quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Han Kang, A Vegetariana


Quando se lê uma obra, lemo-la sempre a partir de tudo o que lemos anteriormente. Não há leitura que seja despida de um certo enviesamento trazido pela nossa história de leitores, para não falar da própria história existencial. Ao acabar de ler o surpreendente romance A Vegetariana, da escritora sul-coreana Han Kang, vencedor do Man Booker International Prize, de 2016 (edição original na Coreia do Sul em 2007), perguntei-me que autores me estariam a ajudar a enquadrar a visceralidade da meditação sobre o desenraizamento do indivíduo trazida pela obra de Han Kang. Acabei por juntar uma dupla referência. Por um lado, o filósofo francês René Descartes e, por outro, o escritor checo Franz Kafka e a sua obra A Metamorfose. De facto,  A Vegetariana é a descrição da metamorfose onírica da protagonista, Yŏnghye, em árvore. É aqui que entronca a referência a Descartes e à impossibilidade que temos de distinguir claramente o estado de vigília do sonho. Tudo começa com um sonho e acaba como se a própria Yŏnghye tivesse sido arrastada para dentro de um estado onírico de onde não consegue sair.

A descrição da heroína, feita pelo marido na primeira parte (seria melhor dizer primeiro andamento) da obra, mostra-nos uma mulher absolutamente banal, sem qualquer paixão, mas também sem qualquer perturbação. Ele casou com ela porque, sendo ele também completamente banal e medíocre, ela era a mulher que lhe convinha. A trivialidade da vida quotidiana é suspensa quando ele a descobre, uma noite, frente ao frigorífico a despejar todos os produtos de origem animal. Um sonho terrível atormentou-a de tal maneira que a única saída que encontrou foi tornar-se irredutivelmente vegetariana. Um sonho expulsa-a da vida comum e vai expô-la a toda a violência que se esconde na família enquanto instituição. Culmina com uma tentativa de suicídio e o abandono do marido. A opção pelo vegetarianismo serve para tornar claro que o casamento era uma falsificação assim como a família, de onde provinha, tinha as suas raízes na violência do pai, como se tornou a manifestar no episódio que conduz à tentativa de suicídio. A violência do real e o desenraizamento existencial abrem as portas para a transição de Yŏnghye para o mundo da fantasia e para a dimensão onírica.

A segunda parte da obra gira em torno da obsessão sexual do marido da irmã de Yŏnghye, por esta. O cunhado é um artista sem sucesso que trabalha em pequenos vídeos e que procura uma saída para a sua carreira de artista. O desejo erótico, contaminado pela preocupação estética, é mediado por uma coreografia de motivos vegetais, fundados na mancha mongólica de Yŏnghye. Quer pintar o corpo da cunhada com flores, o que ela aceita, e encontrar alguém que, pintado da mesma maneira, contracene com ela, enquanto ele filma. O escolhido aceita mas quando lhe é pedido para passar de cenas eróticas simuladas para uma penetração real, recusa. Então o cunhado tenta fazer amor com Yŏnghye, mas esta não o aceita, pois não se encontra pintado. Se se pintar com os mesmo motivos vegetais, ela acederá aos seus desejos. O que acaba por acontecer no apartamento de Yŏnghye. O erotismo e o sexo carnal já só são possíveis no âmbito vegetal, no abraço de duas plantas. À recusa da carne como alimento sucede a metamorfose da sexualidade que transita do âmbito da carne para o domínio vegetal. Descobertos e denunciados pela irmã de Yŏnghye, são ambos internados num hospício, de onde ele rapidamente sai, mas onde ela, acentuado o desenraizamento, é sugada para dentro de um mundo onírico de onde não sairá.

A terceira e última parte torna patente a violência inerente às instituições psiquiátricas. Esta violência e a atenção da irmã – onde se vai formando a culpa por ter colocado ali Yŏnghye, talvez para se salvar a si mesma de um tal destino – são o enquadramento final da metamorfose. A heroína julga-se árvore e as árvores não comem, apenas são regadas. Ela é agora uma árvores exilada da floresta. O resultado é a intensificação do estado de anorexia, com a recusa de toda e qualquer alimentação e as múltiplas tentativas de a forçarem a alimentar-se, tentativas onde a violência é o eixo central. Incapazes de a alimentarem, transferem-na para um hospital comum. É na ambulância que a irmã, Inhye, lhe segreda que tudo o que se tem passado talvez não seja mais do que um sonho.

A impossibilidade cartesiana de distinguir claramente entre sonho e realidade surge assim como o horizonte de uma metamorfose do self. Não se trata aqui de uma transformação que permita o acesso a um ponto de vista superior e mais integral sobre si e o mundo. Como em Kafka trata-se de uma transferência para uma outra ordem de existência já não humana. No sonho, contrariamente ao lugar comum, dissolve-se a humanidade, transformando-se o indivíduo num ser vegetal, numa árvore. Esta metamorfose, porém, é um sintoma terrível das sociedades humanas. Ser árvore é procurar um enraizamento fundo na terra. É isso que a desenraizada Yŏnghye, perdida no mundo do sonho, procura. Deste ponto de vista, o romance de Han Kang é uma meditação, escorada numa metamorfose onírica, sobre o desenraizamento que grassa nas sociedades modernas, nas sociedades que perderam a ligação com a tradição e a natureza.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Ensaio sobre a luz (49)

Virxilio Blanco, A casa do pintor en Presqueiras

Breves clarões descem sobre a terra, envoltos em presságios e velhos vaticínios. Murmúrios, rumores, um tumulto furtivo de água fria. Feito de silêncios e pássaros ausentes, cresce o Inverno à procura da primeira luz que a Primavera há-de trazer.

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Villa Cardillio 6. Ruínas


6. RUÍNAS

Mundos de pedra
no pó dos prados.

Folhas esquecidas
na toca do tempo.

Âncoras lançadas
ao mar da morte.

1979

domingo, 27 de janeiro de 2019

Lições de História


Comecei há pouco a ler a biografia de Salazar da autoria do embaixador Franco Nogueira, a qual data dos anos setenta do século passado. São seis volumes que cobrem a vida do homem forte do Estado Novo, desde a infância até ao fim da sua existência política. Não estamos perante o trabalho de um historiador ou de alguém que tenha sido politicamente neutro. Pelo contrário, o embaixador foi um dos homens fortes da ditadura e um auxiliar precioso do presidente do Conselho. É uma visão privilegiada a partir de dentro do regime. Um dos aspectos interessantes do primeiro volume – A Mocidade e os Princípios – é o jogo narrativo que coloca em tensão o desenvolvimento de Salazar – os aspectos da sua vida pessoal, de formação e de interesse pela res publica – com a situação política do país.

O que me interessa, neste artigo, não é a figura do ditador, nem o seu processo de formação, o qual tem aspectos que ajudam a explicar muito do que foi a sua posterior acção governativa. Importa-me a caracterização da situação política dos finais do século XIX e do início do XX feita por Franco Nogueira. As rivalidades políticas do final da monarquia constitucional foram prolongadas, com outros protagonistas, mas com o mesmo azedume, nos tempos da primeira república. Ao rotativismo político monárquico sucedeu o rotativismo político republicano. Ambos tiveram um fim doloroso. O primeiro acabou com o assassinato do Rei e do Príncipe herdeiro, a que se seguiu uma agonia até ao golpe republicano. O segundo terminou com um novo golpe e a instauração de uma ditadura, tendo passado pelo assassinato de um Presidente.

Outro traço – tão importante como o anterior e ligado a este – é o das finanças públicas. O défice crónico e o excesso de despesa na função pública deixavam, continuamente, o país à beira da bancarrota e nas mãos das potências estrangeiras. A conflitualidade exacerbada entre os partidos impedia-os de encarem o problema e de tomarem as medidas drásticas que a situação exigia. Se os rotativismos tiveram um mau fim, este foi dinamizado também pelo problema do défice público, da dívida externa e da desordem das finanças do Estado. O que a História nos ensina é que a conjugação dos dois factores – rotativismo político com conflitualidade acentuada e pandemónio nas contas do Estado – conduzem, mais cedo ou mais tarde, ao enfraquecimento da ordem democrática e à instauração da ditadura. Esta lição da nossa pré-história democrática não deveria ser esquecida, nestes tempos em que vivemos, por ninguém, a começar pelas elites políticas democráticas.

[A minha crónica no Jornal Torrejano]

A escolha de João Miguel Tavares

Francis Bacon, Figure in a Landscaspe, 1956

Não sei se é necessário ter algum currículo relevante para presidir à comissão organizadora do Dia de Portugal. Se o é, explica-se o desconforto sentido por muita gente perante a escolha do Presidente da República do colunista do Público João Miguel Tavares. Na verdade, o eleito de Marcelo Rebelo de Sousa é conhecido apenas pela sua coluna de opinião no jornal referido e pela participação num programa televisivo em que se mistura política e engraçadismo. Como serviço relevante à comunidade parece pouco para a distinção. O que se passa muitas vezes é que o PR de serviço escolhe alguém cujo prestígio pessoal sirva para reforçar o prestígio e a legitimidade social do próprio PR. Foi esta tradição que foi cortada. Marcelo Rebelo de Sousa não necessita de reforçar a sua legitimidade social e política. Sente que a tem para dar e vender.

Como explicar então a inusitada escolha de um homem sem qualidades? O actual Presidente nunca e em circunstância alguma se exime de fazer política. Desde as selfies que tira com meio mundo até aos momentos de grande compunção, passando pelos actos triviais da vida política, tudo é pensado politicamente. E só assim se poderá entender a escolha deste ano. Na verdade, trata-se de uma mensagem para dentro da direita. Marcelo Rebelo de Sousa terá sentido que existe, na direita portuguesa, uma pulsão demasiado securitária, presa a uma inclinação identitária, que muitas vezes se oculta na retórica liberal para disfarçar o ressentimento e um mau convívio com a democracia e a diversidade de opiniões. Ora, João Miguel Tavares, assumindo-se claramente de direita – o que tem o condão de irritar a esquerda – e liberal, fá-lo sempre dentro de uma perspectiva democrática, onde não existe vestígio de ressentimento e onde as posições relativamente à liberdade são inequívocas. A escolha de João Miguel Tavares é uma clara indicação sobre o tipo de direita que o país necessita, no entender de Marcelo Rebelo de Sousa. Um acto político de incidência pedagógica para dentro das fileiras a que o actual PR pertence.

sábado, 26 de janeiro de 2019

O acto falhado de António Costa

Fotografia daqui.

“Deve ser seguramente pela cor da minha pele que me pergunta se condeno ou não condeno os actos de vandalismo em Portugal”, respondeu António Costa a uma pergunta trivial e retórica de Assunção Cristas. O inusitado da resposta, ao deslocar a questão política para a questão pessoal e de etnia, acendeu de imediato o rastilho de um ódio que existe, em certos sectores da direita social, ao primeiro-ministro. As palavras do chefe do governo, ao insinuar que haveria por parte do CDS uma atitude racista, são injustas e deslocadas. No entanto, esta resposta é particularmente interessante. Ela é aquilo que se chama, em psicanálise, um acto falhado. Costa disse, num momento de confronto e tensão, algo que ele recalca e que, pelos vistas, habita no seu inconsciente. Apesar do seu assinalável êxito na sociedade portuguesa – presidente da maior câmara municipal do país e primeiro-ministro –, apesar de a sua família paterna fazer parte da casta mais elevada da Índia, ele não se libertou de não ser completamente europeu. Parece preocupar-se, efectivamente, com a cor da sua pele. Só uma tensão inconsciente tão grande explica que uma resposta tão idiota e contrária aos seus interesses políticos pudesse ter rompido a barreira de censura que todos impõem ao inconsciente. Que motivos terá o inconsciente de António Costa para se manifestar assim? É possível que a resposta a esta questão nos diga alguma coisa sobre o racismo brando que existe em Portugal. E, repito, não se trata do CDS, partido onde tiveram papel preponderante pessoas com as mesmas origens de António Costa, sem que isso fosse, para essas pessoas, problema ou obstáculo para alguma coisa.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Sonhos numa noite de Verão 12

Vivian Maier, Untitled, not dated

Legiões de anjos combatiam pela minha alma. Anjos pretos de olhos vermelhos avançavam sobre ela, lanças em riste. Logo se interpunham, com os seus arcos, anjos brancos de olhos azuis. O cheiro a incenso e a enxofre espalhava-se pelo campo e eu tremia, a consciência pesada, o arrepio do corpo, ainda vivo, perante o ardor dos bandos angélicos. Então, uma voz suave murmurou-me aos ouvidos. Olha, esta é a escada da salvação. Cada degrau é um pecado que cometeste. Se em cada um ajoelhares e proferires uma pequena oração, apaga-lo-ás. Comecei de imediato e os degraus em que ajoelhava iam desaparecendo. Quando o despertador tocou, estava no chão ajoelhado. À minha frente erguia-se uma escada infinita.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Villa Cardillio 5. Império de palavras



5. IMPÉRIO DE PALAVRAS

Do latim, a língua
lêveda de luz,
resta o sangue
na folha da figueira,
o eco erguido
das pedras do rio,
a letra rasurada
no litoral da voz.

1979

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Alma Pátria - 46: Luís Goes, Fado do Estudante




Este fado de Coimbra, interpretado por Luís Goes, é um belo documento sociológico. O fado data de 1958 e dá-nos a visão da mulher amada que deveria habitar, naquela época, a consciência do estudante de Coimbra, isto é, dos candidatos à elite intelectual do país. Hoje em dia não se faz a mínima ideia do peso de Coimbra e da sua Universidade no universo mental e social português daqueles dias. E como deveria ser a mulher digna de ser amada por um estudante de Coimbra? Dois traços essenciais. Devia evitar o contacto com a realidade: “Fecha os olhos de mansinho / Não os abras para ver / Porque a vida de olhos fechados / Custa menos a viver”. Além de cega, devia ser a imagem ou da Virgem ou, na impossibilidade de tão grande elevação, a da própria mãe: “Os teus olhos são tão puros / Que me lembram nem sei bem / Se a mãe de nosso senhor / Se a minha mãe que Deus tem”. O que não deixa de ser uma estranha afirmação de um desejo edipiano.

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Ensaio sobre a luz (48)

William Turner, Crepúsculo con nubes oscuras, 1826

A esse estremecimento que se declina como um rumor chamamos com propriedade luz. Desce fremente e poisa sobre a solidão. É um cavalo perdido na campina ou a cal que de súbito desliza dos céus e se ergue na memória.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Alexandre Herculano, O Pároco de Aldeia


Data de 1847 a primeira publicação em livro do romance O Pároco de Aldeia, de Alexandre Herculano. A obra no entanto, tinha aparecido em 1843, na revista O Panorama. O espaço onde decorre a acção é o de uma aldeia saloia, com as suas asperezas e ingenuidades. O ano em que são colocados os episódios narrados é o de 1825. Não se trata, portanto, de uma visita à Idade Média, tão ao gosto do romantismo e que o próprio Herculano acabará por cultivar. É um romance marcado pela contemporaneidade e balizado por um claro objectivo de intervenção polémica. É um romance de tese, digamos assim.

O prólogo começa com a seguinte frase: Como a filosofia é triste e árida! E esta frase dá a tonalidade ao romance. À aridez da vida reflexiva, a que o próprio narrador se teria acolhido em parte da sua existência, contrapõe-se a vida simples, da gente simples de uma aldeia, comandada pelo seu padre cura. E o importante não é apenas a oposição do pitoresco ao árido. A este opõe-se também a fecundidade que deve animar as relações dentro de uma comunidade, com as suas peripécias, os seus devaneios e pecadilhos.

Qual o problema que a filosofia – e Herculano refere-se, claro, à filosofia moderna – trouxe e que leva o narrador a vituperá-la? A árvore da ciência, transplantada do Éden, trouxe consigo a dor, a condenação e a morte: mas a sua pior peçonha guardou-se para o presente: foi o cepticismo. Escreveu o autor, ainda no prólogo. O cepticismo é visto como o corolário do racionalismo nascido na século XVII. Em contraponto polémico com ele, o autor propõe: Feliz a inteligência vulgar e rude, que segue os caminhos da vida com os olhos fitos na luz e na esperança postas pela religião além da morte, sem que um momento vacile, sem que um momento a luz se apague ou a esperança se desvaneça!

Este tom polémico não existe apenas no prólogo. Ressurge em vários momentos da obra. E não é apenas contra o cepticismo, mas também contra o protestantismo, nomeadamente o anglicano. Uma interpretação do cristianismo que apenas se acorda com o sentir das elites e que deixa o povo à sua sorte, abandonado, sem o conforto de uma crença que lhe tempere a dureza dos dias. E como consequência da crítica ao anglicanismo, Herculano entrega-se a uma análise social da situação das classes trabalhadoras em Inglaterra, entregues à voracidade de um patronato ávido, emergente da revolução industrial. Um escritor socialista dificilmente seria mais crítico da situação das classes trabalhadoras em Inglaterra do que Herculano.

Os episódios narrados na vida da aldeia servem então para ilustrar a polémica de Herculano contra o Iluminismo. Não faltam sequer referências depreciativas a Holbach e a Diderot. À complexidade que os novos tempos, onde se destacam as consequências das revoluções francesa e industrial, vinham a introduzir nas relações sociais, Herculano contrapõe o mundo simples da aldeia portuguesa, tutelada pela figura paternal do padre cura. Este é o oposto do frio e árido filósofo, macerado pelas incertezas que a reflexão, destituída do apoio do dogma, introduz no seu modo de vida. O pároco tem um saber feito da compreensão da natureza dos seus paroquianos. Conhece-os, não porque os investiga cientificamente ou reflecte sobre eles de forma analítica, mas porque contacta com eles, porque os confessa e, na verdade, os dirige espiritual e socialmente. Contra a figura do filósofo é erigida em modelo a do bom pastor. Perante o conflito entre razão e fé, Herculano evita o difícil trabalho de reconciliação entre ambas, de compaginação entre dúvida e dogma, e propõe a aldeia saloia como exemplo da superioridade da fé, fundada na bondade moral do seu pastor.

Não sendo considerado, no cânone, como uma das obras principais de Herculano, O Pároco de Aldeia contém em si uma semente que germinará e cuja planta viverá vigorosa por mais de um século, sendo um documento fundamental para compreender a forma ideológica que dirigiu o país durante longo tempo.

domingo, 20 de janeiro de 2019

Descrições fenomenológicas 37. O homem perdido

David Lynch, A Bug Dreams of Heaven, 1992

Seria um náufrago perdido em terra ou um centurião antigo extraviado no tempo? Seria um pastor abandonado nos córregos da serra ou um anjo desvairado nos sulcos de um hossana? O céu encrepusculara-se e o dia inclinava a cerviz para a noite com passos titubeantes. As nuvens coavam a luz, que tocava ao de leve os juncos trémulos a verdejarem em tons de sépia, mergulhados na intimidade das águas. Um renque de ciprestes elevava-se da terra e enegrecia ao sabor do nascimento das trevas. A figura, quem quer seja, parou e olhou longamente o cruzeiro, tão esquálido, feito de pedra escorregadia e húmida, branca como a cal que escora as paredes das casas pobres do sul. O homem, assim parecia, hesitava. Talvez não conhecesse o símbolo ou vacilasse na fé que o haveria de mover. Inclinou a cabeça, enquanto a noite ilegível continuava a sua caminhada, tornando a luz exígua e a alma temerosa. As sílabas desprenderam-se então da boca e caíam sobre a terra em borbotões, formando palavras, frases, uma oração nascida nas cordas tensas do coração. Ajoelhou-se, inclinou a cabeça sobre o peito. Era apenas um esboço de sombra na paisagem que se vestia com o veludo vagaroso da escuridão, e cobria com a carícia do silêncio o fervor que se soltara sobre as espáduas da terra.

sábado, 19 de janeiro de 2019

Villa Cardillio 4. Pergunta



4. PERGUNTA

Em teu rasto, Avita,
quantas mulheres
se perderam na sombra
da sombra
destas colunas,
no sussurro cingido
ao cilício do entardecer,
ao pavor calcinado
do tempo que passa?

1979

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Sonhos numa noite de Verão 11

Florence Henri, Untitled, USA, c. 1940

Um tic-tac inexorável caía sobre a casa, mas não se avistava nada que o pudesse originar. O som crescia para dentro de mim, corroía-me os ouvidos e o coração. O pior era que perturbava a tarefa que me tinha sido imposta. Empilhar chávenas de café. Eu empilhava-as, enquanto uma voz gritava "mais uma, mais uma". Havia que chegar ao céu, eu bem o sabia. Por vezes, esquecia o tic-tac e tudo era muito claro. É a torre de Babel. E continuava a colocar chávena sobre chávena, sem parar. Um estrondo acordou-me. Ao lado da cama, havia chávenas pelo chão. Umas partidas, outras inteiras. Umas paradas, outras a rolarem. As palavras que então proferi foram numa língua que nem eu próprio entendi. 

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Um líder perdido

Thomas Hoepker, Inside the Pantheon. Rome, Italy, 1984

Independentemente daquilo que vier a suceder mais logo na votação do conselho nacional do PSD e do que se possa pensar de Luís Montenegro, a verdade é que Rui Rio tem-se mostrado um líder fraco, errático e incapaz de explorar a falta de energia e de ideias que atingiu a coligação parlamentar que suporta o governo. O decepcionante em Rui Rio é a falta de carisma e isso não é uma coisa que se adeqúe à história do PSD. Este vive na sombra projectada por Sá Carneiro e Cavaco Silva, cada um à sua maneira políticos carismáticos. A forma como Rui Rio liderou a câmara do Porto, a firmeza com que prosseguiu os seus objectivos e o conjunto de vitórias que obteve levaram muita gente, no PSD, a pensar que se tinha encontrado o homem certo, que uma luz teria entrado no templo que vivia de lamentações perante a desfaçatez da coligação de esquerda ter encontrado uma solução governativa. Rui Rio, porém, não mostrou, até ao momento, que o facto de ter sido um bom presidente de câmara de uma grande cidade é currículo suficiente para ser candidato a primeiro-ministro. Quem olha de fora parece-lhe que a Rui Rio falta energia, capacidade de empatia com a população e um conjunto de ideias bem articuladas para governar o país. Parece um líder perdido no labirinto que ele próprio criou.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Carmen Laforet, Nada


Carmen Laforet tinha 23 anos quando publicou Nada, o seu mais importante e decisivo romance. Foi no ano de 1944, apenas cinco anos após o fim da guerra civil, e obteve, nesse mesmo ano, o Prémio Nadal. Segundo a crítica, a obra integra-se na corrente existencialista e representa um momento de ruptura artística na Espanha de então, exaurida pela guerra e submetida à ditadura do generalíssimo Franco. O espaço narrativo é Barcelona, onde a própria autora viveu, o que não deixa de ser um lugar significativo no espaço e tempo da Espanha de então.

Andrea, narradora e principal protagonista, é uma jovem órfã de 18 anos, que vivia num convento. Recebe uma bolsa do Estado espanhol e vai para Barcelona com o objectivo de ingressar na Universidade. O romance começa com a narração da sua chegada à rua de Arribau onde vive a avó. Toda a obra se funda na tensão entre dois modos de existência em dois mundos particularmente diferenciados.  Se se utilizarmos a nomenclatura platónica, estamos perante o mundo sensível e o mundo ideal. É a difícil gestão desta interacção, com contaminações inesperadas, por parte de Andrea que constitui o núcleo forte da narrativa.

A casa da avó, da qual a protagonista tinha vagas reminiscências de infância, pode ser vista como uma metáfora de Espanha da altura. O que a marca é a pobreza e a dissensão. A avó não vive só. Andrea encontra lá a tia Angustias, solteira, autoritária, beata e com um caso extra-conjugal com o patrão, o tio Román, um solteirão de alma artística, mas metido no contrabando e, acima de tudo, um sedutor e manipulador da família. Vive lá também o tio Juan, carácter fraco, casado com Gloria, que antes e depois de se casar com ele foi amante de Román. Há ainda Antonia, uma criada arrogante, apaixonada pelo irmão solteiro, e um bebé, filho do casal, para além de um cão, de um gato e de um papagaio. O centro da tensão reside na relação entre os dois irmãos. Román manipula Juan. Este espanca Gloria, como passatempo O ambiente é completamente disfórico, como se a autora quisesse contrapor à imagem de Espanha em via vias de beatificação, veiculada pelo franquismo, uma distopia, onde a vida estivesse a cada momento à beira de um apocalipse. A miséria, o desleixo, a fome e as tensas e conflituais relações intrafamiliares são uma analogia da própria Espanha. Uma imagem do mundo sensível da filosofia platónica. Este é o mundo do conflito, da mudança contínua, do não-ser e da aniquilação. Enfim, do nada.

O mundo ideal não é, claro, o mundo congelado das ideias platónicas, mas o da vida universitária, onde Andrea faz amigos cuja existência está bem longe da realidade em que ela habita. Nesse mundo, o dinheiro flui com facilidade, e a fluência da moeda leva à amabilidade das palavras e ao comedimento dos gestos. É a fluidez financeira que permite aos jovens acalentarem sonhos e projectos artísticos, terem vivências alternativas à vida burocrática do mundo dos negócios, cultivar a imaginação no lugar da sensata razão. Contraposto ao seu mundo real, à tensão que a dura necessidade sempre impõe, o mundo da universidade, daqueles que a frequentam com ela, parece um mundo de liberdade e de infinitas possibilidades. E é aqui que Andrea estabelece com Ena, uma outra estudante, uma grande amizade, determinante no desenrolar do enredo.

Ena, porém, tem desde o início da amizade, e assim que sabe quem Andreia é, um estranho interesse pelo tio Román. Esse interesse progride e leva Ena a pôr fim ao seu namoro e a suspender os contactos com Andreia. Frequentava a casa desta, mas não para a ver. No entanto, aquilo que movia Ena não era o amor a Román ou o sentir-se seduzida por ele, mas a vingança motivada pelo comportamento, há muito tempo atrás, ainda antes de Ena nascer, de Román para com a mãe dela. Como na Espanha da altura, o passado é gerador de ressentimentos e estes exigem o ajuste de contas. Consumado este, a vida volta à normalidade.

Sem que haja qualquer referência explícita à situação política, o romance de Carmen Laforet não deixa de ser um retrato de um tempo político forte, marcado pela guerra civil, pela ditadura e pelo ajuste de contas. Isso é feito, porém, pela narrativa da adaptação da ingénua protagonista ao duplo mundo em que lhe cabe viver, o da casa, com a perversidade exacerbada das relações familiares, e o da universidade, onde encontra a experiência de um outro mundo possível. Essa tensão acaba por encontrar uma inesperada resolução, que lhe permitiu sair de Barcelona e da velha casa da rua de Arribau, como se saísse do inferno.

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Ensaio sobre a luz (47)

Herb Ritts, Neith with Shadows (Back), Poundridge, 1985

Como poderia o amor tocar-lhe se a luz, ininterrupta e destituída de obstáculos, deslizasse por todo o corpo? A sombra não é uma mácula, mas a possibilidade de alguém se oferecer como o alvo às setas do desditoso deus.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Villa Cardillio 3. Olhar


3. OLHAR

Olho a ruína do passado,
os dias exíguos ao vento
os dedos entrelaçados
na crua carne de domingo.

Dardos de dor voam
para o árduo alvo da noite.
Vão tendidos de silêncio
no vento voraz da várzea.

1979

domingo, 13 de janeiro de 2019

Descrições fenomenológicas 36. Rapariga com chapéu de palha e vestido branco

Esteban Vicente, Goyescas, 1983

As ondas resfolegavam na fímbria da areia, batidas por uma brisa imperceptível. Alguns barcos dilaceravam, com estudada lentidão, as águas, enquanto outros, fundeados perto da costa, baloiçavam com suavidade. O sol, toldado pela neblina, insistia em brilhar e as gaivotas desenhavam no céu, com a precisão de anjos, símbolos impossíveis de compreender. Vinda da estrada, uma rapariga, saída ainda há pouco da adolescência, caminhava rente à passadeira, ensimesmada. Olhava a areia negra ou, com uma mão a proteger os olhos, perscrutava a linha desenhada pela vacilante fusão de céu e mar. Os seus passos eram hesitantes. Por vezes, parava, revolvia a areia com a ponta da sombrinha. Depois, olhava o horizonte e seguia. A certa altura, porém, decidiu sentar-se. O vestido branco, daqueles que se usavam nos inícios do século XX, cobria-a, deixando apenas de fora os pés nus, que cruzou. Na cabeça, um velho chapéu de palha, de aba larga, adornado com uma fita rosa, já descolorida. A água cintilava e ela olhava-a, enquanto abria a sombrinha. Apoiou a haste no ombro e com a mão fê-la rodar, com precisão monótona. Depois, sorriu e fixou o olhar num cruzeiro que se aproximava do porto. Os seus olhos não mais se despegaram dele, como se estivesse à espera que o tempo cavalgasse os dias e ela, já senhora de si, pudesse entrar naquele grande barco que haveria de a levar ao lugar, ela sabia-o bem, que a aguardava.

sábado, 12 de janeiro de 2019

Irvin D. Yalom, O Problema Espinosa


O romance O Problema Espinosa (2012), do psicanalista norte-americano Irvin D. Yalom, propõe uma estranha aproximação entre o filósofo holandês Baruch Espinosa (1632-1677) e o ideólogo nazi Alfred Rosenberg (1893-1946), autor de O Mito do Século XX, uma pretensa teoria das raças, de orientação nitidamente anti-semita, na continuação dos trabalhos de Houston Stewart Chamberlain. A aproximação romanesca destes dois homens que tudo separava foi desencadeada pela descoberta pelo jovem Rosenberg da profunda admiração que o Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) – o maior génio alemão, segundo Rosenberg – nutria pela filosofia do judeu Baruch Espinosa. Como seria possível um ariano ajoelhar-se perante o pensamento de um homem de raça inferior?

O autor – ele mesmo judeu – partiu de um facto real, o saque da biblioteca do museu Espinosa em Rijnsburg, na Holanda, um saque sem sentido tendo em conta a pouca valia daquilo que foi roubado, para construir a trama narrativa. Esta permite-lhe fazer uma caracterização da filosofia de Espinosa, pintar as relações intelectuais e religiosas dos judeus holandeses, judeus fugidos da Península Ibérica, e também construir uma leitura, a partir de uma abordagem psicanalítica, da personalidade do ideólogo nazi. A obra, para além de fornecer aspectos didácticos para aqueles que querem tornar-se psicanalistas (Yalom inventou umas sessões de terapia para Rosenberg), tematiza dois problemas fundamentais. O da identidade de si e o da relação entre razão e fé.

Espinosa era um jovem e brilhante aluno da comunidade judaica de Amesterdão. No entanto, o questionamento racional que ele opõe aos ensinamentos religiosos, o sublinhar das incongruências da tradição e insubmissão geral do espírito levam a que seja proferida contra ele uma sentença de excomunhão, sendo proibidos, a todos os membros da comunidade judaica, quaisquer contactos com o proscrito. Espinosa é despido da sua identidade de judeu e vai ter de reconstruir uma nova identidade fundada agora apenas nos preceitos da razão. Estamos perante a afirmação de uma singularidade radical, assente no corte com a cultura de origem. Em contraponto, Alfred Rosenberg era um jovem solitário e inseguro, vítima dos seus colegas de liceu. A construção da identidade de Rosenberg faz-se a partir da sua solidão, do seu anti-semitismo e no mergulho no que poderia chamar-se espírito do povo. É a crença na superioridade da raça ariana – e a crença de que ele pertença a essa raça – que lhe permite a construção da sua própria identidade. Espinosa constrói a identidade pela singularização produzida pela rejeição da comunidade. Rosenberg fá-lo pelo afastamento da sua singularidade forçada, e sentida como problemática, e pelo mergulho no magma comunitário. Yalom estabelece uma relação entre o nascimento do indivíduo, com a figura luminosa de Espinosa, e o seu desaparecimento com a figura tenebrosa de Rosenberg.

A questão da identidade, contudo, terá de ser percebida num âmbito mais amplo. Trata-se da questão das Luzes. Espinosa é um dos pai do Iluminismo, da afirmação da Razão sobre a fé, as tradições e os preconceitos. O filósofo é apresentado como uma figura da libertação em relação ao pensamento dogmático. Rosenberg, pelo contrário, é a figura da regressão. Ele representa aqueles que trocam o uso da razão pela afirmação de um fanatismo, de uma fé radicalizada em preconceitos raciais e na mitificação do povo alemão. Com Espinosa, o autor traça o caminho que conduz do mito à razão. Com Rosenberg, traça a via contrária, aquela que leva da razão ao pensamento mítico. Não por acaso, o livro do ideólogo nazi chama-se O Mito do Século XX.

A oposição entre razão e mito ou entre razão e fé, tomada esta na sua dimensão de fanatismo, serve para sublinhar os fundamentas da intolerância entre os homens. Esta nasce de crenças que não suportam o exame da razão, nasce em pessoas que sofrem de uma patologia que a psicanálise deveria tratar. O fanatismo resultará menos do exercício do livre-arbítrio, de uma decisão livre, e mais de uma patologia que condiciona as crenças e os comportamentos dos indivíduos, incluindo os comportamentos perante as suas próprias crenças, evitando submetê-las ao exame da razão. A patologia em que todo o fanatismo assenta está ligada a uma ausência de comunicação ou a uma incapacidade de comunicar. O fanatismo judaico impõe o corte comunicacional com o herege Espinosa. O fanatismo nazi é alimentado por homens como Rosenberg, cuja capacidade de comunicar com os outros é notória. Só uma terapia através do diálogo teria, então, o poder de restabelecer a comunicação e evitar o fanatismo. Uma apologia do papel da psicanálise na sociedade.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Sonhos numa noite de Verão 10

Heinz Held, Karneval in Köln, Köln, Germany, Date Unknown

Era criança e estava sozinho na rua. Sentia latejar a dor do abandono e caminhava, mas não sabia para onde ir. A certa altura, oiço uma algazarra e o coração contraiu-se ainda mais. A casa, a casa, comecei a gritar. Olho para trás e fico paralisado de medo. Um cortejo aproximava-se de mim. Vinham mascarados e cantavam numa língua que não compreendi. Quanto mais se aproximavam, mais imóvel me sentia. Num gesto de coragem, fitei-os, como se os desafiasse. Tinham estranhas caras e vestes incongruentes. A casa, a casa, voltei a gritar. Passaram por mim sem me verem e desapareceram. Quando acordei, tremia e senti-me ameaçado. Na rua passavam mascarados e falavam numa língua que nunca tinha ouvido.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

As eleições europeias


Das três eleições que decorrerão este ano – Regionais da Madeira, Legislativas e Europeias – serão estas últimas as mais importantes para o nosso destino a médio prazo. As eleições regionais da Madeira têm um impacto meramente local. As legislativas nacionais, por muito calor que os partidos ponham na disputa, não trarão grandes novidades. Não sendo previsível o surgimento de um movimento populista, os resultados eleitorais, ganhe a esquerda ou a direita, não afectarão o rumo do país, embora possam ter repercussões na forma como se distribuem os rendimentos. Como descobrimos, nos últimos anos, a distância que vai do CDS ao PCP é, apesar de importantes diferenças, muito menor do que se afiançava. Só um terramoto, com a emergência de uma força política importante e marcadamente nacionalista, poderia torná-las decisivas.

As eleições europeias têm um poder destabilizador suficiente para pôr em causa, a médio prazo, a forma como organizamos a nossa vida. O que está em jogo é a dimensão que os nacionalistas antieuropeus terão no próximo parlamento. O que vai ser avaliado nessas eleições é o estado de saúde do projecto europeu, a capacidade que a União Europeia tem para agregar um conjunto de povos diferenciados, que partilham um mercado comum e um conjunto de valores políticos e civilizacionais que constituem aquilo que se convencionou chamar Ocidente. Sendo assim, não é apenas a questão política que está em disputa, mas uma certa concepção de civilização e modo de vida.

Deve ser motivo de preocupação o avanço dos nacionalistas? Devemos distinguir nacionalismo daquilo que o historiador Dolf Sternberger e o filósofo Jürgen Habermas, ambos alemães, denominaram patriotismo constitucional. O nacionalismo é uma visão do mundo que encerra os povos num narcisismo paroquial perigoso. Desde o seu nascimento, após a Revolução Francesa, que ele tem sido responsável, na Europa, por diversas guerras, entre elas as duas guerras mundiais ocorridas no século XX. O nacionalismo é exclusivista e por natureza conflitual. O patriotismo constitucional, por seu turno, afirma uma identidade política colectiva, respeitadora do estado de direito, ao mesmo tempo que defende valores universalistas e a necessidade de conciliação e convivência internacionais. O que está em disputa, nas eleições europeias, é o peso destas duas ideias. Se os nacionalistas crescerem significativamente, o projecto europeu pode ficar ameaçado e surgir uma nova situação política povoada pelos terríveis fantasmas que a União Europeia tinha adormecido.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Villa Cardillio 2. Partida e chegada


2. PARTIDA E CHEGADA

De Itália, a verruma do vento
a planície enlouquecida de luz.
Partiram, a pressa do comércio
a ave urgente colhida no corpo.

Na viagem, cerziram cidades
urdiram espaços e escolhos
urdiram a hera da esperança
o rumor da seda na luz da cal.

Na ânsia do lar, olharam a tarde.
As colinas cobertas de tojo
o rio pelos salgueiros sombreado.
Repousaram na água da aurora.

1979

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Ensaio sobre a luz (46)

Hiroshi Sugitomo, World Trade Center, 1997

A luz hesita mergulhada na névoa e, como um símbolo do provir, treme assediada por estranhos pressentimentos e inexplicáveis temores.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Alma Pátria - 45: Hermínia Silva, Fado da Sina



Interrogamo-nos muitas vezes sobre as razões que conduzem a que a sociedade portuguesa seja obstinadamente iliberal. Haverá razões históricas para isso, as quais não cabem nesta rubrica. Vale, porém, a pena escutar atentamente o Fado da Sina, de Hermínia Silva. Faz parte de um filme de 1946, Um Homem do Ribatejo, de Henrique Monteiro, também ele um documento sociológico de particular interesse. Ora o que nos diz este fado, um grande êxito popular da época? A felicidade ou infelicidade não resultam das nossas escolhas, mas de uma sina, de um negro fado mortal. As coisas são como foram determinadas no além. Qualquer iniciativa é impotente para alterar o destino. Uma sociedade que pensa assim, que sente assim, que se deseja assim, como pode ela transformar-se numa sociedade liberal, feita de sujeitos livres e responsáveis pelo seu destino?

domingo, 6 de janeiro de 2019

Televisões e populismo

Tom Wesselmann, TV Still Life, 1965

A história da ida de Mário Machado, um elemento da extrema-direita com condenações por crimes graves de delito comum, a um programa de Manuel Luís Goucha, na TVI, sublinhou, mais uma vez, um fenómeno a que deveria ser dado uma atenção especial. Trata-se do contributo dos canais de televisão para a criação de um ambiente propício à emergência em Portugal daquilo a que hoje se convencionou chamar populismo. Há muito que os principais canais de televisão portugueses perderam um módico de racionalidade. Basta ver os telejornais para perceber que, a luta pelas audiências, conduz as televisões à exploração dos instintos mais baixos da população.

Por si, a ida de Mário Machado à TVI é uma irrelevância. Deixa de o ser se for integrado no contexto da informação e dos programas que os canais de televisão produzem. Basta ver a forma como investem nos casos que envolvem políticos, como produzem delírios justicialistas, como exploram decisões legítimas, embora conflituais, para criarem ambientes de intensa emotividade, ou como se mostraram melancólicos perante o evidente fracasso dos coletes amarelos da nossa paróquia. As televisões perceberam há muito que a destruição da democracia rende audiências e, como estamos a ver cada vez mais claramente, não terão o mínimo pudor em gerar um ambiente de irracionalidade no país. Corremos o risco de um dia acordarmos com uma vida política sem controlo, não porque a situação do país seja grave, mas porque as televisões precisam de audiências.

sábado, 5 de janeiro de 2019

Joris-Karl Huysmans, Além


Além (no original francês, Là-bas) é um romance do francês Joris-Karl Huysmans publicado em 1891 e consolida o corte com o naturalismo estético iniciado em 1884 com o romance À rebours. Huysmans, nos seus primeiros romances, cultivou um naturalismo estrito, de grandes preocupações sociais. O início de Além é marcado por uma discussão entre o principal protagonista, Dutral, um escritor que troca o romance pela narrativa histórica, e um seu amigo, o médico des Hermies, sobre a falência filosófica do naturalismo, pelo encerramento deste nas questões sociais, na sua falta de impulso para uma realidade sobrenatural. Este romance é o primeiro de uma tetralogia que, de certa forma, acompanha, na personagem de Dutral, a conversão do autor ao catolicismo romano.

Esta abertura para o sobrenatural começa, porém, pelo negativo, pelo mal e o satanismo, numa espécie de retrato de Paris da época. A questão que se coloca é a seguinte: como é que Dutral, e também ele teria sido um escritor naturalista, transita das preocupações sociais para a preocupação metafísica? A obra dá duas pistas. Por um lado, o abandono do romance e a sua substituição pela narrativa histórica, uma biografia de uma figura dos finais da Idade Média, Gilles de Rais, um dos grandes de França no XV, que foi acusado de satanismo por ter torturado, estuprado e assassinado um grande número de crianças. A história permite a Dutral dar o salto para um mundo, o mundo medieval, que já há muito desaparecera. Por outro lado, o cansaço com a vida social que conduz a uma certa busca de refúgio, a uma desilusão com o mundo da literatura e com a própria sexualidade e os jogos a que ela submete os indivíduos.

A reconstrução da vida de Gilles de Rais, toda ela marcada pelo sobrenatural, tanto visto pelo lado da fé em Deus como da busca de um pacto com o diabo, leva Dutral a interessar-se pelo tema do satanismo. Descobre que este continua activo em Paris e que um certo cónego Docre, excomungado, celebra missas negras. Deseja assistir a uma dessas celebrações. Consegue-o através de uma admiradora que, a princípio, se mantém secreta, mas que acaba por se envolver sexualmente com ele. Ela própria é uma admiradora de Docre e uma participante nesse tipo de missas. A abjecção e a irracionalidade do evento, porém, levaram-no a uma rejeição total do satanismo, deram-lhe ocasião para romper com a amante e conduziram-no a uma certa libertação desse mundo de súcubos e íncubos.

Na obra, esta relação com a dimensão negra é contrabalançada pelos encontros que ele e o seu amigo médico têm com um tocador de sinos, na casa deste, um homem de fé profunda que, a partir da sua profissão, elabora uma espécie de metafísica que permite integrar o conjunto da vida sob o ritmo do toque dos sinos segundo o ritual da Igreja Católica Romana. O tocar dos sinos é a voz que, mesmo numa sociedade já claramente não cristã, permite ainda dar-lhe um sentido marcado pelo cristianismo. Estes encontros, apesar da presença de um astrólogo e do cepticismo de des Hermies e do próprio Dutral, são aberturas pelas quais o catolicismo se vai insinuando, mas não mais do que isso, em Dutral.

Pode-se assim perceber que o romance de Huysmans se inscreve num debate sobre a modernidade, essa modernidade que tem os seus fundamentos no Renascimento e na ruptura com a Idade Média. Dutral, contudo, não deixa de ser um moderno, pois procura no abrigo da quase solidão salvaguardar a sua individualidade perante a ameaça do social, todo ele marcado pelos negócios, pela política e, como sempre, pelo jogo sexual que absorve uma parte do tempo, dos pensamentos e da energia dos homens. Perante o peso do mundo com as suas exigências, os seus jogos e a sua alienação, Dutral busca refúgio. Refugiou-se em casa e na solidão, refugiou-se na Idade Média, ou no momento da sua decomposição. Refugiou-se numa busca do além perante o desgosto que o aqui e agora arrastam, com as suas misérias e o trágico da existência, para cima dos indivíduos, que agora, desligados das antigas castas sociais que lhes davam um lugar inquestionável e um sentido existencial, estão perdidos num mundo de indivíduos. Estes, curiosamente, como se percebe no final do romance, pelo vitoriar pela plebe de um político vencedor, o mais que podem desejar é fundir-se ululantes na massa. E é disso também que Dutral e os seus amigos fogem.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Villa Cardillio 1. Cardílio e Avita


1. CARDÍLIO E AVITA

Poeiras passos pedras
ervas exaustas do passado
ervas de âmbar e ardor
deuses no desvão do destino.

Do Lácio vinha a cintilação
e das mãos o rumor e a ruína
a dádiva do desejo
a língua no livor da memória.

Se a sua luz declina entre tílias
a noite desce no coração.
Sombra de sangue
ao passar tudo incendeia.

1979

quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Sintomas

Joaquín Peinado, El Velador

Não é que o partido Nós, Cidadãos! (o nome é já de si um programa) tenha alguma relevância. No entanto, o convite endereçado - e recusado - ao Juiz Carlos Alexandre para ser candidato às eleições europeias é um sintoma. Um sintoma de duas coisas. Em primeiro lugar, da existência na sociedade de uma propensão justicialista. Em segundo, da crença arreigada no homem providencial que nos há-de salvar da miséria moral em que vegetamos, isto é, que nos há-de salvar de nós próprios. Seria boa política que os sintomas não fossem desprezados. Anunciam a patologia, muitas vezes a tempo de realizar uma cura eficaz.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

Ensaio sobre a luz (45)

Ara Güler, Traffic on the old Galata Bridge, Turkey, 1956

Cidades são noites rasgadas no mármore da indiferença. A luz cai sobre a matéria do mundo e lentamente trabalha-a, erguendo casas, pontes, os carros que passam, os olhos que observam e se perdem iluminados no segredo que avistam.