O Sol dos Mortos, de
Ivan Chmeliov, foi escrito em 1923, quando o autor se encontrava já exilado em
Paris. A obra é uma das mais importantes na tematização da revolução soviética,
a partir da experiência do terror vermelho e da grande fome que emergiu na
Crimeia, em 1921, devido à seca de Verão e às pragas de gafanhotos, e que se
prolongou até 1923. Lê-la, porém, como um mero documento de propaganda
anticomunista é cometer uma injustiça tanto do ponto de vista estético como do
ponto de vista filosófico. Estamos perante uma obra de arte e não de um
panfleto ideológico.
É no capítulo “Pão com Sangue”, um dos últimos, que
encontramos a chave que nos permite compreender aquilo o que é visado no
romance. Perante o desespero de alguém, o narrador escreve:
Não o conhecem, não o viram –
senhores apreciadores das «irrupções» humanas, entusiastas dos «atrevimentos»!
Tudo isso é o «lubrificador» da maravilhosa máquina do Futuro, é o detrito e a
escória do majestoso forno de fundição, em que se molda este Futuro! (pp.
227/8)
Todo o sofrimento e todo o desespero – os quais, muitas
vezes, parecem ser eternos, sem uma Páscoa que os redima – são o contraponto da
verdadeira alucinação com o futuro que se apoderou do homem moderno, do qual o
homem soviético é uma das figuras. O problema do futuro não reside no próprio
futuro, mas na ideia de que o Kairós,
o tempo oportuno para que cada coisa se realize, pode ser ultrapassado, por uma
decisão da vontade humana, e que os homens, através da acção política, podem
acelerar a história. O romance de Chmeliov focaliza-se no resultado desta
aceleração da história levada a efeito pelos bolcheviques. Lubrificar a máquina
do futuro é passar a medida daquilo que é humano. Os comunistas russos são
apenas uma encarnação dos apreciadores das «irrupções» humanas e dos entusiastas
dos «atrevimentos».
O romance é visto como uma nova descrição do Inferno, na
esteira de Dante, ou como uma poética da morte e do luto. Talvez seja mais
preciso, contudo, dizer que ele é uma fenomenologia da desagregação do vínculo
humano, devido ao projecto de aceleração do tempo histórico. Essa fenomenologia
é composta por múltiplas pequenas histórias onde se dá a ver a metamorfose por
que passam as pessoas, a sua entrega ao desespero e, por fim, à morte. O
vínculo, que agora soçobra, tinha vindo a ser construído ao longo da história,
mas, com a revolução, o homem volta às relações brutais, ao tempo das cavernas,
como se pode compreender na leitura do antepenúltimo capítulo “Milhares de anos
atrás…” Acelerar a história significa então retroceder, voltar à arbitrariedade
e à selvajaria pré-civilização.
Esta fenomenologia da destruição do vínculo humano – que um
autor contra-revolucionário, Joseph de Maistre, já tinha detectado na revolução
francesa – é uma forma de realização do niilismo. Estamos perante a destruição
de todos os valores que, até àquele momento, tinham ordenado a vida humana.
Esta destruição é obra do terror político, mas também da impotência da nova
ordem para responder aos problemas colocados pela natureza através da penúria
alimentar. Esta descrição fenomenológica da destruição do vínculo social é, por
outro lado, uma espécie de epopeia, na qual os protagonistas, arrastados pela
enxurrada da história, lutam, apesar de tudo, para manterem as qualidades
humanas que, desde há muito, consideramos virtuosas. E é aqui que, apesar da
situação terrível em que se vive, que o narrador, nas últimas linhas da obra,
assinala o começo da primavera. Ela marca um tempo de ressurreição e de
esperança, embora de uma esperança muito mitigada, como podemos ler no último
parágrafo do romance:
A noite já caiu. O melro
calou-se. Ao amanhecer, volta a cantar… Vamos ouvi-lo – pela última vez.
Ivan Chmeliov (1915). O Sol dos Mortos. Lisboa: Relógio d’Água. Tradução de
Filipe Guerra e Nina Guerra.
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