Cosmopolis, o novo filme de David Cronenberg, como seria de esperar, gerou reacções desencontradas (ver aqui, aqui, aqui, aqui e aqui, por exemplo). Baseado no romance de Don DeLillo, com o mesmo título, o filme narra um dia na vida de um jovem hipermilionário, Eric Packer, uma estrela do mundo financeiro, um dia em que perde absolutamente tudo em troca da verdade sobre si mesmo. Esse dia é passado praticamente dentro da limusina, sobre-equipada, onde trata dos seus negócios, da sua saúde, dos seus encontros amorosos, da sua vida. O motivo da viagem - uma viagem absolutamente desaconselhada, pois não só havia uma visita do presidente dos EUA à cidade, Nova Iorque, como o funeral de uma grande estrela do sufi rap, encenada tão majestaticamente quanto a visita presidencial, para além de manifestações e desordens generalizadas - é absolutamente pueril: cortar o cabelo.
Será o filme uma alegoria acerca do actual estado do capitalismo global? Uma alegoria fundada no exemplo das crises do subprime, nos EUA, e das dívidas soberanas, na Europa? Cronenberg diz que não, que se trata-se apenas de vida humana. Na verdade, é uma variação sobre a temática da identidade. Mas é preciso compreender a relação entre essa identidade e o mundo que ela cria para agir dentro dele. O que é mostrado torna evidente a vacuidade do mundo onde Eric Packer se move. O mundo financeiro vive de fluxos informacionais (a forma como o dinheiro agora se manifesta), codificados segundo uma gramática legal, ao qual corresponde uma realidade puramente potencial. Esta realidade ontologicamente pervertida - pois daquela informação que possibilita um conjunto incalculável de coisas actuais ou reais apenas uma ínfima parte se realiza, por exemplo na aquisição de bens, enquanto a outra se vai transformando, segundo uma lógica de casino (a metáfora do capitalismo de casino, por muito que escandalize os nossos comentadores mais susceptíveis, é uma metáfora com elevado potencial heurístico), em mais ou menos informação.
A solidez e materialidade do mundo do capitalismo industrial desapareceu. Com ele desapareceram essas personagens que pareciam sólidas e criadoras, capazes de tirar do nada um mundo. Estamos num processo inverso. As grandes personagens, como Eric Packer, são aquelas que conseguem reduzir um mundo a um puro nada. Personalidades sólidas e criadoras deram lugar, num mundo financiarizado (que vocábulo horrível), a jogadores hábeis no cálculo mas evanescentes, destituídos de conteúdo, sendo, eles próprios, apenas constituídos por fluxos de informação e as necessárias gramáticas legais e regras de cálculo. Dito de outra maneira, puras formas destituídas de conteúdo. Aquilo que Cronenberg, na sequência de DeLillo, dá a ver não é o capitalismo financeiro em acção, mas a realização de um mundo como operação de um determinado tipo de humanidade. Assim como o mundo aristocrático, ou o capitalismo industrial ou o socialismo soviético corresponderam a determinadas potencialidades humanas, também a economia financeira global e a sociedade que lhe corresponde são emanações de um conjunto de potencialidades humanas que assim se realizam. Eric Packer não é uma pura essência espiritual, um anjo mesmo que decaído. Ele é uma pura forma tecida de informação e regras.
O carácter teatralizado das personagens, muito longe do naturalismo cinematográfico, compreende-se, em primeiro lugar, por aquilo que acabámos de dizer. Pura forma evanescente, verdadeira sombra fantasmática, o novo homem precisa de um esforço para se articular. A sensação da teatralização corresponde, antes de mais, à natureza das personagens, entes vazios que se representam enquanto puras aparências. Em segundo lugar, e aqui poderá haver uma opção estética, a teatralização, o carácter artificial das interpretações, parece um eco da tragédia grega. Na tragédia clássica (pelo menos em Ésquilo e Sófocles) os autores não pretendiam ludibriar o público com uma representação naturalista. Os caracteres dramáticos não eram o retrato do homem comum, e não falavam nem agiam como o homem comum. Essa incomunicação (melhor seria dizer incomunhão) estava na base do prazer estético da tragédia, o prazer de ver o herói dirigir-se para a sua própria perda. E é isso que Cronenberg mostra. Eric Packer não é um homem comum. Nenhum dos seres humanos comuns faz um check up diário, ou, por caprichoso e poderoso que seja, atravessa uma cidade em estado-de-sítio, com o trânsito cortado e barreiras levantadas, movido pela trivialidade de um corte de cabelo desnecessário, feito no velho barbeiro do seu pai (um leve toque psicanalítico na intriga). Ele dirige-se seguramente para a sua perda. O prazer estético deriva, então, de se ver o herói e o mundo que ele configura dirigirem-se para a derrocada.
Por fim, a questão da viagem. A viagem é um topos recorrente da literatura e do cinema ocidentais. As viagens bem sucedidas são aquelas que vêm de imediato à memória. O retorno de Ulisses à pátria e a recompensa nos braços de Penélope. Na tradição judaico-cristã, a fuga do povo eleito do Egipto e a recompensa de chegar à terra prometida. Mas há outro modelo no topos da viagem. O retorno de Agamémnon, após a vitória sobre os troianos, a casa para ser assassinado pela mulher, Clitemnestra, e pelo amante desta, Egisto. Também a viagem de Édipo que foge à terrível profecia de matar o pai e casar com a própria mãe, tem como fim o cumprimento da profecia. Também a viagem de Eric Packer é um encontro com a sua própria morte e nesta revela-se a sua verdadeira identidade.
David Cronenberg (2012). Cosmopolis [IMBD]
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