Julio Romero de Torres, Mira que bonita era, 1895
Há pelo menos duas formas de encarar, do ponto de vista crítico, as constantes mudanças que o poder
político, nas últimas décadas, tem introduzido no sistema educativo. Uma, ingénua,
considera que, no fundo, essas mudanças constantes são fruto das idiossincrasias
dos responsáveis políticos, dos seus caprichos, do desejo de deixar o nome
ligado a uma mudança estrutural num sector fundamental para o futuro da
comunidade. Mais que malevolência, esta perspectiva ingénua vê uma
inconsistência, dos responsáveis políticos, fundada no desconhecimento da
realidade do sistema e na vaidade pessoal.
Outra visão tenta compreender a coerência e os objectivos
que são perseguidos através de uma girândola de mudanças que nunca sacia a fome
de mais e mais alterações. Se olharmos para as sociedades contemporâneas vemos
que o professorado vive ainda preso ao mundo da longa duração. Tornar-se
professor no ensino público, pensa-se, é entrar numa carreira a longo prazo.
Esta ideia de longo prazo é, contudo, inaceitável no âmbito da economia actual.
Tudo nesta é visto no domínio do curto prazo, desde as funções até aos
contratos, passando pelas relações pessoais. Quer-se pessoas flexíveis que
possam sofrer sem protesto a mudança, a alteração rápida do que fazem, a perda
de emprego e de sentido da sua vida.
É num livro já com 20 anos, The Corrosion of Character – The Personal Consequences of Work in the
New Capitalism, que um sociólogo norte-americano, Richard Sennett, chama a
atenção para os efeitos que este tipo de economia tem sobre o carácter das
pessoas. Os traços fundamentais do carácter estão, desde sempre, ligados ao
longo prazo. A lealdade, o compromisso e todas as características que fornecem um
sentimento de persistência no tempo de si mesmo exigem relações e experiências de longa duração. Essas características eram desenvolvidas nas famílias, nas
escolas e nas empresas, tendo, tanto a escola como a empresa, um papel fundamental na estabilização
desses traços de carácter. Hoje em dia, as exigências do mercado de trabalho
chocam de frente com a existência de um carácter forte e solidamente formado.
Como os Estados ocidentais ainda não conseguiram
desestruturar completamente o Estado social e a escola pública, os agentes
políticos entendem transformar uma carreira de longo prazo, o professorado, com
o seu processo lento de maturação, numa carreira que resulta da soma de inumeráveis
experiências, com exigências arbitrárias, muitas vezes antagónicas, obrigando os
professores – que ainda não podem ser despedidos – a reformular de um ano para
o outro a sua função e, consequentemente, a forma como desenvolvem o seu
trabalho. Aquilo que parece um caos insensato não é outra coisa senão a
transformação de uma carreira de longo prazo num conjunto de funções de curto
prazo, que não acrescentam experiência nem sabedoria ao professor, não
contribuindo para a consolidação de um carácter forte.
O objectivo de tornar a escola flexível – é este o
desiderato actual do poder político através do eufemismo da flexibilidade
curricular – é de criar ambientes do curto prazo naquilo que tradicionalmente
era visto como sendo de longo prazo. Como se compreenderá, o que se pretende é
corroer o carácter dos professores e, como consequência, o dos alunos. Os
governos já não querem escolas que fortaleçam os compromissos, que desenvolvam
as lealdades, que fomentem os traços que persistirão ao longo de décadas. A
volubilidade organizacional e curricular das escolas é o modelo que os
indivíduos – professores e alunos – deverão adquirir e ostentar. Volúveis,
centrados no curto prazo, receptivos aos caprichos e ao arbítrio dos que
ordenam o mundo. Fundamentalmente, pouco senhores de si. O que se assiste em
Portugal, como noutros países, é ao fim da educação e a sua substituição pela
formatação, em workshops flexíveis, de personalidades sem carácter, sem lealdades, sem compromissos, sem
sentido de si mesmas.
A escola pública, aos olhos das elites políticas, é um
anacronismo, uma relíquia de um mundo que acabou. Como ainda não é possível um
amplo consenso para acabar com ela, os partidos que ocupam o governo empenham-se
em desestruturá-la, corroê-la, falando sempre na sua defesa e
na educação para todos. Aquilo que está a acontecer, com mais uma reforma
drástica do sistema, não é uma tentativa de reanimação de uma escola pública
moribunda. Esta é já um cadáver e aquilo que se desenrola sob os nossos olhos é
as exéquias, que serão dolorosas e prolongadas, mas não deixarão de ser exéquias.
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