domingo, 29 de julho de 2012

Ícaro e o sonho europeu

Henri Matisse - Icarus (1943-44)

O mito de Ícaro, como todos os mitos, continua a ter um papel fundamental na compreensão das múltiplas dimensões da realidade humana. Neste conturbado momento da vida social e política europeia, a meditação sobre o destino de Ícaro não deixa de ser apropriada e reveladora de uma sabedoria cujo esquecimento se paga de forma muito cara. Em linhas gerais, o mito diz-nos que Dédalo e o filho, Ícaro, fogem da ilha de Creta e do rei Minos usando um dispositivo arquitectado pelo pai, umas asas de penas ligadas com cera. Dédalo avisa o filho para que este, ao voar, não se aproxime do Sol, pois este derreterá a cera e destruirá as asas. Ícaro, porém, deslumbrado com o firmamento, sobe demasiado alto e, derretida a cera, cai no mar Egeu onde encontra a morte.

Depois dos horrores da segunda guerra mundial (ou nos casos ibérico e grego, após as ditaduras nacionalistas), a Europa, por motivos vários (pacto social motivado pelo esforço de guerra, plano Marshall, Guerra Fria), constrói sociedades onde se deu uma grande mobilidade social, com o crescimento exponencial de uma classe média resultante da ascensão social de largos sectores ligados ao mundo dos trabalhadores por conta de outrem.  Esta ascensão, como estamos a descobrir dolorosamente, estava assente em dispositivos sociais tão frágeis como as asas produzidas pelo génio de Dédalo. Como estas, também os mecanismos sociais produzidos pela interacção entre as várias classes sociais tinham eficiência mas eram muito limitados. A legitimidade do sonho europeu estava fundada nesses mecanismos sociais que a globalização está a fundir da mesma forma que o Sol derreteu a cera nas asas de Ícaro. E assim como este encontrou a morte no mar Egeu, também as classes médias se estão precipitar, a grande velocidade, no seu mar Egeu, a pobreza.

Este é o primeiro ensinamento. Mas há um segundo, cuja natureza dá que pensar. Ícaro deixa derreter as asas que lhe foram dadas pelo pai. A sua ascensão não se deveu ao seu génio e à sua iniciativa, mas à do pai. É a estranheza do dispositivo aliada ao deslumbramento com a beleza do firmamento que o conduz à perda. Os mecanismos sociais que suportaram o sonho europeu foram, em larga medida, uma dádiva para aliciar os europeus na luta contra o comunismo. Naquilo que se chama agora Estado social há, para uma larga fatia dos seus beneficiários, uma dimensão de pura passividade. Receberam-no mais do que o construíram. No fundo, não o sentem como coisa sua. Basta lembrar a longínqua origem do Estado social, no século XIX na Alemanha de Bismarck. Talvez este seja o ensinamento maior da actual situação. 

A iniciativa individual e colectiva é essencial, os mecanismos sociais de promoção e protecção sociais terão de ser fruto da iniciativa das comunidades e dos indivíduos e exigem uma participação de todos na sua construção e manutenção. Dito de uma forma que desagrada a certa área da esquerda: é preciso democratizar o liberalismo, isto é, fazer com que a generalidade das pessoas abandone uma situação de passividade social e adquira as competências necessárias ao exercício da liberdade de acção e ao reforço da capacidade de iniciativa. Não bastam a manifestação de rua ou as greves mais ou menos gerais. Esses são mecanismos puramente reactivos e não fundam, na actual situação mundial, nenhum programa de governação sério. Talvez o programa essencial da esquerda esteja numa cultura de liberdade individual e de activação das capacidades de iniciativa, tanto singular como colectiva, e não tanto na defesa das ruínas de uma dádiva que gerou comodidade, mas que não foi uma construção activa da generalidade dos beneficiários. 

12 comentários:

  1. Interessante raciocínio o seu. A ilusão que se desfez. Os caminhos por descobrir.

    Penso que a saída será mesmo por aí e o descontentamento transversal talvez leve a que se desenhem novos caminhos. Mas caminhos orgânicos, exteriores aos caminhos conhecidos (partidos, sindicatos), são realidades caóticas, desestruturadas e, para já, não se vê como possam ser efectivas na concretização de uma nova realidade.

    E as iniciativas individuais podem ser um exemplo mas nunca serão uma solução global.

    Mas um caminho faz-se caminhando, como é sabido. Por isso não é de um dia para o outro que nasce uma via em países que saíram de ditaduras e de anos de analfabetismo para a democracia há ainda pouco tempo e em que a quase iliteracia ainda é uma realidade (especialmente entre os dirigentes quer políticos, quer empresariais).

    De qualquer forma, o que refere é qualquer coisa de semelhante com as sociais democracias dos países escandinavos, por exemplo, não é? Eu acho que aí tudo funciona muito bem, há equilíbrio, transparência, liberdade, respeito, apreço pelo mérito e pelo conhecimento.

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    1. Sim, os países escandinavos, com o seu equilíbrio, são modelares. Há, contudo, algo que queria sublinhar e que mesmo a social-democracia não dá ênfase suficiente: a iniciativa. Esta é a capacidade de inscrever algo de novo no curso do mundo. Exige um conjunto de competências individuais e cooperativas. É o poder da iniciativa dos indivíduos e das comunidades que é necessário fomentar. A esquerda, por exemplo, sublinha as iniciativas colectivas (fundamentalmente, as reactivas e menos as activas) mas despreza as individuais, a direita faz exactamente o contrário (fundamentalmente, na ordem empresarial). O importante é superar a dicotomia, ir para além do pensamento estabelecido e retirar as pessoas e comunidades da pura passividade. Li em tempos, mas já nem me lembro onde, que a alfabetização na Dinamarca, julgo que era aí, foi iniciativa das comunidades rurais já no século XVIII. Em Portugal, a escola sempre foi uma dádiva (desde os mecenas até ao Estado) das elites, o que não gerou lá muito respeito pela instituição por parte dos beneficiários dela. E a esquerda tem reforçado muito esta situação ao nunca (há um período a seguir ao 25 de Abril em que as coisas não são bem assim) se preocupar com a importância da iniciativa.

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  2. Percebo-o.

    No entanto, aí existe uma outra condicionante. Se esse é um exercício de cidadania que tem que ser estimulado, ensinado, e sendo, por definição, os professores os agentes mais vocacionados para isso, fomentando uma nova forma de estar em sociedade desde a mais tenra idade até à formação na idade da adolescência e do início da data adulta (ou até mesmo na formação profissional), como vencer a acomodação e conservadorismo de uma classe que se agarra a programas, a carreiras e outros aspectos de índole mais administrativas?

    Ou pensa que será possível, por geração espontânea, desencadear uma mudança tão radical de atitude nas pessoas?

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    1. Sobre isto, algumas discordâncias. A primeira diz respeito à questão do exercício da cidadania. É um problema que ultrapassa a cidadania e que diz respeito a uma atitude geral acerca da existência (da qual a cidadania é apenas um aspecto). A segunda discordância diz respeito ao papel da escola. Parece-me que a questão central reside na família e na sociedade. É uma questão de educação e não tanto de instrução. As famílias e a sociedade devem fomentar a iniciativa dos neo-natos, educá-los de forma activa e responsável desde muito cedo. A escola, nas actuais circunstâncias, tem um papel secundário. Ela está ligada à instrução e necessita que haja uma educação prévia da vontade das crianças para que possa ter algum êxito. Terceira discordância refere-se aos professores. Geralmente são profissionais sérios. Os programas são-lhes impostos (e sobre isso não há nada a fazer, os programas resultam da decisão política) e as questões de carreira não interferem no trabalho de sala de aula, nem fazem dos professores mais conservadores ou mais inovadores (embora estes conceitos precisassem de ser redefinidos relativamente às tarefas da docência). As questões de carreira sobressaíram na comunicação social porque o poder político decidiu, unilateralmente, rasgar o contrato que tinha com os professores. Nunca dei, porém, que isso afectasse o trabalho escolar (aliás, por isso ser assim, o poder político tem-se permitido degradar até à exaustão a situação do professorado não superior, pois sabe que a qualidade não decresce na mesma proporção da degradação da situação profissional dos docentes).

      Não vejo os professores como uma espécie de vanguarda social, nem a escola como um lugar de revolução. A mudança, a existir, será imposta pela necessidade social e acabará por se reflectir nas práticas institucionais.

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  3. Se a geração do pós-guerra se implicou fisicamente na construção de uma sociedade mais justa, mais consciente das fragilidade sociais e económicas, na institucionalização de serviços para as populações (educação, saúde, saneamento, redes viárias), a geração seguinte implicou-se na reconstrução de uma instituição privada que até então existia por contingência e não por escolha ou investimento individual, falo da família( tome ela a forma que tomar) assim, e ao contrário do que parece querer dizer, creio não foi passividade mas uma deslocação do campo de acção, talvez tenhamos tomado algumas instituições como inabaláveis mas não nos limitámos a derretê-las ao sol, as relações privadas, e nomeadamente as familiares, convocam hoje grande parte do esforço anímico de cada um, porque nada é linear nem hierarquicamente pré-definido.
    A próxima geração será comunitária por instinto de sobrevivência.
    Aguardemos o futuro sem abandonar o presente nem fantasiar o passado.

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    1. Quando me referi ao singular e ao individual não me estava a falar do mundo familiar. Referia-me ao campo social, económico e político, referia-me à iniciativa privada e à pública, nessas áreas.

      Embora tenha havido - e isso tem suscitado leituras muito interessantes como a do sociólogo Richar Sennett, The fall of public man - esse deslocar da acção para a esfera do privado, enquanto dimensão familiar, julgo que subsiste em todas as sociedades, mas de forma mais acentuada nas do sul da Europa, uma dimensão de pura passividade perante os acontecimentos, um desinteresse pela res publica e, mesmo, pela res privada. Diria que muitos seres humanos nessas sociedades alcançam formas de subjectivação muito rudimentares e, por isso, pouco conscientes de si e da circunstância em que vivem, para retomar a expressão do Ortega y Gasset.

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  4. Já em tempos divergimos sobre a função ou a responsabilidade dos agentes de ensino.

    A mim parece-me que, a nível global, pelo menos reportando-me a Portugal, uma parte do problema reside da falta de exigência, na falta de preparação, na falta de cultura e de conhecimentos (por contraponto à rapidez na obtenção de informação que tem como expoente anedótico a licenciatura do Relvas).

    Os políticos, os governantes, os autarcas, os gestores, os empresários são massa inculta. A população que está sob sua alçada aos mais diferentes níveis, é (em termos gerais) idêntica. Ou seja, tudo gente facilmente manipulável. Logo, gente tendencialmente passiva.

    Aceitam tudo, não são capazes de escolher ou definir alternativas.

    Como é que se coloca uma população a querer aprender, a arriscar descobrir alternativas, a distinguir o trigo do joio, a exigir, a ir à luta?

    Eu diria que tem que haver uma mudança grande na forma como se preparam as pessoas, começando logo de pequenas. Associo isso à aprendizagem. Logo, associo isso ao ensino. Uma aculturação muito diferente da actual, é o que me parece indispensável.

    Claro que, não sendo por aí, haverá iniciativas ad hoc mas não uma mudança comportamental expressiva.

    Mas já sabe, de outros comentários, que tenho uma visão idealizada (ou idílica) do que deveria ser o ensino e do que deveria ser a postura dos professores (que, do que me parece, se cingem aos programas - que são obrigatórios, eu sei, mas que não deveriam ser exclusivos de outras actividades - e não são se mobilizam para iniciativas como as que refere)

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    1. Tenho uma visão do ensino não apenas por ser professor e formador de professores mas por ter, em tempos, desempenhado, no âmbito do sistema educativo mas fora da escola, outro tipo de funções e ter mesmo participado e coordenado um conjunto de estudos sobre questões ligadas ao sistema (provas globais, exames nacionais de matemática (quem diria) e currículo de filosofia), para além de ter uma reflexão sobre o assunto no âmbito da filosofia política.

      Aquilo que foi pedido aos professores portugueses, até certo momento, é que eles colocassem alunos nas universidades. Fizeram-no e de tal forma bem, que a própria sociedade não consegue absorver os licenciados. Isto é um ponto a favor dos professores portugueses. Mas não só. Apenas quem conhece a arbitrariedade do Ministério da Educação, as alterações de políticas só porque sim, as "invenções" que a cada momento os efémeros detentores da 5 de Outubro se lembram, pode compreender as difíceis condições com que trabalham os professores. Depois, há desempenhos diferentes, mas julgo que, globalmente, o desempenho dos professores portugueses é muito superior ao da sociedade portuguesa.

      Há um problema que mereceria atenção. O currículo escolar está centrado na aquisição de conhecimentos e no treino de competências (agora menos, pois o actual titular não gosta da coisa). Isso está construído no esquecimento da educação da vontade. Julgo que há dois motivos para isso. Em primeiro lugar, pela substituição, no âmbito das pedagogias, da temática da vontade, de índole filosófica, pela da motivação, de índole psicológica. Em segundo lugar, porque a educação da vontade tem má fama. É vista como qualquer coisa totalitária. Mas a vontade é a racionalidade prática que preside à iniciativa. Mas a maior parte dos decisores políticos e educacionais não fazem a mínima ideia do que é isso. E é ao nível da decisão que o essencial se joga. Depois, é uma questão de aplicação prática, que uma eficiente gestão de recursos humanos, caso ela existisse nas escolas, não teria dificuldade em mobilizar os professores para a sua consecução.

      Os verdadeiros problemas do ensino não estão nos professores, mas nos alunos e famílias e na decisão política e pedagógica. São quase três dezenas de anos a observar o fenómeno, e cada vez estou mais convencido que é nessas duas áreas que haveria que mexer. Mas, também estou convencido disso, nunca se mexerá.

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  5. A "bruxa da net" não permitiu que viesse mais cedo, mesmo
    asim, peço licença para meter um colherada muito
    simples no diálogo.

    Os dinamarqueses constituem um povo invulgar, mesmo se considerarmos os restantes povos nórdicos.
    Um dia escrevi assim no bth:

    «É impossível não gostar desta terra, onde foi criado o lego que fez as delícias dos nossos filhos, e deste povo que fabrica a melhor cerveja do mundo e que produz um bacon e uma manteiga de "morrer" -de colesterol- para depois os 'derreter' no culto da bicicleta.
    A Dinamarca é um país feliz e, acima de tudo, solidário, a História dá disso testemunho.
    Curiosamente, são os próprios Danes que o dizem e eu não tenho dúvidas em confirmar, que o seu sucesso se deve ao facto de possuírem todas as virtudes dos povos vizinhos e nenhum dos seus defeitos, podendo mesmo afirmar-se que a sua maneira de ser resulta de uma simbiose quase perfeita entre a beleza e personalidade dos noruegueses, a constante disponibilidade dos finlandeses, o rigor e a capacidade de organização dos Alemães e o sentido de equilíbrio e a mentalidade igualitária dos Suecos.»


    Mais do que a"Social-democracia", que contou sempre com o apoio de correntes progressistas minoritárias,indispensáveis, no parlamento e fora dele, foi o povo dinamarquês que soube construir o seu passado, seu presente e,acredito e desejo, o seu futuro.

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    1. Os nórdicos são um exemplo, e entre eles os dinamarqueses. Mas sabe, julgo que eles serão um alvo futuro dos "mercados". Depois de se liquidar a Europa do sul e do centro, as forças "libertadoras" dos mercados apontarão para o socialismo que existe na Europa do norte e tudo farão para liquidar as social-democracias nórdicas.

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  6. Os "mercados" como eufemisticamente se chama agora ao Capitalismo cruel e selvagem (já teve tantos nomes...)vão atacar a norte, é provável, mas depois, se vencerem, só lhes resta devorarem-se a eles próprios.

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    1. Pelo menos é essa a lógica da coisa, levar a competição até ao fim, o que significa, na ausência de reguladores - e como eles odeiam os reguladores e as regulações -, a triunfo de um só, o monopólio, o fim da competição e a instauração da escravatura.

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