claro que Felipe não seja uma metamorfose do próprio General Llorente, cuja parecença ele descobre numas velhas fotografias.

Ao lado do problema da identidade pessoal, outras são trabalhados e que se entretecem com ele. Salientem-se apenas três. Em primeiro lugar, o problema do espaço. Pode-se recorrer à distinção introduzida por Mircea Eliade entre espaço profano e espaço sagrado. Ao entrar na casa de Consuelo Llorente, Felipe Montero abandona o espaço profano da vida quotidiana e entre no espaço sagrado onde decorre a acção. O que é interessante, no entanto, não é associar o espaço onde decorre a narrativa à sacralidade devido ao facto de nele ocorrer, eventualmente, um ritual de feitiçaria, mas perceber que toda a literatura vive da distinção que Mircea Eliade observou no fenómeno religioso. A arte, a literatura narrativa, no caso, introduz uma cisão no espaço, sacralizando aquele onde decorre a narrativa, por oposição ao espaço profano da vida real.

Em segundo lugar, o problema do tempo. A vida quotidiana decorre segundo a regra do calendário. Vivemos inquestionadamente num presente. Recordamos o que se passou e apontamos a seta dos nossos temores e desejos para o que há-de vir. O tempo é vivido como uma linha contínua, que se desloca uniformemente do passado para o futuro. O que a novela de Fuentes faz é questionar essa compreensão do tempo. O tempo de amor entre Consuelo e o General não está apenas num passado irremediável que a morte de um pôs fim. Esse amor torna-se presente, pois Aura é a mulher que o General amou e Felipe é o General amado por Consuelo. Esse tempo compreendido como uma seta arremessada no início do mundo em direcção ao seu fim pode não ser mais que uma capa ilusória de um outro tempo, mais real que se vai manifestando no tempo do calendário.

Por fim, o problema do amor. A novela de Fuentes abra para um conjunto de interrogações sobre a natureza do amor, sobre quem ama aquele que ama, sobre a persistência do amor para além da morte. Contrariamente a um exercício filosófico que tentaria dar resposta a estas questões, expondo teses e argumentos, a literatura enfatiza os próprios problemas, dá-lhes um corpo, para que elas não despareçam e continuem a atormentar o homem. O notável em Aura é que no final estas questões tornam-se mais vivas, mais perturbantes, mais inquietantes. Ela rapta o amor do hábito, da sua quotidianidade e torna-o sujeito de questionamento, como se apenas na inquietação do questionamento de si mesmo o amor fosse possível. Ora, isto mostra, por fim, que o amor vive fundado num princípio de incerteza e é este princípio que o alimenta.

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