Publicado em Itália no ano de 2018, Devorar o Céu é um romance de Paolo Giordano, autor do famoso A Solidão dos Números Primos. A obra inscreve-se no vasto continente de romances de formação. Acompanha, durante 18 anos, o destino de quatro adolescentes até à sua fase de adultos. Contudo, esta transição entre idades é inscrita na exploração de mundos alternativos possíveis, no confronto entre a vida burguesa citadina e a vida no campo, com a sua utopia de contacto e imersão na terra. Trata-se da história de Teresa, de Bern, Tommaso e Nicola. Teresa todos os anos, no Verão, deixa Turim com o pai e vai para a zona da Puglia, onde a avó paterna vive lendo romances policiais. É numa dessas férias que, devido a um incidente, ela conhece os três rapazes da quinta vizinha à da avó. São três irmãos, embora não de sangue, que vivem com Cesare e a mulher, numa espécie de comunidade alternativa, na qual são educados no amor da terra, na devoção religiosa, na qual Cesare cruza, num estranho sincretismo, a Bíblia e crenças na reencarnação. Não frequentam a escola, mas a sua educação alternativa não deixa de lhes fornecer uma cultura com alguma riqueza.
Desde logo, Teresa deixa-se fascinar por este modo de vida alternativo e por um desses rapazes, Bern, aquele que, de alguma forma, busca devorar o céu, isto é, procura o absoluto nas coisas da terra. Sempre que a busca do absoluto se desloca da vida espiritual para as coisas deste mundo, ela transforma-se em radicalismo. A certa altura, o modo de vida alternativo abre a via, na consciência de Bern, para a ecologia e para um activismo radicalizado em nome da defesa da Terra. Depois dos radicalismos políticos dos anos sessenta e setenta, nos quais as novas gerações de então se propunham substituir o mundo burguês por uma utopia comunista, uma nova motivação anti-burguesa nasce dos problemas ecológicos e do definhar do planeta. O romance de Paolo Giordano, contudo, propõe uma linha de leitura da nova radicalização que a distingue da anterior, a qual, na verdade, nunca é tematizada ou sequer mencionada no romance. Os jovens radicais dos anos sessenta e setenta do século passado vieram da Universidade e das boas famílias burguesas, numa espécie de revolta contra o pai. Aqui, a radicalização de Bern é gerada fora do sistema de ensino, numa espécie de madraça de elevada exigência moral, tutelada por um pai que não é o dele, que lhe inculca uma fé no absoluto. Em Bern incarna-se a primeira virtude teologal que o romance põe em movimento. Bern move-se pela fé.
Teresa, por seu turno, encarna a terceira virtude teologal, a do amor. Apaixona-se por Bern e troca a sua vida burguesa, de estudante bem instalada em Turim, pelo culto da terra e dos valores que emanavam daquela comunidade vizinha da sua avó. Enquanto os jovens estudantes dos anos sessenta e setenta, ao radicalizarem-se, pretenderam, através do terror, destruir o sistema de vida burguês, Teresa limita-se, por amor, a deixá-lo de lado. É a única personagem onde, de facto, o amor se manifesta. Outras personagens parecem também serem tocadas por essa virtude. Contudo, o amor é apenas a capa com que um interesse egoísta se manifesta. Mesmo em Bern o amor não é mais do que uma manifestação de uma ânsia desordenada de satisfação daquilo que o atormenta. Por amor, Teresa troca a vida de Turim pela Puglia. Por amor, Teresa troca a casa da avó, que, entretanto, herdara, vendendo-a para poder suportar a utopia de uma vida ligada à terra, na quinta onde os jovens que conhecera viviam e tinham sido educados. O amor manifesta-se na abdicação e na entrega.
As virtudes teologais, porém, são três. À fé e ao amor há que juntar a esperança. Se é possível fazer encarnar a fé em Bern e o amor em Teresa, a esperança é uma espécie de horizonte que percorre a obra. A esperança de Cesare numa educação mais autêntica do que a educação convencional da escolaridade em escolas do ensino público ou privado. A esperança de uma vida na terra em alternativa à vida burguesa das grandes cidades ou mesmo da agricultura industrializada. A esperança no activismo ecológico como meio para salvar o planeta. A esperança é, em qualquer dos casos, a de uma salvação. Estamos no domínio da soteriologia. O romance não fala nas virtudes teologais, claro, nem tão pouco existe qualquer evidência que elas tenham perpassado na mente do autor. Contudo, é difícil que qualquer tipo de obra literária ou de outro tipo de arte fuja aos grandes arquétipos culturais que permeiam o espaço social em que se vive. Por muito que a Europa esteja em fase de descristianização, ainda hoje está submetida à herança do cristianismo, talvez com muito mais força do que aquilo que pode suspeitar. A esperança é então aquilo que anima as personagens romanescas, que anima a fé de Bern ou o amor de Teresa.
A esperança,
contudo, vai-se revelando ao longo do romance como destituída de conteúdo e
tudo aquilo que se espera acaba por não acontecer. Não se está perante um
romance do desespero, mas de um romance em que a esperança é infundada. A
utopia, como é habitual, acaba sempre em tragédia. A fé dinamizadora de Bern,
com a sua potência dada por uma grande ânsia de um absoluto terreno, acabou por
gerar uma falsa esperança, a qual acaba por esvaziar o amor de Teresa,
roubando-lhe o seu objecto, reduzindo-o a uma mera memória. Tudo isto se passa
já num ambiente pós-moderno, num mundo lasso, muito diferente daquele em que
viveram os jovens radicais dos anos sessenta e setenta e que gerou o terror.
Aqui são pequenas tragédias pessoais, com impacto nos mundos privados, mas sem
ressonância social. Uma certa leitura do livro não deixará de chegar à
conclusão de que sempre que se procura um mundo alternativo àquele que nos foi
dado para viver, descobre-se que se vive no melhor dos mundos possíveis e que
os mundos alternativos, como fruto de uma hybris que não deixará de ser
castigada, são sempre inabitáveis.
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