quarta-feira, 25 de julho de 2012

O mistério da soberania (2)

Michael Wolgemut - Royal portrait

O filho do oficial da guarda sentia que obedecia a ordens escritas e não escritas muito peremptórias, e essa obediência no quartel, no campo de exercícios e nos salões era, ao mesmo tempo, também serviço. A sensação de segurança para cinquenta milhões de pessoas baseava-se nisto: que o imperador se deitava  antes da meia-noite, se levantava logo às cinco da manhã e se sentava numa cadeira de braços de vime americano, à luz duma vela, e todos os outros que juraram lealdade ao seu nome obedeciam às convenções e às leis. Naturalmente, tinham de obedecer num sentido mais profundo do prescrito pelas leis. Uma pessoa trazia a obediência no coração e isso era o mais importante. (Sándor Márai, As velas ardem até ao fim).

Poder-se-á pensar que todo o mistério da soberania reside nos deveres de lealdade e de obediência. Não de uma lealdade superficial e resultante de um cálculo ocasional ou de uma obediência estrita à letra da lei, mas de uma inscrição no coração, muito para além da dimensão da razão, desses deveres ancestrais de obediência e de lealdade. Mas isso não representaria qualquer mistério, apenas uma explicação fundada no sentimento e não, como gostam os modernos, na razão.

O mistério da soberania reside na impassibilidade do soberano, no facto de ele ser uma espécie de motor imóvel, como o deus de Aristóteles. Impassível e dado à pura repetição ritual dos hábitos, o soberano faz mover o mundo, permitindo que este se mova. A lealdade e a obediência são necessárias desde que o soberano se mantenha na impassibilidade. Esta não é inacção, mas, à maneira do Zen, um agir não agindo, um exercício de sabedoria política suprema. O imperador austro-húngaro tinha toda a sua sabedoria concentrada nesse deitar antes da meia-noite e levantar-se às cinco da madrugada para se sentar numa cadeira de vime americano. Mas ele representava já um mundo que tinha morrido e com ele a soberania.

No afã da acção, o governante moderno deixou de ser soberano e passou a ser executivo. Executar é pretender substituir-se àqueles que devem fazer. O curioso de tudo isto é que quanto mais liberais e adversários do Estado são os governos mais eles são executivos, gente de acção, gente que quer conformar o mundo ao seu gosto, isto é, à sua ideologia particular. Isto representa a morte da soberania. Não admira que a Europa, tão cheia de executivos, se debata há longas décadas numa crise de identidade irreversível, apenas disfarçada pelo período do pós-guerra que terminou em 1989. O agir não fazendo do soberano era o princípio que permitia as instituições funcionarem. Ao não agir, ao deitar-se e levantar-se, apenas, o soberano não destruía, estava acima da destruição e da criação, deixava isso aos actores. Hoje os executivos são agentes, gente que ao pretender criar está a destruir, sem que acima deles exista algo que sustente a permanência. 

10 comentários:

  1. Boa tarde,
    Salvo melhor opinião, que certamente existe, a Rainha de Inglaterra será a transposição inconsequente dessa "soberania" para os nossos dias.
    Não faço ideia de quanto tempo dorme, "mas quando está acordada parece que não vai lá nem faz nada", o que significa que a sabedoria escasseia...
    Peço desculpa pela ligeireza do comentário a um poste excelente que merecia muito melhor.

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    1. Diria que a Rainha de Inglaterra é um resquício dessa soberania, uma espécie de reminiscência. Não tem nada de que se desculpar, eu é que agradeço o comentário.

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  2. Acha, então, que, não havendo senão maus sargentos e desqualificados praças, antes uma estátua? E o povo que se oriente sozinho?

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    1. Não tanto assim. O não fazer do imperador era uma forma de fazer. Isso acabou, porém. Provavelmente, a coisa vai continuar a dissolver-se, sem que nada de real aconteça.

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  3. Eu percebi que era isso que queria dizer. Mas, repare: quando o material abaixo é todo de fraca qualidade, de que serve um imperador que não faz nada?

    Veja o nosso Presidente: fazer, ele não faz nada. Diz que disse. Diz que avisou. Diz que também não gosta. Mas... e depois? De que serve isso?

    Não sei, não. Acho que o mal não reside bem aí. Acho que o mal está no enfraquecimento geral a nível cultural, a nível de conhecimentos, a nível de exigência, a nível de carácter. Acho que o mal é mesmo muito profundo, nem tem já bem a ver com regimes.

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  4. O nosso actual presidente não tem qualquer aura. Ele representa o grau zero da soberania. Ele é absolutamente comum, sargento, manga-de-alpaca, mas falta-lhe o outro lado, o brilho do imperador, o saber estar parado e silencioso. Mesmo quando está calado, Cavaco faz demasiado ruído. Ele é o contabilista do regime que foi elevado à presidência, por equívoco. Melhor, ele é o sintoma da mais pura decadência a que se chegou. A falta de aura geral chegou ao ponto de qualquer inculto chegar à chefia do governo. É mesmo uma questão de decadência, talvez irreversível.

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  5. Boa tarde,

    Permito-me regressar, para sugerir:

    http://bonstemposhein-jrd.blogspot.pt/2011/01/nanja-eu.html

    http://bonstemposhein-jrd.blogspot.pt/2012/03/caras-e-carantonhas.html

    Com este "soberano" o Império bateu no fundo da vulgaridade ou terá sido da fatalidade?!...

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    1. Sabe, JRD, para ver a alma de alguém é preciso que esse alguém a tenha. Aquele que nos coube em sorte como presidente não me parece que tenha sido favorecido com uma, mas posso estar enganado.

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  6. Concordo e a sua argumentação, de tão veemente e certeira, até me fez rir.

    Apenas não sou tão pessimista. Acho que é reversível. Não sei quando acontecerá o ponto de viragem, nem o que terá que acontecer antes para o despoletar, mas acontecerá. Tem que acontecer senão acabamos (como os dinossauros).

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    1. Acabar, por que não? É a lei natural de tudo o que é temporal. Nem sei se sou pessimista, mas aquilo que vejo não é lá muito cor-de-rosa.

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