segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Alexandre Herculano, O Pároco de Aldeia


Data de 1847 a primeira publicação em livro do romance O Pároco de Aldeia, de Alexandre Herculano. A obra no entanto, tinha aparecido em 1843, na revista O Panorama. O espaço onde decorre a acção é o de uma aldeia saloia, com as suas asperezas e ingenuidades. O ano em que são colocados os episódios narrados é o de 1825. Não se trata, portanto, de uma visita à Idade Média, tão ao gosto do romantismo e que o próprio Herculano acabará por cultivar. É um romance marcado pela contemporaneidade e balizado por um claro objectivo de intervenção polémica. É um romance de tese, digamos assim.

O prólogo começa com a seguinte frase: Como a filosofia é triste e árida! E esta frase dá a tonalidade ao romance. À aridez da vida reflexiva, a que o próprio narrador se teria acolhido em parte da sua existência, contrapõe-se a vida simples, da gente simples de uma aldeia, comandada pelo seu padre cura. E o importante não é apenas a oposição do pitoresco ao árido. A este opõe-se também a fecundidade que deve animar as relações dentro de uma comunidade, com as suas peripécias, os seus devaneios e pecadilhos.

Qual o problema que a filosofia – e Herculano refere-se, claro, à filosofia moderna – trouxe e que leva o narrador a vituperá-la? A árvore da ciência, transplantada do Éden, trouxe consigo a dor, a condenação e a morte: mas a sua pior peçonha guardou-se para o presente: foi o cepticismo. Escreveu o autor, ainda no prólogo. O cepticismo é visto como o corolário do racionalismo nascido na século XVII. Em contraponto polémico com ele, o autor propõe: Feliz a inteligência vulgar e rude, que segue os caminhos da vida com os olhos fitos na luz e na esperança postas pela religião além da morte, sem que um momento vacile, sem que um momento a luz se apague ou a esperança se desvaneça!

Este tom polémico não existe apenas no prólogo. Ressurge em vários momentos da obra. E não é apenas contra o cepticismo, mas também contra o protestantismo, nomeadamente o anglicano. Uma interpretação do cristianismo que apenas se acorda com o sentir das elites e que deixa o povo à sua sorte, abandonado, sem o conforto de uma crença que lhe tempere a dureza dos dias. E como consequência da crítica ao anglicanismo, Herculano entrega-se a uma análise social da situação das classes trabalhadoras em Inglaterra, entregues à voracidade de um patronato ávido, emergente da revolução industrial. Um escritor socialista dificilmente seria mais crítico da situação das classes trabalhadoras em Inglaterra do que Herculano.

Os episódios narrados na vida da aldeia servem então para ilustrar a polémica de Herculano contra o Iluminismo. Não faltam sequer referências depreciativas a Holbach e a Diderot. À complexidade que os novos tempos, onde se destacam as consequências das revoluções francesa e industrial, vinham a introduzir nas relações sociais, Herculano contrapõe o mundo simples da aldeia portuguesa, tutelada pela figura paternal do padre cura. Este é o oposto do frio e árido filósofo, macerado pelas incertezas que a reflexão, destituída do apoio do dogma, introduz no seu modo de vida. O pároco tem um saber feito da compreensão da natureza dos seus paroquianos. Conhece-os, não porque os investiga cientificamente ou reflecte sobre eles de forma analítica, mas porque contacta com eles, porque os confessa e, na verdade, os dirige espiritual e socialmente. Contra a figura do filósofo é erigida em modelo a do bom pastor. Perante o conflito entre razão e fé, Herculano evita o difícil trabalho de reconciliação entre ambas, de compaginação entre dúvida e dogma, e propõe a aldeia saloia como exemplo da superioridade da fé, fundada na bondade moral do seu pastor.

Não sendo considerado, no cânone, como uma das obras principais de Herculano, O Pároco de Aldeia contém em si uma semente que germinará e cuja planta viverá vigorosa por mais de um século, sendo um documento fundamental para compreender a forma ideológica que dirigiu o país durante longo tempo.

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