segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Natália Correia, A Madona

 

Publicado em 1968, A Madona é um romance da escritora açoriana Natália Correia. O tempo da narrativa apresenta-se cindido, dependendo dos espaços da acção, ora uma aldeia arcaica de Portugal, Briandos, onde o tempo pertencia, na verdade, a uma era já desaparecida da Europa, ora Paris, e também Londres, o apogeu da contemporaneidade. A obra é cruzada por diversas tensões que lhe conferem densidade e permitem diversas dialécticas que compõem a sua complexa dimensão semântica. A primeira tensão é entre o arcaico e o contemporâneo, onde se inscreve a oposição entre um Portugal rural e o mundo cosmopolita representado pelas grandes capitais europeias. Uma segunda tensão é a que opõe senhores e servos. A terceira liga-se à dialéctica entre norma e desvio. A quarta tem o seu núcleo dinâmico na relação entre o feminino e o masculino. Todas estas tensões têm como pano de fundo um mundo em escombros. Os escombros das relações quase feudais ainda existentes em Portugal e os escombros de uma certa ordem burguesa e puritana que se desenhava na Europa.

Branca, a protagonista e narradora, pertence a uma família da aristocracia rural, num mundo onde a relação entre senhores e servos surge ainda intocada em pleno século XX. Um mundo que mergulha as suas raízes num passado longínquo, onde ecoam os cultos báquicos e a tragédia grega, onde a superstição regula a vida dos aldeões, numa relação primitiva com as forças da terra e do sangue. Em contraposição estão os ambientes intelectuais de Paris e de Londres, num mundo em efervescência. Se em Briandos a vida se funda no preconceito, na contemporaneidade de Paris ou de Londres vive-se em oposição ao preconceito, numa afirmação do Iluminismo, que acaba, na verdade, por ser pouco luminosa. Branca une esses dois mundos, parte de um e procura integrar-se no outro. Num, logo no início do romance, o coro das carpideiras coreografa a dor, para que o ritual ancestral se cumpra, no outro novos rituais, como despir-se perante estranhos, ainda que numa festa privada, faz parte da destruição dos preconceitos.

De algum modo, o Portugal representado naquela aldeia chega até aos anos setenta. Estruturas arcaicas estabelecem fronteiras rígidas entre as classes sociais, as quais parecem, na verdade, mais castas ou estamentos do que classes. Essas fronteiras, porém, limitam-se à posição social, ao ordenamento do elemento humano na comunidade. Os senhores nascem senhores e os servos, servos. O pai de Branca, contudo, tem o poder, ancestral, de não confinar a sua sexualidade à mulher e ao meio a que pertence. A dominação exerce-se também na busca dos prazeres do sexo. A sua morte nos braços da Carriça, a prostituta da aldeia, sublinha com ironia esse exercício de contaminação de castas introduzido pela sexualidade. O surpreendente no romance é que a herdeira, Branca, acaba por reconhecer também ter direito de desfrutar do corpo de um servo, se isso lhe der prazer, num claro exercício de dominação.

Branca representa assim um duplo desvio da norma tradicional. Após a morte do pai, sai de Briandos para Paris, apoiada pela mãe que não quer que a filha tenha a mesma vida que ela, presa no seu papel de mulher, desprezada pelo marido, trocada constantemente pelas diversas amantes que ele vai encontrando nos seus domínios, até morrer na cama da mais desprezível mulher da aldeia. A ida para França representa uma libertação do papel tradicional da mulher, libertação assente num desvio à norma reguladora do destino das mulheres, independentemente da classe social de origem. Mergulha numa cultura onde o desvio se vai tornando a norma, onde a visão tradicional do catolicismo desapareceu e o prazer parece ser a regra. Esta emancipação do papel tradicional vai permitir-lhe, num momento de cansaço e desilusão do mundo moderno, retornar ao ponto de partida e seduzir um aldeão, uma encarnação, na imaginação de Branca, do Adão original e usá-lo como instrumento do seu prazer e do seu exercício de dominação. O desvio assenta aqui na inversão de papéis. A dominação masculina pela sexualidade é agora substituída pela dominação feminina através da mesma sexualidade.

As figuras masculinas são, por norma fracas, perante a força de Branca. Tanto Miguel como Manuel são dependentes dela. Miguel, um português candidato a escritor, é aquele que inicia a jovem e virginal vinda de Portugal na vida sexual, aquele que lhe abre o caminho para combater os preconceitos, mas, na verdade, não apenas é um impotente enquanto escritor, como fica dependente de Branca tanto do ponto de vista financeiro como do amoroso. Por detrás da retórica do combate ao preconceito, habitava-o o mais comum dos sentimentos de qualquer amante, o ciúme. Manuel, o viril aldeão imaginado como uma força genesíaca vinda do Éden, confunde o seu papel na vida de Branca. Ele não é para ela mais do que a Carriça fora para o pai de Branca. Alguém de que ela dispunha ao seu bel-prazer, sem que as ilusões afectivas que nasceram no coração dele tivessem qualquer impacto em Branca. Uma coisificação do macho, um exercício de dominação de um poder ancestral.

O romance tem sido lido como uma obra de emancipação da mulher, um grito de revolta feminista na atmosfera de sacristia do Portugal dos anos sessenta, uma afirmação da natureza tumultuosa do feminino, da incompatibilidade entre esse feminino e a regra e ordem trazidas pelo poder patriarcal. Ora, uma outra leitura parece possível, e, na verdade, mais plausível. Branca reproduz em mulher a dominação aristocrática do pai. É uma afirmação do poder da casta superior sobre as castas inferiores, mesmo que as estas sejam concedidos prazeres e ilusões. Esses prazeres e essas ilusões têm consequências funestas. Para além da imaginação, onde se inclui a própria imaginação de Branca, está uma realidade implacável, que, chegada a hora, desfaz quimeras e fantasias, e brilha acolitada pela morte. As vozes esganiçadas das carpideiras vibram lívidas nas agulhas que a penedia levanta. Arrepiam as cristas das vagas deste oceano de pedra. Descem de socalco em socalco. Vão lamber o gelo do rio que a geada glaciou e a taça do silêncio sepulcral da montanha enche-se do vinho da tua morte. Assim começa o romance, nesta estreita aliança entre uma realidade dura, sólida, a própria água gelou, e a morte. Toda a obra é explicação desta aliança e uma afirmação de um poder ancestral, que se manifesta agora no feminino. A sensação com que se fica é que os poderes ancestrais derrotaram as fantasias da contemporaneidade.

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