terça-feira, 31 de maio de 2022

A persistência da memória (14)

Gertrude Käsebier, Blossom Day, 1904-05

Há memórias pessoais feitas de restos de vida, de vestígios dos desejos consumados, de signos de esperança, de dores ou desgostos do passado. Persistem e tornam-se memórias para dar a cada um a certeza da sua incerta identidade. Outras há, porém, que não têm o papel de certificar quem se é, mas de fundar uma identidade. Uma mulher passeia com o filho ao colo pelos campos, tal como teria passeado a Virgem com o Menino. Esta memória vinda na tradição não nos dá certeza alguma sobre nós. Abre o caminho por onde caminhamos sustentados pela persistência de memórias que não sendo nossas, se tornaram nossas ao serem o modelo que permite caminhar sem nos perdermos nos acidentes de cada dia.

domingo, 29 de maio de 2022

Nocturnos 80

Edvard Munch, The Storm, 1983

Existirá uma ciência das tempestades e uma sabedoria da noite. Quando uma súbita ignição incendeia a noite e devasta a sua sabedoria, descobre-se quão inútil é a minúcia de quem se entrega à ciência das tempestades.

sexta-feira, 27 de maio de 2022

A Garrafa Vazia 89

José María Herrero Gómez, Aguatinta para el Duero, 1996

Rasgo a carne

com a faca

do dia.

 

O sangue goteja

pelo chão

das ruas.

 

Espero a noite

devorado

pelo dardo da dor.


Maio de 2022

quarta-feira, 25 de maio de 2022

Beatitudes (53) O horizonte aberto

Ansel Adams, Road after Rain, Northern California, 1960

Pensa-se muitas vezes que a felicidade reside na realização dos desejos, esquecendo-se que todo o desejo consumado fecha uma porta e abre a janela para uma consciência infeliz. Ter o horizonte aberto, saber que as possibilidades estão diante de nós, sem que um fim as delimite, dá um sentido à vida e não haverá beatitude maior que uma vida significante.

segunda-feira, 23 de maio de 2022

Ensaio sobre a luz (93)

Max May, Kalter Rauhreiftag, 1908

Uma capa de luminosa brancura desce sobre a terra, cobre-a com o alfabeto do frio, enche-a de palavras que se trocam para que a luz do Inverno não se afogue na escuridão da noite. Então, a esperança, presa no horizonte, desliza com demora, até que chegam os dias cobertos pela Primavera.

sábado, 21 de maio de 2022

A submissão


Um dos temas recorrentes do Partido Comunista Português é o da submissão de Portugal e da Europa aos EUA. Com a invasão russa da Ucrânia e a solidariedade generalizada – generalizada não quer dizer total – dos portugueses com o destino dos ucranianos e da União Europeia com a Ucrânia, a retórica em torno dessa putativa submissão ao imperialismo americano aumentou de intensidade. Resiste esta acusação aos factos? São os Estados Unidos, em relação à Europa e a Portugal, em particular, uma potência de ocupação ou são Portugal e a União Europeia protectorados americanos? Só há uma resposta: não. Pelo contrário, os exércitos americanos vieram duas vezes, no século XX, à Europa para ajudar libertá-la dos sarilhos em que se metera e não para a submeter. Não há qualquer sinal de submissão dos países da União Europeia a um diktat americano. O que há é um desejo de estreitar mais as relações, como se vê agora no caso da Suécia e da Finlândia.

Se os europeus estão alinhados com os americanos, isso deve-se, em primeiro lugar, ao facto de terem interesses comuns. Os governos europeus, eleitos democraticamente, têm manifestado consecutivamente o seu interesse na cooperação com os EUA, não por submissão, mas porque acham que é benéfico para os respectivos povos. Aliás, a presidência de Donald Trump e a ameaça do fim da NATO e de ruptura com a Europa deixaram em pânico não poucas capitais europeias. Além dos interesses económicos e militares há outro motivo. Entre europeus e americanos há um fundo comum, uma cultura e um modo de vida partilhados. Esse modo de vida assenta na liberdade, na possibilidade de cada um dirigir a sua vida do modo como entende. Por muito realista que se seja na análise das relações internacionais, não é possível pôr de lado, na relação entre EUA e UE, esse factor.

Imagine-se, agora, que os países da União Europeia rompiam a colaboração com os EUA. Que se extinguia a NATO e se fechavam as portas aos interesses americanos. Não é preciso muita imaginação para perceber como os povos europeus ficariam à mercê dos inimigos visíveis e dos invisíveis. A Europa tornar-se-ia, de imediato, um rebanho de cordeiros na mira de matilhas de lobos de diversas proveniências. E por muito que os europeus cressem na paz e se mostrassem pacíficos, isso não alteraria o desejo de domínio de terceiros. Pelo contrário. No lugar de submissão aos EUA, Portugal e os países da União têm na aliança com os americanos um escudo que protege um modo de vida que não sendo o do paraíso, ainda assim é o melhor que se encontra por esse mundo fora. 

quinta-feira, 19 de maio de 2022

A Garrafa Vazia 88

Antonio Clavé, 23-11-75, 1975

Símbolos da noite caem

em cascata

sobre a areia suja

do dia.

 

Trazem na poeira do dorso

o rio poluído

de cada noite,

o coração rasgado da morte.

 

Sinais de um fogo frio

pelas encostas

feridas

pelo tambor da traição.

 

Maio de 2022

terça-feira, 17 de maio de 2022

A persistência da memória (13)

Edward Weston, Hills and Poles, Solano County, 1937

Nas montanhas vazias, na terra entregue à aridez dos dias, os postes de electricidade não são um símbolo dos tempos modernos, de uma civilização em que o consumo de energia se tornou a móbil da vida. Na paisagem deserta, esses simulacros de cruz são o sinal da memória na sua luta, nunca acabada, contra o esquecimento. Por aqui, dizem, passaram os homens e deixaram-nos não para que os sirvamos, mas para que outros que virão se recordem deles.

domingo, 15 de maio de 2022

Sandel e a roda da Fortuna

Edward Burne Jones, A Roda da Fortuna, 1883

Na entrevista concedida ao jornal Público de hoje, o filósofo norte-americano Michael Sandel salienta a importância da sorte na vida dos indivíduos. Faz parte de uma argumentação contra a ideia de mérito, a qual, segundo ele, está a corroer as sociedades democráticas. As pessoas que alcançam sucesso na vida estão convencidas de que ele resulta apenas do seu mérito. Isso é falso. Apesar do talento e do trabalho, no sucesso de cada um há a contribuição dos outros, a qual é muitas vezes apagada, e também a sorte. Um dos exemplos dados é o de Cristiano Ronaldo. Não se nega que, no jogador português, exista muito talento e muito trabalho, mas o seu sucesso não depende apenas do seu mérito. Depende de muitos factores, onde existe a contribuição de outros (por exemplo, treinadores) e também da sorte. A sorte, por exemplo, de ter nascido num tempo em que se valoriza o futebol. Esse talento seria imprestável no Renascimento.

A estratégia de Sandel é sublinhar que o reconhecimento da sorte no destino dos indivíduos é um factor que pode tornar as pessoas de sucesso mais humildes e de prestarem atenção aos outros e, por certo, às próprias regras do jogo social em que uns são beneficiados e outros prejudicados. O filósofo americano visa, com esta argumentação, reforçar a ideia de bem comum e as próprias comunidades. Os antigos gregos e romanos tinham uma noção muito clara do papel da sorte, da fortuna, no destino das pessoas. Esse papel foi sendo rasurado e a partir do Iluminismo foi visto como uma explicação irracional. Com a globalização e o triunfo do chamado neoliberalismo, os vencedores sociais eliminaram da explicação do seu sucesso a sorte, racionalizando-o como fruto único do seu mérito, esquecendo coisas básicas como o facto de ninguém ser responsável pela sua carga genética, pela sua inteligência ou até pela sua capacidade de trabalhar e de perseverar. Perante os muitos milhões de perdedores, muitos deles apenas vítimas das circunstâncias e de decisões políticas que não podiam controlar, a retórica do mérito tem sido um factor de destruição do consenso democrático e de polarização política entre as elites e as pessoas comuns. Daí o apelo à humildade como o outro lado da sorte. 

sexta-feira, 13 de maio de 2022

O progresso moral da humanidade (6)

Frank Horvat, Beggar, Calcutta, India, 1953
Por mais que se especule, e não faltam especulações de múltiplas cores, nunca se sabe se a queda na mendicidade se deve a uma falência pessoal ou a uma estrutura social produtora de exclusões. A presença do mendigo e o gesto interpelativo de estender a mão a quem passa são um desafio não a apenas à benevolência de quem é interpelado, mas, antes de mais, à ideia de um progresso moral da nossa espécie. A figura de quem suplica auxílio, independente das razões, nunca deixa de surgir à razão interpelada como um contra-exemplo poderoso à condescendência moral do homem moderno.

quarta-feira, 11 de maio de 2022

Beatitudes (52) O território

Photoglob Zürich, Rosenlaui with Well & Wetterhorn mountains, 1910

Existem paisagens que esmagam o coração, pois a beleza ainda é uma forma de opressão, talvez a mais terrível das tirania ao cimo da Terra. Os olhos deixam-se cativar e não há força de alma que consiga resistir ao império que a sujeita. O tempo, porém, dissolve a angústia e, por instantes, o espírito descobre o território da felicidade. Ali, onde a beleza reina, ainda pode resplandecer a beatitude.

segunda-feira, 9 de maio de 2022

A Garrafa Vazia 87

Paul Ackerman, Andante

Estremece-me a boca no ranger

dos dentes,

a súbita dor cravada

no arquipélago do coração.

 

Suporto o ir e vir do látego,

a carne estilhaçada,

traída pela vida,

vergada ao esquecimento.

 

Aperto na mão a garrafa vazia.

A boca seca, os dentes

tomados pela cárie

aberta no crepúsculo da tarde.

 

Maio de 2022 

sábado, 7 de maio de 2022

Viagens pelo centro político


França: a perda do centro. As eleições presidenciais deram a vitória a Emmanuel Macron, um político centrista. Quando as democracias liberais funcionam razoavelmente, existem dois centros. Um inclinado à esquerda e outro à direita. Não existe, em França, um centro para se opor ao de Macron. Existe uma extrema-direita forte e uma esquerda radical tão ou mais forte. Neste momento, não é impossível que uma coligação em torno de Mélenchon ganhe as próximas eleições legislativas. Caso isso aconteça, podem emergir dois cenários. Ou a governação segue o destino do Syriza grego e se afirma no centro-esquerda, ou se mantém fiel aos princípios que defende actualmente, e a França estará metida num sarilho.

Alemanha: os equívocos do centro. Não há no caso da Alemanha um problema de representação política ao centro, pois tanto o centro-direita como o centro-esquerda são fortes. A invasão da Ucrânia, porém, tornou manifesto o equívoco em que o centro político alemão navegava. Subestimou a ameaça e tratou a Federação Russa como se fosse uma potência liberal e respeitadora dos valores liberais. Ninguém, no centro político alemão, dorme de consciência tranquila. Confundir o desejo com a realidade tem um alto preço. Resta saber que efeitos isso terá no futuro do centro político germânico.

Inglaterra: a estabilidade do centro. Depois das facécias radicais que conduziram ao interminável drama do Brexit, a Inglaterra voltou ao seu jogo político habitual. À erosão dos conservadores, centro-direita, corresponde o reforço dos trabalhistas, centro esquerda. As sondagens não apontam para nenhum drama, nem se prevê ameaças estruturais à democracia e ao Estado de direito. A estabilidade do centro, na sua natureza bicéfala, é o ponto central da estabilidade democrática.

Espanha e Portugal: o centro coxo. Em Espanha, o centro-esquerda, PSOE, já não consegue governar sem aliança com o Unidas Podemos (UP). O que parece estar a passar-se é que o UP se está a aproximar do centro, numa emulação do Syriza grego. O principal problema vem da direita. Neste momento, não será possível em Espanha um governo de direita sem a inclusão da extrema-direita. Não se prevê, de momento, que o Vox possa seguir uma aproximação ao centro-direita equivalente à do UP, ao centro-esquerda. A situação em Portugal está firme à esquerda, onde o centro é capaz de gerar soluções governativas sólidas. O problema está à direita e o peso que a extrema-direita poderá vir a ter. Por isso, as próximas eleições no PSD são muito importantes para o partido, mas também apara democracia liberal em Portugal.

quinta-feira, 5 de maio de 2022

Nocturnos 79

Dirk de Herder, Stockholm, 1951
Por vezes, as cidades, durante a noite, são tomadas pela loucura. Rasgam os pactos que regem a benevolência e dilaceram-se com a espada vibrante da luz. São um paraíso para quem não suporta o silêncio e a sua própria presença. Outras vezes, deixam-se embalar pela sonolência que desliza da iluminação pública e tornam-se uma paisagem lunar onde os seres sonâmbulos caminham sem perigo à espera da aurora. 

terça-feira, 3 de maio de 2022

Simulacros e simulações (34)

Frank Horvat,  Elstree Film Studios, filming Moby Dick, 1954

O cinema simula de tal modo a realidade que a fronteira entre ela e a fantasia se foi esbatendo lentamente. Entre o que o ecrã mostra e o que vivemos reina a pura continuidade. A mais estranha consequência recai sobre nós, os mortais. Conforme a fronteira se ia diluindo, íamo-nos desrealizando, perdendo a consistência até chegarmos ao momento em que cada um é apenas o simulacro de si mesmo.

domingo, 1 de maio de 2022

Respirar fundo


No domingo, 24 de Abril, respiraram fundo todos aqueles que valorizam a União Europeia (UE) e o seu modo de vida. As eleições francesas não diziam apenas respeito aos franceses. Nelas jogava-se o destino do projecto europeu tal como o conhecemos. Uma vitória da senhora Le Pen seria não apenas um presente para Putin, mas uma bomba de fragmentação sobre a UE. Aquilo que lhe poderia acontecer não seria muito diferente daquilo que aconteceu ao bloco de Leste, quando a União Soviética implodiu. Em poucos anos voltariam as velhas rivalidades, incendiadas pelos nacionalismos, e o espaço que agora constitui a UE seria constituído por Estado nacionais irrelevantes no contexto internacional, em conflito entre si e, muito provavelmente, sob o pastoreio da Rússia. A eleição da senhora Le Pen seria a primeira pedra, na Europa Ocidental, da construção da Eurásia.

A vitória de Macron, porém, não deve tranquilizar, pois o mal-estar que assola França não deixou de existir. Vale a pena dar atenção a um estudo do jornal francês Le Parisien. Há claramente um problema de luta de classes. Enquanto os quadros e os profissionais intermédios (classes médias) votam maioritariamente em Macron, com destaque para os primeiros, os empregados e os operários votam em Le Pen. Se se olhar para o rendimento, aqueles que têm um rendimento familiar limpo acima de 3 000€ votam, preferencialmente, em Macron. Aqueles cujo rendimento familiar é inferior a 1250€ inclinam-se para Le Pen. Este eleitorado era, antigamente, o suporte da esquerda, do PCF e do PSF. Estes partidos são hoje quase inexistentes e os seus eleitores transitaram, em grande parte, para a extrema-direita. Mais que a questão da imigração e do Islão, é a distribuição da riqueza que alimenta o crescimento da extrema-direita.

Este problema não é apenas francês. Atinge o projecto europeu, enquanto construção democrática. As políticas liberais adoptadas nos últimos decénios têm criado uma vaga de ressentimento entre aqueles que perdem com essas políticas, e esses são muitos. Macron tem cinco anos – caso tenha sorte nas legislativas – para resolver este problema e evitar uma catástrofe nas próximas eleições. Isso, porém, não basta. É necessário que a UE reconsidere as suas políticas e os resultados do impacto delas no crescimento de descontentes e, concomitantemente, da extrema-direita. Os regimes democráticos dependem da existência de grandes classes médias. Se estas são destruídas por políticas liberais, parte do eleitorado sente que não tem nada a perder e, tomado pela cólera (uma palavra muito presente na política francesa), não se importa de fazer explodir o sistema.