quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Thomas Mann, Sua Alteza Real


Publicado em 1909, sete anos após o primeiro romance, Os Buddenbrook, Sua Alteza Real é uma das obras romanescas menos conhecida de Thomas Mann. Terá, na época, divido o público e a crítica, tendo conquistado os favores do primeiro e deixado a segunda desapontada. Quando se pensa na obra do autor o que vem de imediato à mente são romances como Os Buddenbrook, Morte em Veneza, Montanha Mágica ou Doutor Fausto. O que terá desapontado a crítica de então e encantado o público foi a obra parecer um conto de fadas, com um casamento por amor e um final feliz, tudo passado num Grão-Ducado, o de Grimmburg, que, também ele, na viragem do século XIX para o XX, parece saído de um conto de fadas. Esta sensação de leveza que percorre toda a narrativa é tudo menos superficial, havendo nela um olhar crítico tanto das instituições sociais como das existências individuais.

O Grão-Ducado é, na verdade, uma visão simbólica de parte da Europa que continuava, por aqueles anos, em convulsão desde que a Revolução francesa, nos finais do século XVIII, pôs em causa o Antigo Regime e as próprias monarquias. Um século não bastou para definir os contornos de um mundo novo. Foi preciso esperar a grande guerra de 1914-1918. Aquilo que Thomas Mann manifesta é a clara disfunção da instituição real – no romance, grã-ducal – num mundo movido pelo desenvolvimento da revolução industrial e da economia capitalista, onde os empreendedores são os grandes heróis que rasgam os caminhos que o mundo vai trilhar. Quando o Grão-Duque João Alberto III morre, o filho Alberto sucede-lhe, mas é um homem doente, neurótico, incapaz de exercer as funções públicas que lhe dizem respeito, que as delegará sistematicamente no irmão Nicolau Henrique. Thomas Mann mostra a decadência da instituição política na doença daquele que lhe dá corpo. A estrutura política tradicional do Grão-Ducado está doente por desfasamento com a realidade do mundo. Essa doença mantém o país atrasado e contamina as próprias finanças do Estado e da coroa. Esta era já, por essa Europa fora, a situação de muitas monarquias.

As grandes decisões políticas já não passavam pela coroa. Esta aquiescia nelas e tinha uma função de representação da unidade do país. A recusa do Grão-Duque incumbente de cumprir as funções de representação abriu o caminho para que o irmão, Sua Alteza Real Nicolau Henrique, figura em torno da qual se desenrola o romance, as exercesse. Como segundo na linha de sucessão do pai e tendo em conta a debilidade do irmão, tinha sido preparado para essas altas funções de representação. Essas altas funções, porém, não desencadeavam absolutamente nada no país. Tudo teria acontecido sem que ele estivesse presente numa inauguração, numa festa, num jantar. A vida efectiva passava ao lado da vida representada. Apesar de aclamado e vitoriado em todos os lugares onde se encontrasse, apesar de amado pelo povo que nele se reconhecia, Nicolau Henrique começou a sentir um grande vazio dentro de si. Tudo era meramente protocolar, uma encenação que servia para dar um verniz à realidade, mas que nenhum poder tinha sobre ela. Não apenas os discursos, mas as meras conversas de circunstâncias eram movidas por hábitos de cortesia protocolares a que faltava o interesse vivo pelas pessoas e pela realidade. O vazio sentido por Nicolau Henrique não era mais do que o resultado da pressão da função sobre si-mesmo, sobre a sua identidade, sobre a pessoa e a sua subjectividade.

Para além de conto de fadas, Sua Alteza Real é também um romance de formação, na tradição do Bildungsroman iniciada com Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister, de Goethe. O romance começa com o nascimento de Nicolau Henrique, um rapaz perfeito, com a excepção do braço esquerdo encurtado e a respectiva mão atrofiada, devido a inibição amniótica, no dizer do médico pessoal do Grão-Duque. A aprendizagem da futura Alteza Real começa na prática com o saber lidar com a sua deficiência, o que o obrigava a um certo tipo de pose. O romance mostra-o, depois, nas diversas etapas de vida. Na escola, no serviço militar, na universidade. Em todo lado, porém, o seu estar ali é uma representação, marcada sempre por uma descoincidência entre a ipseidade, constitutiva da pessoa, e a função inerente ao estatuto. Na verdade, ele não foi um verdadeiro estudante, nem um autêntico militar. Toda a sua formação foi feita para que a realidade, incluindo a sua, lhe fosse invisível. O fundamental era a adequação à função social que o estatuto o obrigava. Mais, o fundamental é que a sua pessoa se reduzisse ao seu conteúdo funcional. A sua aprendizagem é uma aprendizagem do esvaziamento da vida interior e de tudo aquilo que poderia ser marca de uma subjectividade que estivesse para além da máscara social.

O conto de fadas é desencadeado pelo interesse de Nicolau Henrique por Imma, a filha de um alemão, Samuel Spoelmann, cujo pai emigrara para a América, e lá fizera uma fortuna colossal. Spoelmann decide deixar a América e instalar-se no Grão-Ducado, pois as águas termais ali existentes ajudam à sua saúde. Imma é uma rapariga moderna, impetuosa, frequenta a universidade e interessa-se por coisas extraordinárias como a álgebra e outros ramos da matemática. Um longo processo de aproximação vai conduzir ao casamento do príncipe defeituoso e da bela, mas estranha, Imma Spoelmann. Thomas Mann não pinta uma paixão entre ambos, mas um amor que se desenvolve de forma apolínea, digamos assim. Não é um desvario dionisíaco provocado por Eros que os une, mas uma aproximação de ideais, na qual Nicolau Henrique se vê confrontado, para conquistar Imma, em dar conteúdo à sua pessoa, tornar-se um sujeito de si mesmo e até da sua função, dando-lhe um conteúdo pessoal e não meramente protocolar. Isto é, transformando-se num burguês, preocupado com as finanças do Grão-Ducado.

O casamento é visto pelo povo, pela corte e pelos os homens que possuíam o leme político como essencial para a subsistência do Grão-Ducado, à beira da bancarrota, devido a uma enorme dívida externa e sem uma economia capaz de a suportar. A transformação de Imma em princesa é apenas um pró-forma que dá colorido à transformação de um regime aristocrático decadente num regime burguês, assente na gestão rigorosa dos bens e fundado no poder do capital. O que Thomas Mann mostra no romance é a derrota da aristocracia, não porque tenha sido varrida do poder e da coroa por uma revolução violenta como a francesa, mas porque os próprios aristocratas se transformam em burgueses disciplinados. O vazio de uma função que se tornara meramente protocolar e que constituía a pessoa de Nicolau Henrique é, agora, preenchida pela descoberta da subjectividade, pelo interesse pela realidade material do mundo e por um amor apolíneo, onde as aventuras de Eros, movidas por Diónisos, estarão, por certo, rigorosamente vigiadas pelo duro e penetrante olhar de Apolo, com os seus imperativos de submissão à racionalidade.

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Nocturnos 108

George Braque, A Noite, 1951

A noite é um velho viajante que, carregado com o fardo da vida, se perde no caminho, vagueando por ruas e avenidas, saltando de praça em praça, procurando os cais onde terá aportado e que serão, segundo uma esperança nunca confirmada, os lugares de onde partirá para reencontrar o fio que o conduza, entre as sombras da cegueira, ao destino que o espera.

sábado, 25 de novembro de 2023

Leggio VI

Oscar Bluemner, Paterson Centre (Expression of a Silktown), 1914-15

Tudo tão distante se tornou, as casas, as silhuetas,

as ruas espinhadas de gente. Roncos de máquinas,

motorizados e frementes, tudo tão distante se tornou,

as praças abertas para o rio, o vento, o vento as traz

consigo, ao bater nos telhados. Ressoa um cântico,

horas que ao silvar longe se ouvem presas na solidão.

 

Em cadência imprecisa deixo os olhos vogar entre

ruas e avenidas e espero a súbita sombra que a luz,

ao morrer, em canto incerto faz cair. Abandonados,

entre quintais vis e esfacelados, muros cobrem-se

de ervas, memória da terra a germinar na cidade.

No céu, um tremor de nuvens, astros, o sol a cintilar.

 

As vozes sumidas entram pelas casas e escondem

o nada que as inflama. Tão cansadas, falam como se

a um deus orassem e nada dizem, e nada ouvem, vozes,

ecos, o tempo as esqueceu, debruadas de silêncio,

gradadas ervas sujeitas ao mar. Quando subo, de gente

mirram as colinas, moinhos à espreita de um vendaval.

 

A distância aumenta, se as ruas em desvario corro,

e há homens e mulheres afadigados entre hotéis

vazios e jardins fanados, castanheiros de úlceras

cobertos. Nas estradas, pombos, gatos alados, as

vísceras às varejeiras oferecem. Noite, tudo se cerra.

Se alguém fala, é na cidade a voz vinda com o vento.


(2006)
 

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Julien Gracq, Au Château d’Argol

 

Publicado em 1938, Le Château d’Argol é o primeiro romance de Julien Gracq, pseudónimo literário de Louis Poirier (1910-2007). André Breton considerou a obra como o ponto culminante do surrealismo. Independentemente desta relação com o surrealismo, está-se perante o início de um percurso literário – nomeadamente, no âmbito do romance – de grande qualidade, apesar de o autor estar longe de ser popular. Como o título indica, o acção romanesca passa-se num castelo/palácio da aldeia bretã de Argol, uma povoação realmente existente, incrustada na floresta armórica, a qual, no romance, se funde com o próprio château. Contudo, em Argol não há ou houve qualquer château. É no cruzamento entre a realidade da povoação e a irrealidade do espaço narrativo que o autor produz a mitificação do espaço, retirando-o da dimensão narrativa da existência quotidiana e, de alguma forma, operando uma espécie de consagração, embora de uma sacralidade tenebrosa, na qual emergem as forças obscuras do inconsciente como grandes agentes da acção.

O château e a floresta envolvente, pelo processo de mitificação que está na sua origem, tornam-se o espaço de uma utopia, não no sentido que podemos encontrar naquelas desenhadas por Platão na República ou por Thomas More na Utopia, onde se encontra uma idealização das relações humanas, mas num sentido denso em que se combina a ideia de um espaço estranhamente configurado, como se fora uma sugestão de não espacialidade, pelo menos daquela espacialidade onde habitamos, e a percepção de que ali, naquele lugar que é um nenhures, um não lugar, está suspensa a trivialidade com que os seres humanos gerem as suas relações, e as relações que ali decorrem obedecem a forças que estão adormecidas ou domesticadas na vida quotidiana, a qual só é possível pelo adormecimento e pela domesticação dessas forças. A esta utopia corresponde ainda uma ucronia assente em duas linhas de força. Por um lado, não é claro qual é o tempo histórico da narrativa, pois nela se combinam elementos modernos, como o automóvel ou a referência a Hegel, com intencionalidades românticas e mesmo pré-modernas. Por outro, episódios em que a linearidade temporal é subvertida, onde elementos do passado são, na realidade, elementos de um tempo a vir.

Albert, um jovem aristocrata de grande riqueza, comprou o château possuído pelo demónio do conhecimento. Aos quinze anos, via-se florir nele todos os dons do espírito e da beleza, mas ele desviou-se, com uma singular firmeza, dos sucessos que, em Paris, todos lhe prometiam. O demónio do conhecimento tinha-se já tornado senhor de todas as forças deste espírito. Visitou as universidades da Europa, de preferência as mais antigas, aquelas onde persistia ainda a recordação de um saber filosófico dos mestres da Idade Média raramente ultrapassado pelos modernos. Ao comprar o estranho château na afastada Bretanha, Albert procurava um lugar onde pudesse satisfazer a sua paixão filosófica num ambiente que se aproximaria, de algum modo, daquele que teria sido o dos velhos mestres medievais. O château em Argol era um sítio de meditação e, ao mesmo tempo, de viagem no tempo ao encontro de um passado que, na verdade, não tinha sido, aos olhos do jovem aristocrata, superado, como se a vontade do indivíduo pudesse superar a dialéctica do espírito no seu processo histórico, tal como era compreendida por Hegel.

A certo momento chega ao château Herminien, o melhor amigo de Albert e como ele alguém espiritualmente dotado, acompanhado por Heide, uma belíssima mulher. A partir deste momento suspende-se a vida banal e forças mais poderosas e inconscientes entram em acção, nesse lugar onde o tempo e o espaço tinham sofrido uma subversão. O que vai emergir, quando a vida trivial, com as suas regras sociais e jurídicas, é suspensa não é um hino sublime à beleza, mas a força da violência, de uma violência que vem do fundo do ser e se apodera dele. Essa violência anuncia-se em verdadeiras justas medievais entre os dois amigos, não em combates de cavalaria, mas de confrontos retóricos em torno do saber. Podemos pensar a retórica como uma primeira forma de domesticação da impetuosidade do logos, mas falhamos o essencial. A retórica apenas torna mais sofisticado o discurso enquanto arma de agressão e de luta pela dominação do outro. A tentação de confronto existente desde sempre entre os dois amigos é agora intensificada pela disputa de Heide, pelo triângulo erótico nascido da imediata atracção de Heide por Albert.

O destino das personagens vai ser marcado pelo desencadear da violência, que passa do conflito retórico para a violência física e a morte. A narrativa é construída sob a influência do romance gótico e das obras de Edgar Allan Poe, onde o doseamento do suspense está feito para criar um clima de tensão que antecede o desenlace. A culminação do surrealismo, como adjectivou Breton o romance de Gracq, é, contudo, equívoca, pois o que se manifesta ali não é uma sobrerrealidade, mas a vitória da infrarrealidade, o sucesso das forças tenebrosas que, aproveitando a combinação da paixão pelo conhecimento com a paixão pela beleza, furaram o cerco apolíneo da razão e abriram o caminho, como sempre acontece, para a destruição e a morte. Escrito em 1937, publicado em 1938, o romance de Gracq parece ser uma premonição e um aviso sobre aquilo que já nessa hora espreitava a Europa e o mundo, como se o tempo do futuro se tivesse antecipado e coagulado simbolicamente numa obra literária.


terça-feira, 21 de novembro de 2023

Simulacros e simulações (57)

Jesús María Cormán, 5,8 Richter Scale, 2001

A energia vinda do fundo da terra, movida pela fúria da novidade, rompe a crosta árida e simula um recomeço do mundo, a possibilidade de rasurar tudo e, numa nova figuração, trazer à luz uma outra realidade mais densa e mais venturosa do que aquela que o tremor do tempo submergiu no mar do abandono ou enterrou na fossa abissal no ínvio esquecimento.

domingo, 19 de novembro de 2023

Comentários (14)

Jakob Alt, The Garden of Laudaya, 1841

 De repente, de tudo o que é verde no parque,
ninguém sabe o quê, alguma coisa foi retirada
Rainer Maria Rilke

É grande o mistério da persistência das coisas, da sua perseverança em continuar na existência, em vencer o tribunal do tempo e adiar a sentença que entrega tudo o que existe ao grande império do não existente. Porém, ainda maior é o enigma da sua entrada na inexistência, na sua rendição à guarda pretoriano do nada. Usam-se expressões como de repente, de súbito para expressar uma perplexidade sobre aquilo que estando na existência dela se ausentou, não se sabendo como nem, muitas vezes, o quê. O que está deixa de estar, como alguém na sala de sua casa, em companhia de outros convivas, pretextando uma súbita dor de cabeça, se retira para o quarto, entregando-se em solidão à sua dor. Talvez tudo o que desaparece do mundo se retire para um lugar onde, solitariamente, convive com a dor de existir e assim abandona a existência.

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Guerras culturais


Gostaria de falar neste artigo do acontecimento que, na semana passada, arrastou a queda do governo. Confesso, todavia, que ainda não percebi o que se passou. Deixo isso de lado e volto-me para uma revista. Tem o nome de Crítica XXI e é dirigida por Rui Ramos e Jaime Nogueira Pinto, dois influentes intelectuais da direita portuguesa. O interessante da revista, de que sou assinante, é ela ser uma revista cultural e inscrever-se num combate político em que a direita está empenhadíssima e a esquerda se comporta como moribunda. O combate cultural. Durante muito tempo, a esquerda foi hegemónica no campo cultural. Essa hegemonia permitia-lhe tornar dominantes um conjunto de valorações simbólicas e morais do mundo, enquanto a direita estava focada na questão da economia, dos negócios e do mercado.

A direita, porém, há uns anos, e não são poucos, começou a preparar um ataque cerrado à hegemonia da esquerda no campo da cultura. Iniciou-o por coisas de baixa cultura, como uma decidida ocupação da comunicação social, de onde a esquerda, outrora hegemónica, foi quase banida, como se pode ver nos comentários nas televisões do tal episódio que eu ainda não compreendi. Ao mesmo tempo, essa direita – aliás, multifacetada – preocupou-se com a ocupação da universidade, em criar nela pólos que disseminem, no campo da cultura, a visão das direitas, que ofereçam interpretações do mundo que, digeridas pela comunicação social, se tornem narrativas que oferecem às pessoas explicações sobre a vida social, lhes dão uma certa orientação sobre o que se pretende que seja a verdade, o bem e o justo. Nada que a esquerda não tenha feito, mas de um modo menos deliberado, fruto de uma resistência à atrofia intelectual imposta pelas antigas ditaduras de direita.

A esquerda, no campo cultural, está em acentuado recuo. Os herdeiros do neo-realismo e do realismo socialista nada têm para propor que interesse as novas gerações, e a orientação que certa esquerda adoptou, virando-se para os problemas de identidade, tem pouca capacidade para criar uma narrativa que consiga dar uma visão do mundo globalmente aceitável, uma orientação na qual as pessoas sintam que ali pode estar a verdade, o bem e a justiça. Hegel terá dito que quando as ideias mudam, a realidade não resiste. Mesmo que a citação seja apócrifa, o que nela se expressa está a ser levado muito a sério pela direita, enquanto a esquerda parece completamente desorientada, oferecendo de bandeja à direita o campo cultural, onde se decide como é que se deve interpretar o mundo, a sociedade e aquilo que pode e deve ser realizado.

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Leggio V

Willem de Kooning, Ashville, 1947

Cresce, em dias de Setembro, um medo

emaranhado nas arribas do céu. As rajadas

abanam prédios e os muros em precário

equilíbrio dissolvem-se. Quando chove, pela cidade

 

rugem deserdados cães e o rio dilata, engrossa,

longe lança suas redes; os homens, ínfimos

peixes, correm rua abaixo, gritam de lama

inundados. Como barcos pela âncora surpresos,

 

carros travam na vertigem da água e em janelas

esconsas abrem-se olhos vítreos,

promessas de luz na polida pedra. As dolentes

 

árvores, em mansidão vegetal, cobrem

de sombras e suspiros as avenidas mármore

e cal. Ao arderem, gelam desmemoriadas.

(2006 )

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Ensaio sobre a luz (109)

Lyonel Feininger, The Village Pond of Gelmerode, 1922

Também a luz se deixa contaminar pelos sonhos da geometria. Desce em ondas e corpúsculos sobre a terra e logo encontra repouso na figura de um triângulo ou na lentidão de um quadrado. Então, abre-se submissa para acolher quem, cansado de viajar entre espessas trevas, encontra nela o caminho da transfiguração.

sábado, 11 de novembro de 2023

Beatitudes (64) Leitura

Anónimo, Agnes, entre 1900-1920

Reclinada sobre o livro, a mulher entra num outro mundo. Atrás de si fica a dura máscara do quotidiano, com o peso da estrita necessidade e os imperativos que a vida distribui ao acaso na hora do nascimento. A memória desloca-se então da casa do passado e, sem passar pelo beco do presente, entra na grande avenida do futuro. Tudo no seu corpo é expectativa e o próprio desejo esquece qualquer objecto real da sua afeição e e abre-se aos objectos imaginados, mais belos, mais dignos de ser amados.

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Nocturnos 107

Hippolyte Flandrin, View of Rome at Night, 1836

As noites citadinas vêm embrulhadas no papel do esquecimento. A luz, ainda há horas tão viva, é agora um enigma nos interstícios da memória. Tudo se veste então na grande loja das sombras e abre caminho numa floresta de sussurros e murmúrios, onde uma voz humana é o canto de uma ave de mau agoiro.

terça-feira, 7 de novembro de 2023

A imaginação no poder


Um dos slogans da revolta estudantil conhecida como Maio de 68 foi A imaginação ao poder! É possível que os estudantes revoltosos daqueles dias estivessem irados com o peso da razão na vida e no governo. A tradição liberal-democrática, que foi emergindo a partir do século XVIII, colocara a razão como fundamento das decisões políticas. A resistência à racionalidade liberal veio tanto da esquerda, com a mitologia da revolução, como da direita, na sua encarnação radical e nacionalista. Nestes projectos políticos, a razão foi destituída de guia político e tornou-se instrumento da imaginação política que se tinha apoderado do poder e punha em prática os mundos imaginários do paraíso social na Terra, à esquerda, ou da supremacia nacional e rácica, à direita. O resultado foi violência, campos de concentração e milhões de mortos.

Com o final da segunda Guerra Mundial e, posteriormente, com a Queda do Muro de Berlim, perante a multiplicação das democracias liberais, parecia que a razão ganhara a partida. Sol de pouca dura. O século XXI tem sido um tempo onde a imaginação está, paulatinamente, a tomar conta do poder. Os resultados são assombrosos. A guerra da Ucrânia é o produto de uma imaginação delirante sobre o destino da Rússia. A guerra na faixa de Gaza é alimentada pelas concepções imaginárias tanto do Hamas como da extrema-direita israelita. Combate-se, na verdade, por um Grande Israel imaginário ou pelo sonho de uma Grande Palestina livre de judeus. Foram vitórias da imaginação os triunfos de Bolsonaro e de Trump, cujas derrotas posteriores não asseguram que algo de semelhante não volte ao poder. As políticas imaginárias, baseadas sempre numa memória histórica fantasiosa, são o fundamento dos projectos políticos da extrema-direita e da direita radical em toda a Europa.

A imaginação no poder significa que os agentes políticos se pautam pelos mitos fundadores da sua cultura ou da sua nação. Tomam estes mitos como descrições da realidade. Com eles seduzem as massas incapazes de uma leitura racional do mundo e da política. Ora, esses mitos são factores de identificação e de exclusão do outro. O resultado é invariavelmente a violência e a morte. A razão é uma faculdade frágil e exigente. A sensatez, um dos seus apanágios, é um antídoto pouco eficaz perante a imaginação alucinada e a memória delirante de elites políticas incendiárias, apostadas no desencadear de paixões na massa desorientada pela complexidade do mundo. Estamos a descobrir, ou a redescobrir, o que é a imaginação no poder. Ainda no Maio de 68 se dizia: Sejam realistas, exijam o impossível! Eis que o impossível nos está a bater à porta.

domingo, 5 de novembro de 2023

Leggio IV

Bernardo Marques, Tejo (aqui)
 

Ruídos de sirenes pela noite de transeuntes

ao acaso das ruas rendidos. Em estreitas ruelas,

flamejam avaras pequenas luzes e se pelo chão

imundos os destroços caem, é nas mãos

 

vazias que brancos e lívidos se trazem. Esqueceram

na senda da noite o nome que lhe deram e

sentados na calçada ao anjo pedem

pela manhã a memória venha, mesmo se branca,

 

mesmo se fria e gélida. Garrafas partidas,

estilhaçados copos, tudo a noite cobre,

e os corpos destilam abraçados; gavinhas

 

frágeis, logo a aurora as desfaz. No frio da cidade

o ar recobre-se de névoas e o Tejo embarca

pelo mar ali no lugar onde tudo se refaz.


(2006)

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

O paradoxo em que vivemos


Em 1992, Francis Fukuyama, ao publicar The End of History and the Last Man, gerou uma enorme controvérsia e o seu argumento sobre o fim da História foi ridicularizado. Todavia, Fukuyama não defendeu que a partir daquela altura, o pós-Queda do Muro de Berlim, deixaria de haver transformações nas sociedades e que o mundo se imobilizaria para eternidade. Sublinhou, apenas, que a democracia liberal é o melhor regime político que é possível imaginar e que, numa perspectiva evolucionista da História, todas as nações, mais tarde ou mais cedo, acabarão por se tornar democracias liberais. Podemos discordar, e haverá boas razões para isso, que possamos interpretar a História de uma forma evolucionista. Porém, será difícil, se não impossível, imaginar um melhor regime político do que a democracia liberal, com a sua preocupação com os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

Poder-se-á perguntar por que o desenrolar da história do mundo, nos últimos quarenta anos, nos parece afastar desse desiderato de ir vendo crescer o número de democracias liberais pelo mundo. Pelo contrário, tem havido, um pouco por todo o lado, regressão e perda de poder de atracção da democracia liberal. Ora, aquilo que reforçou a crença de Fukuyama no triunfo da democracia liberal é também o motivo que está por detrás do seu actual retrocesso. As democracias liberais floresceram no conflito contra os regimes comunistas. Num mundo bipolarizado, com fronteiras quase fixas, as pessoas sentiam-se atraídas pelo mundo aberto dos regimes democráticos. A derrocada do bloco soviético gerou a crença optimista na vitória das democracias.

Não se percebeu, na altura, que a Queda do Muro de Berlim não era apenas o fim do comunismo, mas também o fim de uma ordem internacional nascida no rescaldo da segunda guerra mundial, onde as fronteiras pareciam fixadas para sempre. O fim da rigidez das fronteiras acordou o espírito nacionalista um pouco por todo o lado. Lentamente, a afirmação nacional começou a preencher, no imaginário de muita gente, o lugar da democracia liberal. Em vez de liberdades individuais, passou-se a querer um Estado nacional, um Estado nacional cada vez mais forte, para chegarmos ao momento em que se quer um Estado nacional mais amplo, com a conquista de territórios de outras nações e a redefinição dos mapas. É aqui que estamos, com parte do mundo em chamas. Há em tudo isto um paradoxo. As democracias liberais precisam de Estados-nação para existirem, mas o exacerbamento do nacionalismo corrompe o espírito liberal e destrói a democracia. Como complemento, o nacionalismo ainda tem a guerra para oferecer como prémio.


domingo, 29 de outubro de 2023

O ataque ao indivíduo


O que, no desvario que atravessa o mundo, está a ser posto em causa e corre o perigo de desaparecer? O que está em perigo é a ideia de indivíduo, a crença de que somos seres individuais, entidades distintas e separadas. Isto parece abstracto. Ora, é porque somos indivíduos que temos um conjunto de direitos, liberdades e garantias que visam defender a nossa individualidade, a nossa iniciativa e as nossas crenças, desde que não ponhamos em causa os direitos dos outros.

A ideia de que somos indivíduos é recente, apesar de ter raízes na filosofia grega e no Cristianismo. Vai-se afirmando a partir dos séculos XVII e XVIII. O estatuto de cada um não depende nem da classe social, nem da nação, nem da religião. Depende de ser um indivíduo dotado de razão com capacidade para escolher como deve orientar a sua vida. Quando se fala em direitos humanos fala-se dos direitos dos indivíduos. As grandes forças propulsoras do indivíduo foram o Iluminismo e o Liberalismo. O resultado, no campo político, foi a emergência das democracias liberais, onde cada indivíduo tem um voto e o Estado tem o dever de lhe garantir os direitos e liberdades individuais.

A ideia de indivíduo sempre recebeu contestação. Uns queriam reduzi-lo à casta (clero, nobreza e povo), outros à classe social (burgueses e proletários, e suas derivações), outros à nação (português, espanhol, etc.). Todos estes movimentos (conservadorismo, socialismo e nacionalismo), com diferentes matizes, pretenderam matar – e em muitos casos mataram – o indivíduo, reduzindo-o à comunidade de pertença. Contudo, a defesa da individualidade conseguiu enfrentar, no século XX, as piores derivas do nacionalismo, do socialismo autoritário e do conservadorismo reaccionário. O século XXI, porém, tem sido um tempo em que a ideia de indivíduo está sob violento ataque.

As guerras em curso devem-se ao nacionalismo, à vontade de afirmar os direitos de uma nação, mesmo que isso negue os direitos individuais. As ondas populistas têm, como seu último alvo, a desagregação dos direitos dos indivíduos, visando reduzir estes a membros informes de uma massa nacional. Os fundamentalismos religiosos querem aniquilar a consciência do indivíduo. Mesmo movimentos aparentemente emancipatórios substituem a defesa dos indivíduos pela das identidades grupais, que se distinguem pelo género, pela orientação sexual, pela comunidade étnica, pela religião de pertença, etc. Em todas as convulsões a que assistimos o alvo é aquela descoberta europeia de que somos indivíduos. Indivíduos com direitos, liberdades e garantias. 

domingo, 22 de outubro de 2023

domingo, 15 de outubro de 2023

Nocturnos 106

Jean François Millet, Nocturnal Scene in a Forest, ca. 1855
A noite cobre com o seu véu uma outra noite, a da morte que chega com o veludo das trevas. Trazem-na as mão daqueles que desconhecem a luz solar e possuem no coração o verdete da escuridão e nas mãos a sentença que ninguém proferiu.

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Ensaio sobre a luz (108)

Eugène Carrière, Le Sommeil, 1890
Não é a luz que ilumina o sono, mas é do sono que se ergue uma luz difusa, feita com a matéria das sombras, para iluminar quem dorme e sonha com os grandes dias de sol e mar ou com os perigos que as trevas nocturnas semeiam na casa desavinda dos pesadelos.

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

O inaceitável

Fernando Lemos, Cena animal, 1949 (aqui)
Por que razão é inaceitável a complacência, se não a cumplicidade, com aquilo que o Hamas fez em Israel? A razão é muito simples. É porque aquela acção contra civis desarmados, escolhidos como alvo militar, seguida de todos os horrores que se conhecem, revela uma faceta que os seres humanos trazem dentro de si, manifesta, para falar em linguagem religiosa, o demoníaco que está dentro de cada um. É a esta faceta que desde há muito se tenta domesticar, proibir-lhe a demonstração. É esse o trabalho da civilização. Pôr à distância o tenebroso que há nos homens. Ora, quando este se manifesta como se manifestou em Israel, aqueles que lhe encontram justificação – os fins justificariam os meios – não apenas desvalorizam o horror daquela manifestação de crueldade demoníaca, mantendo a metáfora religiosa, como mostram que, caso um fim o justificasse, o seu espírito estaria disposto a cometer os mesmo actos hediondos, estaria pronto para deixar o que há de pior em si se manifestar-se, fazendo com que a barbárie rompa o verniz civilizacional que nos permite viver uns com os outros, e contribuir para que o terror se torne o Zeitgeist, o espírito dominante do nosso tempo. Por isso, qualquer complacência com o que se passou é absolutamente inaceitável. 

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Leggio III

Hein Semke, Uma vista de Lisboa, 1957 (aqui)

Profícua luz com que a tarde cai.

No ruído entretecido de silêncio, há,

pela cânfora das avenidas,

vultos viandantes, aves bêbadas

poisadas na fímbria das ruas.

O deus, aos corações, dardeja

e sentado pelos bancos vê passar,

na pressa que à noite o dia deu,

raparigas fanadas de seios ligeiros,

flocos de espuma, sangue a arder.

 

Animais pelo Rossio a bramir.

Nas ruas que para o Tejo caem

avisto barcos lêvedos a minguar,

o oceano da terra os atrai.

Do chão os olhos erguem-se,

anseiam no céu o motim fecundo.

Onde os meteoros soçobram,

prendem-se astros incendiados,

luas acesas pela vertigem

na cidade em delíquio caem.

 

A inconstância a tudo toca,

e em teus dedos as paredes de cal

são planícies de cinza e carvão,

ruelas de sombra e sono,

vozes roucas se cantam.

Terríveis nuvens nos céus.

Homens sóbrios marcham,

a cegueira tão cega os alevanta.

Não há navios no cais,

nem cães perdidos na memória.


(2006)

sábado, 7 de outubro de 2023

A sorte e o mérito

Em entrevista ao Público, na semana passada, o realizador Woody Allen diz, a certa altura, “O que me aconteceu não foi por eu ser bom ou por ter qualidade, por vezes foi porque tive sorte. Quando comecei, ninguém queria que eu realizasse (cinema)”. Noutro passo, acrescenta: “Acho que o acaso desempenha um papel extremamente importante na nossa vida, muito maior do que as pessoas gostam de pensar”, e continua “É importante trabalhar, ter disciplina, concentrar-se, e isso ajuda. Mas também é preciso ter sorte para ter sucesso”. Na antiguidade clássica greco-latina, o papel da sorte era reconhecido de tal modo que tanto gregos como romanos lhe atribuíram uma deusa, Tykhe, para os primeiros, Fortuna, para os segundos. Era uma deusa caprichosa e cega. A fortuna era o resultado do acaso.

Esta arbitrariedade que une Woody Allen e os antigos, foi pressentida a partir do início da Idade Média, como irracional. A primeira forma de racionalização é a leitura da sorte não como o fruto do acaso, mas de um plano providencial de Deus para os homens. A inexplicabilidade da sorte ou do azar encontravam uma razão na vontade oculta de Deus. A certa altura do desenvolvimento das sociedades modernas, sob a influência do liberalismo, a sorte e o azar passaram a ter outra forma de racionalização e explicação: o mérito ou a falta dele. É o mérito que explica o facto de uns serem ricos e outros pobres. Uma vida conseguida é vista, por aqueles que triunfaram, como fruto do seu mérito e não da sorte ou de um plano divino. A isto chama-se, no jargão corrente, meritocracia, o poder daqueles que têm mérito.

O filósofo Michael Sandel, na sua análise do efeito corrosivo que a meritocracia tem na sociedade, chama, também ele, a atenção para o papel da sorte. Imagine-se o caso de Cristiano Ronaldo. Talentoso, trabalhador, disciplinado, o protótipo do mérito e não o resultado da sorte. Sandel faria a seguinte pergunta: e se Cristiano Ronaldo tivesse nascido, com todas essas qualidades e talentos, num mundo onde o futebol não fosse apreciado? Percebe-se que a narrativa meritocrática é, no mínimo, exagerada. Mesmo o talento e a força de vontade são mais herdados do que fruto de cada um. Isto não significa que se justifiquem sociedades igualitárias, mas que devemos tentar encontrar soluções que equilibrem as sociedades, evitando criar uma muralha entre aqueles que têm a sorte de ter as qualidades valorizadas num certo momento e os que não têm essa sorte, entre os que parecem ter mérito e os que parecem não o ter.

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Simulacros e simulações (56)

Eugène Leroy, Marine Verte, 1958

Quando olhamos as coisas do mundo, as paisagens que elas, ao conjugarem-se, formam, ainda estamos longe de nos pensar perante aparências às quais falta realidade. Depois, a dúvida instala-se e cresce, até que descobrimos, divididos entre a desconfiança e a incerteza, de que essas paisagens - por vezes, tão cativantes - são simulacros, exercícios de simulação com que o mundo tenta deslumbrar os olhos e prender os corações.

terça-feira, 3 de outubro de 2023

Beatitudes (63) Viagens

John Bergheim, Musik, 1895

A alegria irrompe quando a voz se eleva aos céus acompanhada pela música que se desprende do vigor dos dedos a dançar sobre as teclas. Os amigos silenciam-se e mergulham no segredo que habita o centro de cada canção. Por vezes, sentem a nostalgia do tempo que passou, a dor de uma juventude traída pelo passar das estações. Outras, o coração é tomado por uma súbita esperança e, transportado pela música, descobre-se num outro mundo, onde as estrelas são mais puras e as águas correm com a lentidão das coisas perfeitas. Quando a voz se cala e a música cessa, um relâmpago ilumina o céu e o trovão anuncia o final feliz de uma viagem por terras sem nome.

domingo, 1 de outubro de 2023

O palhaço e o fogo no circo


Num livro de 1968, Introdução ao Cristianismo, Joseph Ratzinger, mais tarde Bento XVI, no início do livro refere, por interposta obra de Harvey Cox, uma parábola do filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard. Um circo foi tomado pelas chamas. O director, temendo que o incêndio se propagasse à aldeia vizinha, mandou o palhaço, já vestido para actuar, avisar os aldeãos do perigo que corriam e pedir-lhes ajuda no combate ao fogo. As pessoas, porém, pensaram que ele estava a representar, usando uma estratégia notável para levar mais gente ao circo. Em vez de se disporem a auxiliar, riam-se, sem que o pobre palhaço conseguisse convencê-las da gravidade da situação. Isto, até que as chamas chegaram à aldeia e já era demasiado tarde para evitar a tragédia. Ratzinger cita Cox opondo-se ao desalento deste relativamente à incapacidade de os teólogos serem escutados pelas pessoas destituídas de fé.

Apesar do optimismo do futuro Papa, não apenas os teólogos fazem, perante os não crentes religiosos, a figura de palhaços, como esta figura se encarnou em muitas áreas da sociedade onde os especialistas não cessam de chamar a atenção para o perigo iminente que rodeia as pessoas. Estas olham para eles como palhaços que estão a representar um papel, talvez sublime, mas que nada tem que ver com a realidade em que se vive. Os exemplos são muitos, mas bastam três. O aquecimento global, as desigualdades sociais e a erosão dos regimes democráticos. Em todas eles existe uma denúncia sistemática dos perigos que se aproximam, enquanto os destinatários das mensagens encolhem os ombros e riem-se, não tanto por admirarem o desempenho dos arautos – dos palhaços, na linguagem de Kierkegaard – mas porque não desejam crer nela, pois isso põe em causa os seus hábitos e o modo como estão instalados na vida.

Resta saber se a falta de fé perante os especialistas laicos que tratam do aquecimento global, das desigualdades sociais e da erosão dos regimes democráticos não é já uma consequência de uma falta de fé na palavra dos teólogos e na existência de Deus. Ao nível social, é plausível pensar que a erosão da fé religiosa – erosão que não nasce de uma atitude crítica de tipo Iluminista, mas de um comodismo egoísta perante as exigências da religião – tenha arrastado a descrença perante a palavra de todos aqueles que anunciam dificuldades e propõem alterações, mais ou menos radicais, ao estilo de vida que se tem ou se deseja vir a ter. Para os aldeãos das redes sociais, todos aqueles que trazem problemas são palhaços, cujas palavras fazem rir, mas não devem ser levadas a sério. Isto enquanto o circo arde e o fogo se propaga para a aldeia.

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

O progresso moral da humanidade (14)

Jan Davidsz. de Heem, Sumptuous Still Life with Fruits, Pie and Goblets, 1651

Uso um browser que quando se abre envia para uma página com notícias, todas elas com títulos construídos para explorar ou a curiosidade mórbida, ou a indignação, ou qualquer outra paixão. O mais repugnante, todavia, são os anúncios em forma de notícia cujo título promete ganhos extraordinários e riqueza fácil. Esta estratégia comercial assenta em dois pressupostos referentes à natureza humana. Em primeiro lugar, que ela se move pura e simplesmente pela avareza, que o objectivo humano é acumulação de riqueza. Em segundo lugar, que esse objectivo dispensa o esforço, não é incompatível com o vício da preguiça, pelo contrário. Que os homens sempre desejaram acumular bens materiais e que a preguiça não é uma invenção actual, isso não representa qualquer novidade. A diferença reside no facto de sempre ter havido a consciência de que se estava perante condutas viciosas, que agora são apresentadas como virtuosas. O progresso moral da modernidade acabou - contra a vontade, por certo, dos seus arautos - na transformação do vício em virtude.

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Leggio II

Carlos Botelho, Entrada da Barra, 1964 (aqui)

Em travessas sujas de solidão

flutuam na ardência do ar

casais de namorados tão enamorados,

tão presos na urdidura de cal,

as mãos nas mãos a tecem.

Nem a luz do amor os ilumina,

nem o fogo do desejo os aquece.

Vivem do Inverno preso no olhar,

caminham entre nuvens

sem o dolo, sem a dádiva de um destino.

 

Às vezes, fogem para o Castelo

e choram o tumulto da dor,

tão aguda lhes dói.

A luz ilumina a poeira das ruas,

e ouve-se a mágoa dos corações

no bater dos sinos ao meio-dia.

Barcos encalhados na areia,

os jacarandás pelas avenidas

espalham sombras e saudades.

 

S. Jorge espera o fogo do dragão,

a morte que lhe deu vida.

Quantos anos tens?

E ela mostra-lhe os dedos e

ele conta-os, conta-os,

pela tarde recoberta de luz,

o Tejo a marulhar ao longe,

as águas espessas,

o coração ainda aberto,

praça desvalida,

sem armas e sem tréguas,

ao repouso da morte entregue.

 

(2006)

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Nocturnos 108

Aert van der Neer, River Landscape with Ships at Moonrise, ca. 1660 – 1670

A noite abre-se para que a Lua derrame o seu sangue luminoso sobre as águas enegrecidas pelos trabalhos do dia e os barcos encontrem o porto que os abrigará das intempéries da escuridão e das trevas da tempestade.

sábado, 23 de setembro de 2023

Os homens e a autonomia das mulheres

O caso de um seleccionador de futebol que beija na boca uma jogadora. O caso de uma jornalista de televisão que é apalpada durante um directo. O caso de um Presidente da República que comenta a indumentária pouco resistente ao frio de uma mulher. Estes casos geraram um enorme rebuliço por tudo o que é sítio, e, como se sabe, actualmente, sítios e lugares são nas redes sociais. O mais interessante neste charivari é que uma parte dos homens – e também algumas mulheres, saliente-se – não percebem o que está a acontecer. A virtude masculina, a essência da virilidade, não estaria nessa capacidade de submeter as mulheres aos seus desejos, aos seus comentários? Agora, os homens já não podem ser homens? Esta questão terá aflorado em não poucas mentes.

Estes comportamentos não são negativos por infringirem a decência ou por estarem em desacordo com a gravitas que um Presidente deve ostentar a cada instante. Eles são negativos e dignos de censura porque atentam contra a autonomia de seres humanos, no caso de mulheres. O que implica a autonomia de um ser humano? Que seja respeitado na sua dignidade, a qual deriva da sua capacidade de escolher os seus fins. O que estes comportamentos põem em causa é a dignidade das mulheres, não porque tenham cariz sexual ou possam ser interpretados como brejeiros, mas porque não resultam de um consentimento daquelas que foram objectos deles. A moral que está em jogo não é a dos bons costumes, mas a moral da liberdade e do direito de cada um fazer as suas escolhas. Seja a escolha por quem se é beijado, apalpado ou como se deve vestir. A imoralidade desse tipo de comportamentos reside no facto de eles infringirem a autonomia de um ser racional.

E a virilidade dos homens, a sua virtude masculina? Vai desaparecer? Não estaremos perante uma ameaça à reprodução da espécie, como poderá defender um sexista? É um facto que uma certa cultura masculina está – e não é de hoje – em apuros. Contudo, a autonomia plena das mulheres é um desafio para a virtude masculina e para o exercício da virilidade. Respeitar a autonomia das mulheres, saber lidar, no plano amoroso e da sexualidade, bem como em todos os outros, com alguém que tem um estatuto igual e não com um ser submetido pela força ou pela tradição, exige mais dos homens, exige mais inteligência e subtileza, mas também tem a possibilidade de tornar as relações entre homens e mulheres, sejam elas quais forem, mais ricas e muito mais interessantes. Respeitar a autonomia das mulheres é um bem não apenas para as mulheres, mas também para os homens, tornando-os não menos homens, mas homens mais sagazes.

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Comentários (13)

Max Beckmann, Ice on the River, 1923

Mil neuf vent vingt-trois : Pourquoi écrire, poète?
Pour confesser les manquements dont nous sommes rendus coupables.
Hermann Broch

Uma confissão - religiosa ou jurídica - seria suficiente para faltas de que fôssemos plenamente culpados, mas só uma confissão poética pode trazer à luz essas falhas de que nos tornámos culpados, embora elas não tenham nascido de uma decisão nossa, não sejam fruto do livre-arbítrio. São falhas constitutivas, dizem respeito ao que somos, e o que somos depende da herança que recebemos. O poético é então o caminho em que nos apropriamos do que em nós é estranho, do mal que nos constitui e que deve ser poeticamente confessado como próprio. Escrever, escrever poesia, será então a longa confissão da falibilidade de cada um, o reconhecimento do peso da sua herança.