sábado, 30 de outubro de 2021

O amor ao clima

Pedro González, Carros, 1995

O principal problema das alterações climáticas, e estas não são poucas nem inofensivas, não reside nelas, mas na espécie que as causa. É evidente que ninguém quer viver num mundo poluído e tem um coração que se condói quando uma catástrofe se abate sobre uma qualquer população. Contudo, são poucos, muito poucos, os que estão dispostos a cortar com o seu estilo de vida, para contribuir para uma situação menos degradada. Veja-se o chinfrim que ia por aí com os preços do combustível. É claro que empresas de diversos ramos não podem ser competitivas com os actuais preços de gasóleo e gasolina. O governo, porém, foi mais longe e decidiu financiar todos os portugueses, assegurando que eles podem continuar a contribuir para o desastre que se avizinha. Fê-lo, não porque seja particularmente benévolo, mas porque tem medo de revoltas. E com razão. Nós seres humanos, gostamos muito de um ambiente limpo, desde que o possamos continuar a poluir e tenhamos dinheiro para encher o depósito. Isto não vai acabar bem.

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

O gato de Schrödinger e o chumbo orçamental

O chumbo de ontem do orçamento não foi um mero chumbo orçamental - aliás, o primeiro na história da democracia portuguesa -, mas uma decisão de separação que põe fim à possibilidade das esquerdas terem um projecto comum. A solução de 2015 tinha trazido para a área da governação PCP e BE, tinha-lhes aberto uma fresta. Não que estivessem muito interessados nisso. Gostavam da situação de estar fora e dentro ao mesmo tempo, mas como não consta que sejam gatos de Schrödinger, aquele gato que estava vivo e morto ao mesmo tempo, a coisa tornou-se impossível. É provável que António Costa os tenha posto entre a espada e a parede. Se querem louros, então há que sujar as mãos naquilo que há de desagradável na situação de Portugal. Preferiram saltar para fora do concubinato. Se fossem gatos de Schrödinger, dir-se-ia que tinham escolhido estar mortos, mas não são. Isso, porém, não assegura que estejam vivos.

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Nocturnos 67

Elliott Erwitt, Arkansas, 1954

Sonha-se com uma noite de glória, o reconhecimento da beleza que se possui, como se ela fosse o resultado de um mérito inquestionável. No sonho dessa noite de glória não se percebe que não há qualquer glória, mas apenas noite, uma noite cada vez mais escura, disfarçada pelas luzes do palco, mas sempre uma noite.

domingo, 24 de outubro de 2021

A Garrafa Vazia 69

Markus Luepertz, Autorretrato, 1983
Toquei o dia com mão
mutilada,
presa na grua
que sustém
o peso do vazio,
a corveia que pesa
nos ombros
e para o chão
me dobra a cerviz.

Outubro de 2021

 

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Orçamento, um triste espectáculo


A questão do próximo orçamento de Estado – independentemente, do que vier a acontecer – tem sido ocasião privilegiada para um verdadeiro espectáculo político dado pela esquerda. Um triste espectáculo, diga-se. Aquilo que se vê – um cortejo de penosas seduções e de ameaças veladas entre as partes – não é apenas degradante, mas oculta uma realidade inquietante. A esquerda não consegue produzir uma plataforma conjunta de governação para o país, um programa estratégico partilhado pelas diversas forças. Tivesse a esquerda um programa comum, as negociações seriam dentro de casa e nenhuma das partes teria necessidade de recorrer ao drama de faca e alguidar a que se tem assistido.

Vale a pena lembrar dois acontecimentos. O primeiro é o caso Syriza, na Grécia. Chegou ao poder para introduzir um conjunto de rupturas com o Euro, a União Europeia, etc. No momento em que tiveram de tomar uma decisão de rompimento, os dirigentes perceberam que a alternativa seria uma catástrofe para os gregos, muito pior do que as exigências de Bruxelas. Tiveram o bom-senso de compreender a realidade e de se adequar à máxima de que a política é a arte do possível. Num mundo global não existe lugar algum, a não ser o inferno, como alternativa àquele onde se está. Essa ideia do socialismo como alternativa ao capitalismo está morta há muito. A certidão de óbito foi passada em 1989, e nessa altura há muito que o cadáver cheirava mal.

O segundo acontecimento é recente e passou-se em Lisboa, nas eleições autárquicas. A divisão das esquerdas ofereceu a câmara da capital à direita, dando-lhe uma plataforma para reanimação e, muito possivelmente, saída do estado catatónico em que se encontrava. Existe em largos sectores da esquerda a crença ilusória de que ela será sempre maioritária no país, que haverá sempre uma geringonça para evitar dores de cabeça. É uma crença falsa. Os eleitores cansam-se e procuram novos caminhos. É a virtude da democracia.

O triste espectáculo actual em torno do orçamento pode muito bem ser o prelúdio de que as coisas estão a mudar e não há vontade nem imaginação para encontrar um caminho sólido à esquerda. Os socialistas esperam que os dinheiros de Bruxelas os ajudem a manter-se no poder. Não aprenderam com Lisboa. À sua esquerda parece não haver uma política para o país, mas apenas um conjunto de reivindicações sectoriais e linhas vermelhas que servem para a barganha orçamental, uma tentativa de segurar eleitorados, mas não são uma ideia realista para Portugal. Tudo isto se paga.

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Um olhar sobre as eleições concelhias


Há dias, um médico prescreveu-me um conjunto de exames e, como se pretendesse explicar-me a razão, disse que não praticava uma medicina intuitiva (a que é feita de diagnósticos baseados nas aparências sintomáticas), mas que lidava com resultados empíricos, uma medicina científica. Como se sabe, também esta pode cometer erros, embora em muito menor escala do que a intuitiva. O que se passa na medicina passa-se também na política. Mesmo quando há sondagens feitas com rigor, os eleitores podem determinar um resultado inesperado (veja-se o caso de Lisboa). Muito mais equívoca é a situação quando não existem sondagens e as percepções que se têm são meramente intuitivas.

Antes das últimas eleições autárquicas, pensava que os resultados do PS e da lista de António Rodrigues (AR) estariam muito mais próximos, não descartando a possibilidade de este retornar à presidência do município. Pensava que ele teria uma maior capacidade de penetração no eleitorado socialista, assim como no da direita concelhia. Pensava ainda que o BE e a CDU seriam menos afectados pela candidatura de AR que o PSD-CDS. Estas crenças baseadas na intuição revelaram-se todas completamente erradas. AR não teve qualquer capacidade de penetrar no eleitorado de direita. Esta, no seu conjunto (com Chega e IL), alcançou mais 389 votos do que em 2017. Também não teve capacidade para dividir o eleitorado socialista. O PS perdeu um pouco menos de mil votos (11,2%) em relação a 2017. Onde AR teve capacidade de penetrar fundo foi nos eleitorados do BE e CDU. O BE perdeu 1303 votos (52,2%) e a CDU, 558 votos (34,7%). A soma dos votos perdidos pelo PS, BE e CDU perfaz, quase na totalidade, a votação obtida por AR.

Estes resultados tornam patente, em primeiro lugar, que grande parte do eleitorado está contente com a governação socialista do município e que sufraga o seu programa para os próximos 4 anos. Em segundo lugar, a direita concelhia, apesar de mais dividida, conseguiu estancar a perda continua de eleitorado. Em terceiro lugar, a figura política de António Rodrigues é muito menos atractiva do que se imaginava. Em quarto lugar, o eleitorado deu uma nota negativa muito forte às políticas autárquicas do BE e da CDU, dispensando a sua presença no executivo e reduzindo-a na Assembleia Municipal. Do ponto de vista puramente político, não da gestão do município, os próximos quatro anos colocam alguns problemas interessantes. Como vão os socialistas gerir a substituição de Pedro Ferreira? Terá o PSD uma oportunidade para reaver uma câmara perdida há muito? A perda de votos de BE e CDU foi conjuntural, efeito de AR, ou será estrutural?

terça-feira, 5 de outubro de 2021

Virtudes Militares


Quando se fala em virtudes militares, a primeira em que se pensa é a da coragem. O exercício da guerra exige-a. No entanto, não é a única virtude que a instituição militar cultiva. Além dela, há um conjunto de valores inerentes às Forças Armadas e que seriam de grande utilidade à comunidade, caso elas transbordassem para a sociedade civil. Os portugueses – entre eles, e com razões acrescidas, os governantes – estão orgulhosos da forma como o processo de vacinação contra a COVID-19 tem decorrido, estando vacinada praticamente toda a população vacinável. Pouca gente terá dúvidas de que o êxito deste processo se deve, em grande medida, à liderança de um militar, o Vice-Almirante Gouveia e Melo, que pegou num processo onde se vislumbravam já derrapagens e oportunismos vários.

Liderar a vacinação em massa da população não exigirá a coragem requerida pelos campos de batalha, mas necessita de outras virtudes existentes na instituição militar. Disciplina, organização, rigor, definição de objectivos realistas, espírito de missão e, acima de tudo, espírito de serviço à comunidade. Quem observa o processo de vacinação fica com a nítida impressão de que o líder da task-force possuía todas essas virtudes, as quais são trabalhadas e desenvolvidas pela instituição militar. Levou-as para o terreno, liderando o processo como se ele fosse uma batalha decisiva contra um inimigo astuto e cruel. Num tempo em que os valores correntes na sociedade são os do interesse pessoal e da sobreposição deste aos interesses da comunidade, é reconfortante ver a acção de alguém que evidencia como valor supremo o espírito de serviço.

Como em todo os lugares, também nas Forças Armadas haverá gente venal, que tenta tirar partido pessoal do lugar onde se encontra, por vezes infringindo a própria lei. O ethos da instituição, porém, não é esse, mas o de servir a comunidade até ao sacrifício supremo, se for esse o caso. Muitas vezes, isso é esquecido. O exemplo do processo de vacinação deveria acordar a sociedade portuguesa não para o desejo de ser governada por militares – o que envergonharia militares e civis – mas para o bem que seria a comunidade deixar-se contaminar pelas virtudes militares exibidas por Gouveia e Melo. Repito-as, disciplina, organização, rigor, definição de objectivos realistas, espírito de missão e espírito de serviço. Tornariam a sociedade mais forte e os indivíduos mais capazes e mais exigentes consigo e com aqueles que governam. É possível – ou provável –, porém, que não se tire qualquer lição do exemplo que tem sido dado a todos. Infelizmente.