quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Sándor Márai, As Velas Ardem até ao Fim



As velas ardem até ao fim, romance publicado em 1942 pelo escritor húngaro Sándor Márai, parece uma reflexão sobre a questão colocada por Aristóteles sobre a amizade entre desiguais. Há, subjacente ao pensamento de Aristóteles, a questão da reciprocidade. Para que uma amizade possa subsistir, na sua verdade, é necessária a reciprocidade e esta só pode existir entre iguais.

O romance de Márai é uma longa reflexão sobre a amizade e a sua impossibilidade na desigualdade. O livro é um exercício de rememoração da relação entre Henrik, rico aristocrata e general, e Konrád, proveniente de uma família polaca decadente. A amizade entre ambos começa no início da frequência do colégio militar, por volta dos dez anos, e prolonga-se por mais 22 anos, quando Konrád abandona o exército e, de um dia para o outro, desaparece, instalando-se no Oriente e vagueando pelo mundo.

Passados quarenta e um anos, Konrád regressa ao castelo do amigo para um longo jantar. Um quase monólogo de Henrik apenas entrecortado, aqui e ali, por perguntas ou frases misteriosas do amigo. O monólogo é, em primeiro lugar, a descrição – ou um libelo acusatório – da traição de Konrád à amizade entre ambos. No dia anterior ao desaparecimento de Konrád, este terá sentido um desejo intenso de assassinar o amigo. Além disso,  manteve um caso amoroso com Krisztina, a mulher do General. Konrad nunca desmente as acusações, mas também nunca as confirma, como se tudo aquilo, passado tantos anos, não fizesse já sentido.

A desigualdade entre os amigos – aquilo que supostamente conduziu a traição de Konrád, e esta é mais o seu desaparecimento do que o desejo do homicídio ou o caso amoroso – reside não no destino das duas famílias de origem (uma nobre e pujante e a outra decaída), mas no facto de responderem a ethos diferentes. Henrik é um militar, na linha da velha aristocracia do império austro-húngaro. Konrád, por seu lado, não tem espírito de militar, é meditabundo, com propensão para a música e, ainda por cima, vagamente aparentado com Chopin. A desigualdade dos amigos nasce no ethos  que os anima e dá forma ao carácter, como se entre o dever e a ordem militares e a criação artística, com um princípio de anarquia subjacente, existisse uma incompatibilidade estrutural.

Contudo, deve-se recolocar o romance na sua época. Publicado em 1942, o monólogo rememorativo em que assenta a acção dramática mostra que essa desigualdade pertence a um mundo que já terminou. O confronto entre dois velhos não passa de cinzas de um mundo que ardeu até ao fim na Guerra de 1914-1918. Em 1942, era tempo de outra guerra, mas a única acção possível para homens de mais de 70 anos é a reminiscência ou o silêncio, a constatação da inutilidade de tudo, mesmo do rancor causado por uma amizade traída.

Sándor Márai (2001). As Velas Ardem até ao Fim. Alfragide: D. Quixote. Tradução do húngaro de Mária Magdolna Demeter.

20 comentários:

  1. ...e há o pormenor precioso do quadro retirado da parede...e por fim reposto, ou nem isso(!?)...hoje uma coisa caída em desuso com a banalização da imagem.
    Um excelente blog, o seu. No outro dia a propósito de um aparte qualquer pareceu-me ter percebido que a autora de um outro sítio absolutamente extraordinário - "A ronda dos dias" - morava em frente. Pensei, que rua do caraças esta...!
    :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. É verdade, o quadro de Krisztina, após o jantar, poderia voltar ao seu lugar, o que pode ser visto como reconciliação com o passado ou outro sintoma da inutilidade de todas as paixões humanas. Talvez ambas as coisas.

      Muito obrigado pelo que diz do blogue. Também é verdade que vivo na mesma rua da Ivone, de A Ronda dos Dias. É a minha vizinha do prédio em frente (isto não significa que ela viva no outro lado da rua, mas que esta é semicircular e que os prédios onde vivemos estão na parte interna do semicírculo, um em frente do outro).

      Já agora, pensei várias vezes em escrever sobre as suas fotografias - excelentes fotografias. São fotografias metafísicas, apesar de serem absolutamente físicas. Talvez um dia destes, se isso não o incomodar.

      Abraço

      Eliminar
  2. Olá JCM,
    A traição entre amigos, seja ou não por motivos passionais, é das mais dolorosas de entender e, por vezes, é ainda mais grave do que a de familiares, dado que aqueles, nós escolhemos, enquanto estes, limitam-se a "acontecer-nos",

    Depois de décadas de rancor em combustão lenta, fogo brando, apenas a chama se avivou por instantes, mas era tarde o pavio (Krisztina) estava esgotado. já não ardia.
    Abraço

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sim, a traição entre amigos é das coisas moralmente mais repugnantes, pelo menos no universo masculino e segundo os seus códigos de conduta, ou segundo antigos códigos de conduta. Há nisso, uma clara vertente política. Se nem os amigos pessoais são de fiar, como se poderá admitir a fiabilidade da amizade cívica que suporta uma comunidade?

      Abraço

      Eliminar
  3. Não me incomoda nada,bem pelo contrário,o privilégio seria meu.
    :)

    ResponderEliminar
  4. Gostei do livro. O pano de fundo das desigualdades sociais, dos estatutos apenas contextualizam o livro. É a datação do livro. Mas o que sublinhei foi a viagem dentro de si que o general nos faz acompanhar. A reflexão sobre o que é ser humano, a amizade, a paixão e o envelhecimento."Envelhece-se lentamente." Achei sublime a descrição do envelhecimento humano.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. O que é interessante na literatura é pluralidade de leituras possíveis. Nunca diria que a questão da desigualdade entre os amigos seja mero contexto ou que seja a presença daquilo que é datado. Leio-a mesmo como o núcleo central da intriga, pois ela está na base da reciprocidade, centro de todas as verdadeiras amizades. Será possível uma amizade entre desiguais? Parece-me um problema "eterno". Mas admito outras leituras possíveis, como as que faz. As leituras que faço são, reconheço, enviesadas pelas problemáticas que me interessam, embora tente ser fiel à obra que leio.Obrigado pelo comentário.

      Eliminar
  5. Reli hoje, hoje mesmo, este livro. Li-o pela 1ª vez há uns 5 anos e confesso que me esqueci mais ou menos de o ter feito. Hoje li realmente este livro e confesso que fiquei impressionada com uma série de conceitos que não apreendi na altura. Desde logo a importância do silêncio e até da solidão. Quer um quer outro podem ser inspiradores. Depois, a ideia de que a realidade e a verdade não são necessariamente coincidentes, antes pelo contrário. E a seguir, aquela interrogação extraordinária, na pag. 82, que diz mais ou menos isto: a verdadeira amizade é não querer nem esperar nada do outro, de que vale um afecto que espera uma recompensa? E etc.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. É um livro extraordinário. Curiosamente, é aquele que, neste blogue, suscita mais visitas. Quando o li não fazia ideia que Sándor Márai tivesse tantos leitores de língua portuguesa.

      Eliminar
  6. Gostei muito deste livro, mais do que da história que pouco a pouco nos é revelada, por estar tão bem escrito (fez com que andasse à procura de outros livros do Sándor Márai já publicados cá e comprei um em inglês que ainda não li).

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Também para mim foi uma revelação. Aliás, já escrevi outro post sobre A Ilha do mesmo autor e tenho outros livros dele à espera.

      Eliminar
  7. O desaparecimento é a verdadeira traição , a mais importante e definitiva .

    ResponderEliminar
  8. ola, como está ?
    o resumo está de facto fantástico, mas como descreveria a relação de konrad e henrik ?
    o que os aproxima ? o que é que os separa ?
    resto de excelente trabalho

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Muito obrigado.
      O que os separa, tanto quanto me lembro, é o ethos a que cada um responde. Habitam o mundo de formas diferente. O que os aproxima é a memória.

      Eliminar
  9. olá, fantástico resumo! em relação a kristina considera-a anjo ou demonio e porque?

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Talvez não seja necessário considerá-la uma coisa ou outra, mas teria de voltar a ler o romance.

      Eliminar
  10. No final faz-se esta referência ás velas. Ainda nao entendi muito bem o porque do titulo. Como se relaciona a frase que Henrik diz antes de Konrad ir embora e o próprio livro em si, com o titulo?

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Será uma metáfora para as paixões que estão em jogo. São consumidas até ao fim. O ódio ou qualquer outro sentimento deverá ser levado até ao fim, deve arder e extinguir-se.

      Eliminar
  11. Boa tarde, sei que pode ser um bocado insignificante, mas qual pode ser o sentido de as ultimas palavras de krisztina serem o chamamento por Henrik?

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Isso vai ter de descobrir, pois já li o livro há quase 7 anos e não me recordo de tudo o que então li.

      Eliminar

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.