sábado, 29 de abril de 2023

Simulacros e simulações (48)

Imagem obtida através de IA DALL.E 2 da OpenAI

Do fundo negro da inexistência, emergem, velozes e ávidos, mensageiros do ser. Correm perdidos e sem direcção, traçam rotas que logo se abismam no nada, mas persistem envoltos no desejo de um universo que chegará na ordenação pura das esferas celestes, com a sua música imperecível e uma arquitectura longamente meditada na Primavera de todos os mundos.

quinta-feira, 27 de abril de 2023

A persistência da memória (22)

Heinrich Kühn, Wäscherin in der Düne, 1903

Um outro sentido ordenava então o mundo. A vida frugal e a natureza com os seus elementos ainda eram apreciadas como uma dádiva. As relações humanas talvez fossem mais cruas e os abismos que entre homens se intrometiam mais difíceis de saltar, senão intransponíveis. A velocidade, porém, não se apoderara definitivamente do mundo e a vida embalava-se num ritmo lento, para que cada coisa, depois de germinada, pudesse amadurecer sem pressa e assim tornar-se substancial ao encontrar o seu lugar. No entanto, um outro mundo escondia-se já nesses gestos ancestrais de pôr a roupa ao sol para branquear, para deixar que a velha natureza fizesse o seu trabalho e pudesse participar na dança que então  embalava a vida.

terça-feira, 25 de abril de 2023

Cardílio (24 sonetos) 12

Imagem obtida através de IA DALL.E 2 da OpenAI

Que nome ao rio lhe davas, esse rio
Que vejo pobre e solto entre margens?
Quando o Sol inclemente te cansava,
As suas águas de luz te acolhiam.

Suspenso pelas margens frias do Outono,
De amargo fel rasgadas, tão parado
Na lânguida quietude dessa tarde,
Entregavas da língua o prostrado

Murmúrio, velho canto para sempre
Na treva soterrado. Navegante
Não és, nem do rio tens saber sagrado.

Os deuses, os teus deuses embarcaram,
Rumaram para longe, para um céu
De vidro transparente na verde água.

2007

 

domingo, 23 de abril de 2023

Comentários (6)

Vincent van Gogh, Farmhouse in Nuenen, 1885

No teu celeiro não guardarás as horas
mas o frio que o teu gado comeu
Daniel Jonas
 
Não há celeiro ou armazém onde as horas se guardem. Não há despensa ou casa escura onde o tempo se possa empilhar. Ele é um fio feito de coisa nenhuma e desliza imparável entre os dedos impotentes de quem, numa ânsia maculada pelo terror ou no desejo de fugir da necessidade, se entrega ao frio e aos vendavais com a esperança de acumular horas e dias, depositá-los numa conta para que rendam juros num futuro que, na velocidade do que não sofre de perturbações, se aproxima com o hálito incerto para cobrir de geada os trabalhos e os dias.

sexta-feira, 21 de abril de 2023

A guerra entre sexos

Uma notícia curiosa, mas, em aparência, sem relevo. No Público (online) de 11 de Abril, um texto apresentava o seguinte título: Na Croácia, homens ajoelham-se para rezar pela “restauração da autoridade masculina”. No lead da notícia, acrescentava-se: No primeiro sábado de cada mês, um grupo de homens católicos ajoelham-se (em locais públicos) para pedirem o fim do aborto, do sexo antes do casamento ou das roupas “provocantes”.  O que se deve perguntar perante este fenómeno é se ele não passa de uma bizarria ou se, sendo bizarro, traz consigo um aspecto revelador do que se está a passar no mundo ocidental. No último artigo, reflectiu-se sobre como o nacional-populismo se apoderou do futuro. Este artigo foca-se num aspecto que irá ter crescente importância no discurso dos nacionais-populistas, a questão da relação entre homens e mulheres.

A gradual igualdade entre homens e mulheres – nomeadamente, na gestão da sua própria sexualidade – parece estar a atormentar cada vez mais um número significativo de homens. Não apenas a questão da sexualidade, embora esta seja central, mas também o facto de as mulheres terem desempenhos muito mais competentes e focados em muitas áreas, começando pelos estudos e acabando no mundo profissional, onde não são dominantes porque a rede masculina consegue estancar a sua ascensão em massa aos lugares de topo. A liberdade sexual das mulheres trazida pela pílula e pela revolução dos costumes nascida com o Maio de 68, aliada ao poder de focagem que elas têm demonstrado ao nível da educação e da profissionalidade, está a deixar muitos homens inseguros e incapazes de suportar a situação.

Isto é muito claro em países como os EUA ou o Brasil, onde o apoio a Trump e a Bolsonaro se liga a modelos de masculinidade impositiva, que trazem uma promessa de restauração dos velhos tempos da dominação do homem sobre a mulher. Na Europa, esses movimentos são menos visíveis, mas será uma questão de tempo, como prenunciam já as manifestações dos grupos de homens croatas ou aquilo que se passa na Hungria ou na Polónia. Seria, por outro lado, um erro pensar que este tipo de aspiração só teria eco entre homens com masculinidade tóxica. Encontra, e vai encontrar cada vez mais, apoio entre grupos de mulheres, como se vê no Brasil ou nos EUA. Esta questão irá contaminar a política e abrir uma frente de combate muito polarizada, com os nacionais-populistas a alimentar a fogueira. Ainda não se percebe muito bem, mas a questão central da política, o lugar dos grandes conflitos, será cada vez mais o problema da igualdade entre homens e mulheres. Passamos da velha luta de classes à guerra entre sexos.

quarta-feira, 19 de abril de 2023

Nocturnos 101

Fernando Calhau, sem título, 1978

Não se rasgue a noite do seu mistério, nem se queira dissolver em luz a quietação do que adormeceu. Deixe-se apenas as sombras crescer sobre sombras, desenhar esboços que o dia trará à realidade, escrever, com tinta negra, a gesta que se esconde no murmúrio silencioso das trevas.

segunda-feira, 17 de abril de 2023

Ensaio sobre a luz (100)

Imagem obtida com IA da CANVA

É um mapa de luzes aberto ao olhar do espectador. Fronteiras delidas separam territórios de cor, países sem nome numa paisagem submersa pelas metamorfoses da luz. Viajantes invisíveis vão por caminhos de sombra, procuram a porta que os traga ao império das coisas que se deixam prender nos olhos de quem, ao longe, observa.

sábado, 15 de abril de 2023

Cardílio (24 sonetos) 11

Imagem obtida através de IA DALL.E 2 da OpenAI

Cânticos invernais soam na luz
De lápides, tijolos ou na dor
Das aves esmagadas pelo mármore
Das horas, pelo ferro do oblívio.

Os deuses estão mortos, as estátuas
De sal jazem erguidas sobre a terra.
Cruéis, torpes, exaustas pelos anos
Que sobre elas velozes se passaram


No ardor dos dias, na rápida e trémula
Cinza, há vencidos pássaros, que cantam,
Que cantam o teu nome enegrecido.

São pássaros finais, grasnam na noite
Sem Lua, na ventania sobre os telhados.
Gritam a triste glória dos vencidos.

2007

quinta-feira, 13 de abril de 2023

Beatitudes (59) No lago

Paul Pichier, San Vigilio (Gardasee), 1908

Naqueles lugares que só existem no passado, o turismo ainda não tinha chegado com os seus esfaimados devoradores de imagens, nem com os atletas da viagem que em golpes rápidos pousam os olhos nas paisagens para nada verem. A vida vivia-se marcada pela lentidão das águas que no lago atrasavam o passar das horas, abrindo o tempo para que nele os homens se demorassem e deixassem, em certos dias, o seu corpo desabrigado e um vento de bonança e beatitude lhe tocasse. 

terça-feira, 11 de abril de 2023

Simulacros e simulações (47)

Imagem obtida com IA da CANVA

Uma gota de água pode simular uma lâmpada eléctrica. A realidade é um jogo de simulacros, no qual as coisas se imitam umas às outras, na ânsia de encontrarem correspondências e, por vezes, afinidades electivas. O mundo é o produto inacabado do poder que habita o princípio de cópia, o qual gera sem parar novas realidades no desejo de se copiar.
 

domingo, 9 de abril de 2023

Nocturnos 100

Imagem obtida através de IA da CANVA

A noite é uma floresta, onde entre as árvores da escuridão abrem clareiras rasgadas pelas lanças perfurantes dos raios lunares. Os pássaros dormem entontecidos nos ninhos ocultos nas ramagens, enquanto a noite cresce, árvore a árvore, insone, exangue, esperando que a aurora brote do coração do mundo e a escuridão do arvoredo possa dormir sob o império do dia.

sexta-feira, 7 de abril de 2023

O nacional-populismo e o futuro


Em Populismo - A revolta contra a democracia liberal (2018), Goodwin & Eatwell argumentam que os votos nos nacionais-populistas não são de protesto contra o sistema, mas uma adesão comprometida com a visão política desses partidos. No cerne dessa adesão estariam “quatro D”. Desconfiança dos cidadãos, devido ao elitismo da democracia liberal, nas instituições e políticos democráticos. Destruição das comunidades e da identidade nacional causada pela imigração e a mudança étnica. Despojamento sentido pelas pessoas em consequência da globalização, o aumento das desigualdades e a perda de esperança. Desalinhamento entre o povo e os partidos tradicionais, com a quebra dos laços que ligavam eleitores e partidos.

São estas questões que, segundo os autores, alimentam os nacionais-populistas. Acrescentaria, um quinto D, que os autores não referem, embora tenham em conta algumas das suas vertentes. Desestruturação da rede de valores tradicionais que orientaram as comunidades, a perda de relevância da religião, a revolução nos costumes, nomeadamente na sexualidade, a supremacia do estético sobre a moral e o hedonismo. Estes quatro (ou cinco) fenómenos, contudo, são apenas sintomas de uma questão mais decisiva e que se prende com a natureza da política. O que está em jogo na política é a imortalidade do homem, compreendida como a persistência no tempo das comunidades humanas. A arte política visa assegurar que a comunidade tem um futuro. O nacional-populismo cresce porque existe em parte dos eleitores um sentimento de que a sua comunidade corre perigo de morte.

Todos os D diagnosticam doenças que, combinadas, se tornarão mortais. A esta percepção (seja real ou imaginária) não é estranha a pulsão liberal para substituir a política, com a sua tensão entre amigos e inimigos, pela mera gestão das coisas. O nacional-populismo é uma reacção à morte da política e manifesta-se como exploração do sentimento de um fim próximo da comunidade política a que se pertence. As forças democráticas erram se pensam que iludir as questões colocadas pelos diversos D é um caminho para evitar o crescimento do populismo. Não é, pois este enraizou-se numa questão decisiva da existência humana, a do futuro da comunidade. O populismo colonizou o horizonte de expectativa. Resta saber como os valores da democracia liberal e do estado de direito podem resistir perante um inimigo que se se está a apoderar, com êxito crescente, apesar de algumas derrotas significativas, do futuro.

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Cardílio (24 sonetos) 10

Imagem obtida através de IA da CANVA

Sons e silêncios, pedras, ervas, águas,
Verdes prados cerzidos na memória.
Nas folhas da figueira, corre a seiva,
O sopro puro e quente da tua boca.

P’la rua, se caminhavas, desprendia-se
Da luz um raio de âmbar, e dos gestos,
Que de ti se afastavam, irrompia,
Na distância, a luz da Primavera.

Nas sílabas abertas em teu rosto,
Vincado pelos dias de branca névoa,
Ouve-se ainda altivo e luminoso

O sonoro descanso de tua voz,
Mar de melancolia, terra de fogo:
Lácio, língua, silêncio, branca ardósia.

2007

segunda-feira, 3 de abril de 2023

Comentários (5)

Imagem obtida com IA da CANVA

Ouço-as como se ouvisse chegar o verão,
seus inumeráveis dedos correm pelos dias
ou pelas noites com as águas dentro.
Eugénio de Andrade

De tudo o que se ouve, aquilo que mais longamente ressoa são as vozes que habitam por dentro da memória. São como pedras percutidas pelo labor do arqueólogo ou sombras nascidas pela inclinação das giestas num longo entardecer do Estio. Trazem consigo as noites e os dias que o tempo escondeu na caverna esconsa do passado, devolvem ao que foi a esperança de ainda vir a ser, como se essas vozes nascessem num mundo circular, onde tudo retornará vezes sem fim.

sábado, 1 de abril de 2023

A educação e o ChatGPT

Em 1977, Ernst Jünger publicou o romance Eumeswil. Um dos elementos futuristas presentes na obra é um dispositivo denominado luminar. Este permitia fazer perguntas sobre História e devolvia, num monitor, respostas textuais adequadas ou, mesmo, representações vivas dos acontecimentos. Menos 50 anos depois, a realidade aproxima-se do futurismo de Jünger. O ChatGPT da OpenAI ainda não devolve cenas históricas vivas, mas responde a perguntas e não apenas de História, mas de todas as áreas. É uma tecnologia baseada na inteligência artificial. Fornece informação adequada, embora também forneça respostas com erros. No entanto, eliminar os erros e tornar as respostas precisas é uma questão de tempo.

Durante a minha vida, vi chegarem muitas novidades ao sistema de ensino, mas nenhuma alterou radicalmente a natureza deste. As tecnologias de comunicação democratizaram o acesso à informação, isso, porém, não representou uma ruptura, pois a informação sempre esteve no centro do ensino. Permitiram formas mais atraentes de comunicação, mas o essencial continuava como sempre tinha sido. Uma tecnologia como o ChatGPT implica uma mudança de natureza da prática formativa dos alunos e da função dos professores. Estes deixarão de ser mediadores de informação para ser outra coisa.

O professor, em primeiro lugar, deve ajudar os alunos a compreender os problemas a trabalhar e ensiná-los a fazer questões pertinentes à inteligência artificial. Não ensina respostas dadas, mas a fazer inquéritos articulados para obter informação trabalhada. Uma segunda função docente é a de ensinar os alunos a estabelecerem protocolos e estratégias de monitorização da qualidade da informação obtida. Por fim, os professores devem ser criadores de modelos de apresentação, pensados em função de desenvolvimentos cognitivos pretendidos, dos resultados obtidos pelos alunos nos seus inquéritos. Pela primeira vez, a tecnologia presente no ChatGPT torna realmente obsoleta a existência de avaliações das aprendizagens baseadas em provas como testes.

Os professores têm resistido e com razão à transformação das suas funções. A tecnologia disponível não lhes permitia abandonar com segurança a tradicional função de mediadores de informação. O ChatGPT veio mudar a realidade, resta saber quanto tempo vão demorar os sistemas de ensino a adaptar-se a um novo mundo. Recordo que Platão, no final do Fedro, escreveu uma terrível diatribe contra os malefícios da escrita. O resultado foi o que se viu, nulo. Não vale a pena, agora, diabolizar a inteligência artificial, o resultado será idêntico à diabolização da escrita por Platão.