quinta-feira, 29 de julho de 2021

A Garrafa Vazia 66

Salvador Dali,  Esa muerte fuera de la cabeza-Paul Eluard, 1933
Disputam o cadáver caído
para partilha
do cheiro ácido da morte.

Disputam a carne podre
para colírio
do veneno que os anima.

Disputam a memória ferida
para nadar
na água do ressentimento.

Julho de 2021

segunda-feira, 26 de julho de 2021

O progresso moral da humanidade (3)

Margaret Bourke-White, Shopping centre of Cologne after bombardment, 1945

Olha-se para a fotografia da cidade de Colónia após bombardeamento aliado e fica-se perplexo. Não pela visão do resultado, tão pouco pela eleição de uma estratégia militar que se consumou naquilo que se vê e no que não se vê. A perplexidade nasce do facto de a humanidade parece não ter aprendido nada. Mal a memória dos que viveram o desastre começa a desaparecer, logo as forças infernais - é esse o seu nome - que o geraram e o alimentaram se infiltram nos povos e, sem grande resistência, trabalham-nos, ansiosas para que mais uma vez hecatombes e holocaustos tenham lugar. Thanatos nunca desiste.

sábado, 24 de julho de 2021

Ensaio sobre a luz (91)

Andreas Feininger, Silhouette of the Statue of Liberty lit only by her torch, 1943
A noite escura de onde brota a luz, o denso silêncio de onde nasce a palavra, a pedra dura de onde o espírito espreita, a estrita necessidade de onde se ascende à liberdade, o nada de onde provém tudo o que é.

quarta-feira, 21 de julho de 2021

Simulacros e simulações (26)

Gjon Mili, Stroboscopic image of the hands of Russian conductor, Efraín Kurtz, 1945
A mão simula multiplicar-se para que cada músico receba a orientação que lhe cabe, saiba com precisão o singular pensamento que o maestro lhe destina e, desse modo, envolta na pluralidade dos pensamentos e dos gestos, a orquestra não se perca no caminho em direcção ao sentimento do público.

domingo, 18 de julho de 2021

Justiça, Educação, Pandemia e Claudio Magris


Justiça. O sistema judicial começou, há tempos, a incomodar pessoas que, por um motivo ou outro, tinham poder no país. Do ponto de vista da defesa do regime democrático, as coisas são sempre complexas. Se não há processos, então a democracia é conivente. Se há processos, então o regime está corrupto. A corrupção não é um problema de regime, mas da natureza humana, embora a democracia seja o regime mais eficaz no combate a esse tipo de comportamentos. As ditaduras fingem-se impolutas, enquanto escondem, através da censura e da repressão, o flagelo, o qual é, por norma, uma arma utilizada pelos ditadores, corrompendo as elites, para consolidarem o seu poder.

Educação. Desde que retornou ao governo, o Partido Socialista está, sem que faça alarde do caso, a fazer uma autêntica revolução educativa. Age sorrateiramente, publica os decretos e despachos fundamentais quando o ano lectivo está para terminar. Agora foi uma reforma compulsiva dos programas do ensino básico e secundário, que ficaram reduzidos às Aprendizagens Essenciais (que eram o currículo mínimo obrigatório) e a um documento estapafúrdio com o título de Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, uma colecção de banalidades apresentadas como salvação educativa da pátria. Quando o PS deixar o governo, o ensino público estará reduzido à pura nulidade. Com o assentimento da outra esquerda e a conivência da direita.

Pandemia. Não apenas em Portugal, mas também por cá, governados e governantes agem como se o problema estivesse resolvido. Enquanto isso, as novas variantes continuam a emergir, sempre mais contagiosas e letais, os internamentos crescem, as unidades de cuidados intensivos vão ficando ocupadas e as mortes, ainda que a um ritmo bem mais baixo, não param de suceder. Está tudo cansado da disciplina que o combate à pandemia obriga. Ela exige esforço, sacrifício, adiamento de prazeres, sentido de comunidade, tudo virtudes que não geram, na maioria das pessoas, mais que um esgar de desprezo.

Claudio Magris. Uma sugestão de leitura para férias. Estou a ler o livro, publicado em Portugal pela Quetzal, A História Não Acabou, de Claudio Magris. É composto, na sua maioria, por artigos que o escritor italiano publicou no Corriere della Sera, nos primeiros anos deste novo milénio. São muito bem escritos, têm uma profundidade que não se encontra em Portugal e tocam em pontos essenciais da nossa vida comum. Fá-lo sempre com uma justeza e um equilíbrio assinaláveis, sabendo destrinçar o essencial do acidental. Lê-se com facilidade e com prazer. Apesar de situado no tempo, não está ultrapassado.

quinta-feira, 15 de julho de 2021

A Garrafa Vazia 65

André Kertész, Old Gentleman, Paris, 1926
Troco as sílabas e das vogais
faço consoantes.

Troco as horas e na aurora
invento um pôr-do-sol.

Troco a roupa e ao dia
bebo-lhe a noite.

Troco a verdade e de mim
exibo o que não sou.

Julho de 2021
 

segunda-feira, 12 de julho de 2021

A persistência da memória (4)

August Sander, Circus Artists, 1930

Há a memória do mundo e há a memória do indivíduo. Não sei que memórias o mundo reteve do circo, das suas actividades e trupes, pois a minha memória sempre se sobrepôs àquela que poderia descobrir nos outros. O circo sempre desencadeou em mim uma profunda tristeza e um estado de comiseração inexplicável. É possível que também aí as pessoas sejam felizes, tal como todas as outras noutros lugares, mas nunca as consegui imaginar assim. A única memória que tenho do circo é essa tristeza que gera em mim uma compaixão que ninguém solicitou.

sábado, 10 de julho de 2021

A ilusão da escola neutra

Walter Sanders, Crinolines Wilmington High School, not dated

António Barreto (AB), em artigo no Público (ver aqui), protesta contra aqueles que não querem uma escola neutra – ideologicamente neutra – e que defendem uma escola programática, embora os programas existentes para a escola sejam tantos quanto as ideologias existentes na sociedade. É um facto que existe uma contínua tentativa de colonizar a escola com concepções sobre a moral e a política. Porque é que isto acontece? Há uma explicação óbvia: na escola estão as novas gerações, é fácil contactá-las e educá-las naquilo que aqueles que possuem o poder curricular julgam ser virtuoso moral e politicamente. Há, no entanto, uma outra explicação.

AB escreve que é uma das mais antigas e perenes ilusões a ideia de que a escola tem o poder de formar as pessoas e transformar o mundo. Pelo que seria indispensável formar os jovens de hoje para serem os homens de amanhã. É verdade, mas também é verdade que a escola neutra que AB parece defender não é menos ilusória. A escola não é nem pode ser uma instituição neutra pelo simples facto de a sua existência implicar já uma quebra da neutralidade. Instituir a escola é tomar partido perante a questão de saber se as pessoas devem ser instruídas ou não.  Desde a raiz que a escola não é neutra. Mais, mesmo com um currículo que não contivesse os devaneios ideológicos mais conflituantes, a escola não seria neutra. Dar importância às humanidades ou ensinar Matemática, Física, Química e Ciências da Natureza nada tem de neutro. É uma opção ideológica que é feita por aqueles que defendem a importância das ciências e das humanidades contra aqueles que julgam que tudo isso seria dispensável.

Não há escola não programática, até porque toda ela está estruturada em programas que formam um currículo, o qual não é, de modo nenhum, neutro. Resulta de escolhas ideológicas muito claras. A argumentação de AB pode ser boa para fazer campanha política, mas é inútil para enfrentar o problema da limitação do que deve ser ensinável na escola, nomeadamente, na escola pública. Neste momento, o currículo depende dos humores das maiorias que ocupam o poder, que impõem a sua visão ideológica enquanto governam. Se se assumir que não é possível uma escola neutra, pode-se abrir caminho para uma forma de instituir o currículo nacional de modo menos problemático, através da negociação daquilo que deve fazer parte da instrução das novas gerações. Como poderia isso ser feito? Por exemplo, através de maiorias qualificadas, tal como acontece com as alterações da Constituição. Isso não evitaria a escola programática, mas fundá-la-ia num consenso alargado, o que evitaria muitos dos devaneios que caem sobre as escolas.

 

quinta-feira, 8 de julho de 2021

Nocturnos 64

Yale Joel, Night club dancer performing a bird cage scene. New York, 1958
Estranha a noite que transforma uma mulher num pássaro para ser exibido numa gaiola. Mais estranho e mais negro, porém, é o espírito de quem para se sentir vivo necessita de comprar o joio de tal metamorfose.

terça-feira, 6 de julho de 2021

De mão estendida


A comissária europeia Elisa Ferreira, em entrevista à Antena 1, afirmou que “neste momento é penoso ver que Portugal, com estes anos todos de apoio, ainda está entre os países atrasados”. Apesar da imprensa ter dado algum destaque às declarações da antiga ministra socialista, a mensagem tem os ingredientes suficientes para que muita gente a queira fazer esquecer. O que ela disse, traduzido numa linguagem mais ao gosto popular, é que chega de se viver à custa dos outros.  Na verdade, os fundos de coesão que Portugal tem recebido não nasceram de geração espontânea. São o fruto do trabalho de muitos europeus, dos seus impostos e do seu talento. Se se comparar o país antes e depois da adesão à União Europeia, ele é completamente diferente. Os fundos comunitários permitiram que Portugal não seja hoje uma espécie de Albânia dos tempos do socialismo real. A questão, porém, é que continuamos pouco competitivos e habituámo-nos a viver dos quadros comunitários.

Existem múltiplas razões para isso. A pouca formação dos portugueses, tantos dos trabalhadores como dos empresários, uma economia pouco adaptada à competição global ou a necessidade de uma carga fiscal forte para compensar a existência de salários muito baixos e de fraca tributação são razões efectivas para o atraso. Contudo, essas explicações acabam por ter um papel de ocultação do maior obstáculo, e este é de raiz cultural. Essa cultura combina traços muito diferentes, os quais formam uma rede que acaba por tolher a saída de Portugal dos últimos lugares da União Europeia. Salientem-se dois desses traços.

Uma parte substancial da população, educada para isso durante séculos, resignou-se a uma vida estreita e pobre. Fica grata se sobreviver, se não tiver de passar fome. A resignação significa falta de expectativas e de um horizonte largo em que os portugueses possam desenvolver as suas potencialidades e expandir as suas ambições. Por norma, os que não se resignam acabam por emigrar. Um segundo traço diz respeito à falta de rigor e de exigência – isto é, de brio – naquilo que se faz. O problema existe na sociedade e é infundido nas novas gerações através das políticas de educação pública. A ideia de ir mais longe, de superação de obstáculos, de rigor no trabalho não está presente em parte significativa dos portugueses. Enquanto aceitarmos a cultura da resignação e da pouca exigência, continuaremos de mão estendida na Europa e a sobreviver, resignadamente, como um dos seus países mais atrasados.

domingo, 4 de julho de 2021

A Garrafa Vazia 64

Paolo Ricci, Autoritratto, 1929
O fel acumulado da virtude
abre-se, é um nó
corredio à volta do pescoço.

Se me mexo, o corpo
balança
e o ar falta-me na garganta.

Se me detenho, a alma
ofusca-se
e a razão perde o norte.

Ó virtude viciosa, em ti
dissipo a velha
arte da respiração.

Julho de 2021

sexta-feira, 2 de julho de 2021

Estarolices, iliberalismo e refúgio da canalha


A mãe severa e o filho estarola. A senhora Merkel não gostou do modo leviano como Portugal abriu o país às gentes vindas do seu mais antigo aliado. Não achou boa ideia que os ingleses adeptos da bola andassem por aí e também não deve ter ficado bem impressionada com a abertura aos turistas da mesma nacionalidade. Educada no rigor alemão, viu um perigo para a Europa a abertura dos braços a quem vem de Inglaterra, lugar onde as novas variantes do coronavírus proliferam. Admoestou em público Portugal. O governo fez-se desentendido. A Alemanha fechou-nos as portas, uma medida pedagógica para ajudar à inteligência governamental. Parece que António Costa acabou por perceber. Irritante, porém, é Portugal colocar-se nesta posição. Deixar que uma mãe severa, mas preocupada, ponha em ordem um filho estarola.

O iliberalismo na Europa. As decisões do governo húngaro – e o apoio dado por governantes polacos – sobre os direitos dos indivíduos pertencentes à comunidade LGBTI é um rude golpe no espírito liberal, marcado pela aceitação do direito de cada um a não ser discriminado em função da orientação sexual. As opções políticas dos governos da Hungria e da Polónia há muito que contrariam as regras europeias e são uma clara manifestação do espírito iliberal. O que está em jogo não é apenas os direitos LGBTI, mas a preservação de um espaço de liberdade onde cada um pode, desde que não ponha em causa direitos de terceiros, gerir a vida como bem entender.

Mais estarolices à portuguesa. As duas primeiras figuras do Estado – o Presidente da República e o Presidente da Assembleia da República – acharam por bem aliviar a tensão perante a pandemia. Marcelo Rebelo de Sousa lembrou-se de dizer que com ele não voltará a haver estado de emergência, como se a situação pandémica estivesse controlada e ele fosse o deus que determina o comportamento do vírus. Ferro Rodrigues, excitado por um empate, apelou aos portugueses para que fossem em massa para Sevilha ver Portugal (perder, sabemos agora), como se o vírus não atacasse os adeptos do futebol. Portugal é um país cansativo. 

O refúgio da canalha. O dr. Samuel Johnson é conhecido entre outras coisas pelo dito “o patriotismo é o último refúgio do canalha”. Até à derrota com a Bélgica, Portugal foi um refúgio para um patriotismo bacoco, alimentado por uma comunicação social atoleimada e infantil. O patriotismo pode nem ser o último refúgio do canalha, entendido este como pessoa desprezível, mas em Portugal é mesmo o último refúgio da canalha, isto é, de uma população infantilizada e fascinada pelos saltos e ressaltos de uma bola.