A minha crónica em A Barca.
Há tempos, em conversa com um amigo de longa data, este
dizia-me que estava a trabalhar num país muçulmano do Médio-Oriente. É outro
mundo, sublinhava, e que a ele, fora de alguma embaixada ocidental, não lhe
passava sequer pela cabeça beber uma cerveja. É uma questão de respeito pelas
regras locais, referiu. Esta história pessoal vem a propósito de uma reportagem
sobre a Dinamarca, lida há dias, onde um grupo de jovens mulheres muçulmanas se
organizou para contestar a lei dinamarquesa que as proíbe de andarem em público
de rosto completamente velado pelo niqab.
O grupo argumenta que o uso do véu faz parte da sua liberdade. A um ocidental não
lhe ocorreria exigir o respeito pela sua liberdade de beber uma bebida alcoólica
num país islâmico.
O caso dinamarquês é interessante porque o que se proíbe é a
ocultação do rosto no espaço público. Esta lei, por estranho que possa parecer
a alguns ocidentais, está de acordo com a cultura iluminista que se desenvolve
na Europa desde o século XVIII. No espaço público, os actores sociais estão
submetidos ao princípio de publicidade, à transparência da sua presença, à
impossibilidade de aí estarem resguardados pelo segredo. Estes valores, que nos
constituem e dão sentido ao nosso modo de existência, deverão ser para nós
objecto de uma protecção contínua, pois a sua destruição significará o fim
desse mesmo modo de vida.
O que estamos a assistir, Europa fora, é a um teste
sistemático desses valores por parte de algumas comunidades islâmicas. Lutam
para que, pelo menos, se abra uma excepção para as suas práticas que contrariam
os ordenamentos jurídicos ocidentais. Ora, o princípio de excepção é algo que
os valores iluministas combatem também como uma perversão inaceitável. O
problema que a Europa atravessa, em alguns países, parece ser a impotência de
impor a lei a todos os que ali habitam, abrindo-se inaceitáveis excepções de
facto.
As pessoas não devem poder andar de rosto velado na rua, nem
podem existir casamentos combinados, nem pode ser permitido que crianças sejam forçadas
a casar, nem se pode permitir que homens batam em mulheres, não porque isso
sejam práticas de determinadas comunidades, mas porque isso contraria os
valores desses países consagrados na lei. Contrariamente ao que pretendem
alguns grupos islâmicos, o que está em causa não é a religião, mas a
universalidade da lei. Se as jovens muçulmanas dinamarquesas podem, felizmente,
protestar contra a lei, os europeus não podem pactuar com qualquer ataque a
três valores fundamentais: o princípio de publicidade no espaço social, a
universalidade da lei e a inaceitabilidade de qualquer excepção.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.