quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Knut Hamsun, Os Frutos da Terra


O sucesso internacional de Os Frutos da Terra (Markens Grøde, no original norueguês), publicado em 1917, é apontado como uma das causas decisivas para a atribuição a Knut Hamsun do Prémio Nobel da Literatura, em 1920. O romance é, na verdade, uma espécie de epopeia centrada na glorificação da vida na terra e do valor da persistência do indivíduo perante os problemas que a natureza e a sociedade lhe colocam. No centro da narrativa está um herói inesperado, o colonizador de terras pantanosas da Noruega, Isak de Sellanraa. Esta epopeia, apesar da poeticidade inerente ao apelo da Terra e ao carácter ferozmente individualista do herói, inscreve-se claramente no combate que Knut Hamsun – ele que foi um dos grandes modernistas na literatura – trava contra a modernidade, em nome de uma relação mais profunda do homem com a natureza.

Apesar da importância no desenrolar da intriga  de figuras femininas como Inger, a mulher de Isak, Oline, parente de Inger e personagem perigosa pelo seu oportunismo e tendência para a coscuvilhice, e de alguns vizinhos, a obra funda o seu sentido em quatro protagonistas masculinos. O herói Isak, os seus filhos varões Eleseus e Sivert e o meirinho da aldeia próxima da quinta de Isak, Geissler, o qual foi destituído do seu posto ainda numa fase inicial da narrativa. Isak representa o ideal do homem em contacto com a natureza. Duro, persistente, trabalhador, mas marcado pelo grande amor à terra e à família. É a personificação do ideal do homem do campo, aquele que está em contacto com o que há de mais essencial na vida. Um individualista que, apesar desse individualismo, se liga à grande tradição dos homens que transformam, pelo trabalho, a terra num jardim. Tudo nele o afasta da modernidade, enquanto projecto ideológico contaminado pelo liberalismo económico e pela visão burocrática e desencantada do mundo. Curiosamente, Isak, o inconsciente herói anti-moderno, não desdenha as conquistas tecnológicas trazidas pela modernidade.

O meirinho Geissler é a personagem mais misteriosa do romance. Ele próprio se designa como sendo nevoeiro. Vê o que é certo, mas não tem o poder para o realizar, segundo afirma. Tudo nele é nebuloso. É nebulosa a história que o leva a perder o lugar de meirinho, como é nebulosa a sua vida posterior e os poderes que possui, entre eles a sua capacidade económica e a de influenciar a justiça. Desde o início que se constituiu como uma espécie de anjo protector de Isak de Sellanraa e da sua família. Ajuda Isak a adquirir os terrenos da sua quinta ao Estado, ajuda Inger, devido a um caso de infanticídio, perante a justiça, proporciona alguns negócios lucrativos à família. Tudo isto em troca de nada. No último capítulo, Geissler pergunta a Sivert quantas quintas há naquela zona. Este responde que são dez. Geissler diz então: Dez propriedades? Bem estou satisfeito. O país precisa de 32 mil homens como o teu pai, digo-te eu, que o calculei. Geissler é o anjo da ideologia, uma espécie de deus ex machina que resolve certos problemas e dá uma orientação e um sentido: Escuta, Sivert: alegra-te! Têm (os de Sellenraa) tudo porque viver, tudo com que viver, tudo em que acreditar, nascem e dão à luz, e são essenciais à terra. Nem todos o são, mas vocês sim: essenciais à terra. Sustentam a vida. Persistem de geração em geração e sentem-se completos ao simplesmente procriar; quando morrem, os filhos tomam o vosso lugar. É este o significado da vida eterna.

Sivert é importante na narrativa não apenas porque escutou a anunciação do anjo da ideologia, mas porque é o continuador da saga iniciada por Isak. Sivert é o segundo filho varão mas será ele que tomará em mãos a tradição sagrada do homem da terra. Não é a sua acção no tempo da narrativa que lhe dá importância, mas o facto de ele assegurar que a epopeia terá seguimento e que a terra continuará a ser trabalhada por gente vista como essencial. Eleseus é o elemento contrastante da família. Esteve, ainda jovem, num grande centro, onde adquiriu hábitos adversos à vida na terra. É a presença do mundo moderno no seio da família de Sellenraa. Um burocrata pouco vigoroso, talvez pouco masculino, demasiado preocupado com a aparência e incapaz para o confronto com a natureza. Mais do que os empresários e engenheiros ligados a uma mina de cobre adjacente à quinta de Isak, Eleseus é o representante do mundo moderno e liberal. Inquieto, consegue com a ajuda fraternal de Sivert algum dinheiro e parte, com promessa de voltar, para a América, o lugar do mundo moderno por excelência. Nunca voltou.

O que significa o facto de Eleseus nunca ter voltado? Significa que dali, onde a modernidade se instala, não há retorno possível a um lugar onde a vida seja autêntica. A América não é meramente um país, mas o território da modernidade liberal, o lugar daqueles que vivem rapidamente – que são relâmpagos, como assinala Geissler – e que confundem os meios com os fins. O lugar da confusão. Não se fica a saber nada do destino de Eleseus, apenas que não voltou. Este silêncio, na economia da narrativa e da ideologia do autor, não é inocente. Seja o que for o que lhe tenha acontecido, o fracasso ou o triunfo, isso é irrelevante, porque a vida no mundo moderno é destituída de significação autêntica. A autenticidade reside no solo pátrio, na luta individual do herói com a natureza, até a domesticar. Este silêncio é revelador de uma opção ideológica do narrador e do próprio autor. Por muito que simpatizemos com Isak e Sivert, por muito atraente que seja a epopeia narrada, por genial que seja a técnica de Hamsun – o uso da corrente de consciência e do monólogo interior, por exemplo –, o livro não deixa de ser inquietante e ajuda a perceber muito bem a atracção do autor pelo nazismo germânico, onde encontramos muito desta ideologia. Seja como for, uma grande obra a ler com toda a atenção.

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