sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

A douta ignorância


Aquilo que maior perplexidade me causa não é a avidez dos poderosos ou a impotência submissa dos fracos. Isso é a natureza das coisas. O homem, porém, não é apenas um ser que age segundo a natureza. Ele é dotado de liberdade, e a liberdade é o que lhe permite transformar as necessidades e pôr em causa a ordem natural das coisas. Por exemplo, que o homem não voe é a ordem natural das coisas. A liberdade e a inteligência, porém, permitiram-lhe inventar o avião. Que os fortes dominem socialmente os fracos está na natureza das coisas, mas a liberdade e a inteligência humanas têm o poder e o dever de produzir sociedades de onde essa dominação seja banida, substituída por regras de equilíbrio e de justa medida. Esse é o papel que os cidadãos esperam da actividade política.

Causa-me muita perplexidade que, perante os caminhos que estamos a seguir, os agentes políticos ajam a partir de um grau de certeza e convencimento das suas opções que não augura nada de bom. Se olharmos para o panorama português, da direita à esquerda, não há quem não tenha soluções para a crise e que não se bata com denodo para as impor. Este grau de certeza dos agentes políticos é profundamente preocupante. A realidade com que estamos a lidar, os desafios que o mundo globalizado impõe, os desenvolvimentos científicos e tecnológicos, tudo isso somado torna o futuro tão imprevisível quanto inquietante. Ora a imprevisibilidade e a inquietação exigem tudo menos certezas, exigem uma capacidade, mesmo na acção política, para se interrogar e questionar os caminhos a seguir. Exigem o reconhecimento da própria ignorância.

Platão defendia que a sociedade deveria ser governada por filósofos ou, se isso não fosse possível, que o governante se tornasse filósofo. Esta é uma teoria perigosa que a humanidade, sensatamente, sempre recusou. No entanto, em tempos de crise como os actuais, há uma virtude filosófica que seria essencial para os agentes políticos. Essa é a virtude da douta ignorância, de saber que nada se sabe. Se os diversos agentes políticos abandonassem as suas certezas e reconhecessem que estão perante problemas inquietantes e de solução imprevisível, talvez fosse possível encontrar pontes (um pacto social inclusivo) e dar passos inovadores na resposta aos problemas que enfrentamos. Isso não eliminaria o conflito de interesses, mas poderia obstar que esse conflito caminhasse para a férrea dominação dos fortes sobre os fracos e as consequentes cenas da luta de classes. Seria a prova de que a liberdade levaria a melhor sobre a ordem natural das coisas.

6 comentários:

  1. Mas como pensar na douta ignorância a respeito da política? Essa sábia ignorância, visando a busca da verdade, tem na sua base, uma motivação epistémica, ainda que se trate de questões morais ou políticas (o bem, a justiça). Acontece que na arena política não é a verdade que está em jogo, mas o poder. Tanto o poder como instituição como a vontade de poder. Pedir aos políticos esse exercício de distanciamento e imparcialidade epistémica é como pedir a um leão esfomeado para pensar imparcial e como entidade puramente racional nos louváveis interesses da gazela. Mesmo pensando em Rawls, não é difícil dar-lhe razão com os seus exercícios com o véu da ignorância e a posição original. Mas com a acção política tudo se esvai. As ideologias e os interesses parciais logo se sobrepõem à pura racionalidade.

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    1. Há sempre uma relação entre poder e saber. O saber é parte constitutiva do poder (mesmo nas ciências naturais há uma conexão muito grande com o poder, e o poder político actual funda-se, em grande parte, nelas (basta ver a relação entre a tecnologia e a ordem militar e policial); mas referia-me no texto a saberes menos "duros"). Ora aquilo que me parece interessante é que esse grau de saber - a que corresponderia um estatuto epistémico da ordem da verosimilhança (estatuto adequado ao exercício da acção política, e que seria de ordem ideológica) - se está a tornar demasiado volátil, devido à grande instabilidade em que se vive.

      A douta ignorância das partes era ainda uma proposta de estratégia de salvação do poder (na sua vertente constitucional, claro). A cegueira perante a auto-ignorância de cada uma das partes está a minar os seus próprios projectos de poder. A coisa até é bastante simples: a maioria actual caminha para a perdição; o PS não caminha para a glória; o PCP e o BE, para além de um aumento de percentagem nas sondagens, nada têm que lhes permita afirmar poder e vitória. Os saberes mobilizados por cada uma das partes parecem-me completamente impotentes para os seus projectos de poder.

      No meu texto, não há qualquer intenção de aproximação a situações neutras e imparciais (rawlsianas ou outras). A douta ignorância refere-se mesmo ao reconhecimento da ignorância sobre aquilo que poderá fundamentar e sustentar, no momento actual, os projectos de poder. Este colapso dos saberes fundantes do poder (da verosimilhança ideológica) poderá conduzir a um colapso do consenso necessário à existência do conflito político e dos diversos projectos de poder num quadro constitucional.

      Há ainda uma outra questão que se prende com este problema do consenso e da douta ignorância, mas que estava fora do alcance do meu texto, embora se possa estabelecer a ligação. O consenso estabelecido nos anos 70/80 teve uma natureza positiva, foi construído a partir daquilo que, em comum, poderia ser querido. O que precisamos (pois mais não parece possível), hoje em dia, é um consenso sobre aquilo que não queremos, um consenso negativo. Negativo pois está assente na douta ignorância sobre o que se deseja (há todo um problema sobre o que está ou não disponível no campo dos objectos de desejo social), restando um compromisso possível sobre o indesejável.

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  2. Isto dá gosto ler o que pensa gente inteligente...

    Mas, se me permitem o conselho, para que pessoas como os nossos dirigentes vos percebam, deveriam simplificar a vossa linguagem. Reduzir isso tudo a um ou dois sounbites, mais do que isso a memória deles não retém e o raciocínio não alcança. Por isso, se faz favor, para a próxima tudo muito simples, palavrinhas recalibradas.

    E, quanto a isso do poder e da ignorância e auto-ignorância, temos é que agradecer aos céus por o nosso Primeiro e o seu Vice ainda não usarem os métodos do Kim Jong-un, ou seja, ainda não atirarem os funcionários públicos e aos reformados e pensionistas aos cães como ele fez ao tio. Não somos mas é uns sortudos?

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    1. Ó se somos, até nem merecemos tanta sorte, tanto desvelo, tanto cuidado do senhor primeiro-ministro. Então não merecíamos ser atirados aos cães? Quem manda as pessoas envelhecer? Quem manda as pessoas entregar a vida ao serviço público? Tudo isso é uma conspiração contra a juventude empreendedora, contra a vida, contra aqueles que querem salvar a pátria. Aos cães, aos cães, ouve-se já, mas o PPC é bondoso. Ufa, que sorte.

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    2. Depois de ter apre(e)ndido aqui o que me foi possível. Apenas me atrevo a comentar que o saber, verdadeiro ou falso, sempre que chega ao poder, deixa-se "corromper".

      Um abraço

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    3. Talvez a questão não seja a da corrupção do saber pelo poder. Talvez o saber seja uma parte central do próprio poder, e este é o lugar do mal. Há a ideia do que o saber é libertador, mas essa ideia é, no mínimo, incompleta. O saber é libertador no sentido que aumenta o poder do indivíduo, mas não o desliga da relação de dominação.

      Abraço

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