Salvador Dali - Metamorfosis de Narciso (1937)
Eras o parente de Chopin, o misterioso, o orgulhoso. Mas no fundo da tua alma escondia-se uma emoção convulsiva - o desejo de ser diferente daquilo que eras. É a maior tragédia, com que o destino pode castigar o homem. O desejo de ser outro, diferente daquilo que somos: não pode arder um desejo mais doloroso no coração humano. Porque não é possível suportar a vida de outra maneira, apenas sabendo que nos conformamos com aquilo que significamos para nós próprios e para o mundo. (Sándor Márai, As velas ardem até ao fim, pp. 99/100)
Que forças movem o mundo? O excerto de Sándor Márai sublinha aquilo que parece ser o essencial: o desejo de ser outro e o desejo de se conformar com aquilo que se é. Poderíamos dizer: o desejo do burguês e o desejo do aristocrata. O primeiro não suporta a sua subalternidade social e o segundo apenas compreende o que é imutável, a sua eterna condição de aristocrata. Mas tudo isto repousa numa sabedoria humana e incerta. Quem sou eu ou o mundo para determinar quem é este que diz eu? O aristocrata vive num narcisismo encerrado na imanência atemporal de si mesmo. O burguês descobre-se narciso em metamorfose, uma auto-produção do seu desejo.
Há uma outra via, aquela de quem aceita que é um mistério e faz da vida um caminho de decifração. Não quer ser outro nem quer ser si mesmo. Deixou de querer e entrega-se ao puro devir, à dança do acontecer, encontrando aí os sinais a decifrar. Esse já não quer conformar-se com o seu significado, pois descobriu a sua in-significância; também não deseja qualquer alteridade, pois deixou de saber a diferença entre o mesmo e o outro, e não crê que exista algum si mesmo de onde parta ou algum outro onde possa chegar. Ele não quer mover o mundo, mas exercitar-se a dançar nele e com ele.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.