O romance O Problema Espinosa
(2012), do psicanalista norte-americano Irvin D. Yalom, propõe uma estranha
aproximação entre o filósofo holandês Baruch Espinosa (1632-1677) e o ideólogo
nazi Alfred Rosenberg (1893-1946), autor de O
Mito do Século XX, uma pretensa teoria das raças, de orientação nitidamente
anti-semita, na continuação dos trabalhos de Houston Stewart Chamberlain. A aproximação romanesca destes dois homens que
tudo separava foi desencadeada pela descoberta pelo jovem Rosenberg da profunda
admiração que o Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) – o maior génio alemão,
segundo Rosenberg – nutria pela filosofia do judeu Baruch Espinosa. Como seria
possível um ariano ajoelhar-se perante o pensamento de um homem de
raça inferior?
O autor – ele mesmo judeu – partiu de um facto real, o
saque da biblioteca do museu Espinosa em Rijnsburg, na Holanda, um saque sem sentido
tendo em conta a pouca valia daquilo que foi roubado, para construir a trama
narrativa. Esta permite-lhe fazer uma caracterização da filosofia de Espinosa,
pintar as relações intelectuais e religiosas dos judeus holandeses, judeus
fugidos da Península Ibérica, e também construir uma leitura, a partir de uma
abordagem psicanalítica, da personalidade do ideólogo nazi. A obra, para além
de fornecer aspectos didácticos para aqueles que querem tornar-se psicanalistas
(Yalom inventou umas sessões de terapia para Rosenberg), tematiza dois problemas
fundamentais. O da identidade de si e o da relação entre razão e fé.
Espinosa era um jovem e brilhante aluno da comunidade
judaica de Amesterdão. No entanto, o questionamento racional que ele opõe aos
ensinamentos religiosos, o sublinhar das incongruências da tradição e
insubmissão geral do espírito levam a que seja proferida contra ele uma
sentença de excomunhão, sendo proibidos, a todos os membros da comunidade
judaica, quaisquer contactos com o proscrito. Espinosa é despido da sua identidade de
judeu e vai ter de reconstruir uma nova identidade fundada agora apenas nos
preceitos da razão. Estamos perante a afirmação de uma singularidade radical, assente
no corte com a cultura de origem. Em contraponto, Alfred Rosenberg era um jovem
solitário e inseguro, vítima dos seus colegas de liceu. A construção da
identidade de Rosenberg faz-se a partir da sua solidão, do seu anti-semitismo e no mergulho no
que poderia chamar-se espírito do povo. É a crença na superioridade da raça
ariana – e a crença de que ele pertença a essa raça – que lhe permite a
construção da sua própria identidade. Espinosa constrói a identidade pela
singularização produzida pela rejeição da comunidade. Rosenberg fá-lo pelo
afastamento da sua singularidade forçada, e sentida como problemática, e
pelo mergulho no magma comunitário. Yalom estabelece uma relação entre o
nascimento do indivíduo, com a figura luminosa de Espinosa, e o seu
desaparecimento com a figura tenebrosa de Rosenberg.
A questão da identidade, contudo, terá de ser percebida num
âmbito mais amplo. Trata-se da questão das Luzes. Espinosa é um dos pai do
Iluminismo, da afirmação da Razão sobre a fé, as tradições e os preconceitos. O
filósofo é apresentado como uma figura da libertação em relação ao pensamento
dogmático. Rosenberg, pelo contrário, é a figura da regressão. Ele representa
aqueles que trocam o uso da razão pela afirmação de um fanatismo, de uma fé
radicalizada em preconceitos raciais e na mitificação do povo alemão. Com
Espinosa, o autor traça o caminho que conduz do mito à razão. Com Rosenberg,
traça a via contrária, aquela que leva da razão ao pensamento mítico. Não por
acaso, o livro do ideólogo nazi chama-se O
Mito do Século XX.
A oposição entre razão e mito ou entre razão e fé, tomada
esta na sua dimensão de fanatismo, serve para sublinhar os fundamentas da
intolerância entre os homens. Esta nasce de crenças que não suportam o exame da
razão, nasce em pessoas que sofrem de uma patologia que a psicanálise deveria
tratar. O fanatismo resultará menos
do exercício do livre-arbítrio, de uma decisão livre, e mais de uma patologia
que condiciona as crenças e os comportamentos dos indivíduos, incluindo os
comportamentos perante as suas próprias crenças, evitando submetê-las ao exame
da razão. A patologia em que todo o fanatismo assenta está ligada a uma ausência de comunicação ou a uma incapacidade de comunicar. O fanatismo judaico impõe o corte comunicacional com o herege Espinosa. O fanatismo nazi é alimentado por homens como Rosenberg, cuja capacidade de comunicar com os outros é notória. Só uma terapia através do diálogo teria, então, o poder de restabelecer a comunicação e evitar o fanatismo. Uma apologia do papel da psicanálise na sociedade.
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