Data de 1847 a primeira publicação em livro do romance O Pároco de Aldeia, de Alexandre
Herculano. A obra no entanto, tinha aparecido em 1843, na revista O Panorama. O espaço onde decorre a
acção é o de uma aldeia saloia, com as suas asperezas e ingenuidades. O ano em
que são colocados os episódios narrados é o de 1825. Não se trata, portanto, de
uma visita à Idade Média, tão ao gosto do romantismo e que o próprio Herculano
acabará por cultivar. É um romance marcado pela contemporaneidade e balizado
por um claro objectivo de intervenção polémica. É um romance de tese, digamos
assim.
O prólogo começa com a seguinte frase: Como a filosofia é triste e árida! E esta frase dá a tonalidade ao
romance. À aridez da vida reflexiva, a que o próprio narrador se teria acolhido
em parte da sua existência, contrapõe-se a vida simples, da gente simples de
uma aldeia, comandada pelo seu padre cura. E o importante não é apenas a
oposição do pitoresco ao árido. A este opõe-se também a fecundidade que deve
animar as relações dentro de uma comunidade, com as suas peripécias, os seus
devaneios e pecadilhos.
Qual o problema que a filosofia – e Herculano refere-se,
claro, à filosofia moderna – trouxe e que leva o narrador a vituperá-la? A árvore da ciência, transplantada do Éden,
trouxe consigo a dor, a condenação e a morte: mas a sua pior peçonha guardou-se
para o presente: foi o cepticismo. Escreveu o autor, ainda no prólogo. O
cepticismo é visto como o corolário do racionalismo nascido na século XVII. Em
contraponto polémico com ele, o autor propõe: Feliz a inteligência vulgar e rude, que segue os caminhos da vida com
os olhos fitos na luz e na esperança postas pela religião além da morte, sem
que um momento vacile, sem que um momento a luz se apague ou a esperança se
desvaneça!
Este tom polémico não existe apenas no prólogo. Ressurge em
vários momentos da obra. E não é apenas contra o cepticismo, mas também contra
o protestantismo, nomeadamente o anglicano. Uma interpretação do cristianismo
que apenas se acorda com o sentir das elites e que deixa o povo à sua sorte, abandonado,
sem o conforto de uma crença que lhe tempere a dureza dos dias. E como
consequência da crítica ao anglicanismo, Herculano entrega-se a uma análise
social da situação das classes trabalhadoras em Inglaterra, entregues à
voracidade de um patronato ávido, emergente da revolução industrial. Um escritor
socialista dificilmente seria mais crítico da situação das classes
trabalhadoras em Inglaterra do que Herculano.
Os episódios narrados na vida da aldeia servem então para
ilustrar a polémica de Herculano contra o Iluminismo. Não faltam sequer
referências depreciativas a Holbach e a Diderot. À complexidade que os novos
tempos, onde se destacam as consequências das revoluções francesa e industrial,
vinham a introduzir nas relações sociais, Herculano contrapõe o mundo simples
da aldeia portuguesa, tutelada pela figura paternal do padre cura. Este é o
oposto do frio e árido filósofo, macerado pelas incertezas que a reflexão,
destituída do apoio do dogma, introduz no seu modo de vida. O pároco tem um
saber feito da compreensão da natureza dos seus paroquianos. Conhece-os, não
porque os investiga cientificamente ou reflecte sobre eles de forma analítica,
mas porque contacta com eles, porque os confessa e, na verdade, os dirige
espiritual e socialmente. Contra a figura do filósofo é erigida em modelo a do
bom pastor. Perante o conflito entre razão e fé, Herculano evita o difícil
trabalho de reconciliação entre ambas, de compaginação entre dúvida e dogma, e
propõe a aldeia saloia como exemplo da superioridade da fé, fundada na bondade
moral do seu pastor.
Não sendo considerado, no cânone, como uma das obras
principais de Herculano, O Pároco de
Aldeia contém em si uma semente que germinará e cuja planta viverá vigorosa
por mais de um século, sendo um documento fundamental para compreender a forma
ideológica que dirigiu o país durante longo tempo.
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