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sexta-feira, 4 de julho de 2025

Direita e Esquerda, uma questão de sabores morais


Em 2012, o psicólogo social Jonathan Haidt publicou a obra A Mente Justa: Porque as Pessoas Boas não se Entendem sobre Política e Religião. Esta obra é fundamental porque nos ajuda a compreender um dos dramas que assolam os países ocidentais, cujas democracias se estruturam, ainda hoje, pela dicotomia esquerda–direita. Haidt defende que as opções pela esquerda e pela direita não se devem a decisões de carácter racional, mas são o resultado de intuições morais profundas, que depois são racionalizadas, isto é, justificadas por argumentos. De forma mais simples: ninguém é de esquerda ou de direita por ter escolhido sê-lo após um processo racional de deliberação. Primeiro é-se de direita ou de esquerda, e depois arranjam-se justificações argumentativas.

O que leva as pessoas, segundo o autor, a ser de direita ou de esquerda são intuições morais. A moralidade terá, no mínimo, seis fundamentos diferentes, que se organizam em pares de opostos: cuidado/dano, justiça/engano, lealdade/traição, autoridade/subversão, santidade/degradação e liberdade/opressão. São estes aspectos que, intuitivamente, as pessoas usam para fazerem juízos morais e para codificarem a sua posição política. As pessoas de esquerda baseiam a sua moralidade, fundamentalmente, nas ideias de Cuidado e de Justiça. As pessoas de direita apresentam um espectro moral mais alargado, onde a Lealdade, a Autoridade e a Santidade (certas coisas são consideradas sagradas e intocáveis) têm um papel preponderante. Pessoas de esquerda e de direita valorizam a Justiça e a Liberdade, mas interpretam-nas de modo diferente. As pessoas discordam politicamente porque preferem inconscientemente sabores morais diferentes.

As ideias de Haidt são úteis para pensar como devem agir as lideranças políticas. Uma possibilidade é concentrarem-se apenas nos fundamentos morais da sua tribo política: a esquerda valoriza o cuidado e a justiça igualitária; a direita, a lealdade ao grupo, a autoridade e a sacralidade de certas instituições. Este caminho conduz à polarização, a guerras culturais – que são, afinal, conflitos morais. Líderes responsáveis, de ambos os lados, devem procurar estabelecer pontes com quem tem gostos morais diferentes. Ser político é mais do que ser de esquerda ou de direita. É, sem negar a sua preferência de sabores morais, procurar laços com os outros, porque a política visa o bem comum. A democracia não é a vitória total de um lado e a derrota do outro, mas a alternância de sabores e o respeito por quem tem gostos diferentes. Ora sabe mais a sal, ora mais a pimenta. O essencial é a qualidade do alimento: a governação de uma comunidade que se pretende unida na diversidade.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Ilusões perigosas

Pat Steir - Abstraction, Belief, Desire (1981)

O artigo do Público sobre dois filmes - um relativo à vida de Mário Cesariny de Vasconcelos e outro à de Cruzeiro Seixas (ler aqui) - refere um sonho recorrente deste último. É um sonho em que tenta desculpar-se perante o pai e acrescenta que "não foi o filho que este desejava". Este confronto do indivíduo com o fantasma do desejo do pai tem o condão, aliás há muito sublinhado pela psicanálise, de tornar patente os limites da racionalidade dos indivíduos e da sua autonomia. A crença liberal de que nós somos indivíduos que agem livre e racionalmente pressupõe a total transparência, perante a nossa mente, dos actos e das decisões que reputamos como nossos. Na verdade, o indivíduo absolutamente livre e racional é uma ficção. A nossa racionalidade não é uma pura luz. Ela é habitada por sombras e fantasmas, como se aprende com Cruzeiro Seixas, os quais limitam a liberdade e, muitas vezes, subjugam o indivíduo a necessidades que não controla. Isto não serve para afirmar que o homem é destituído de racionalidade e de livre-arbítrio. Serve apenas para limitar as nossas ilusões narcísicas, ilusões perigosas, as quais sustentam crenças que, muitas vezes, nos tornam incapazes de perceber o outro e de agir sem qualquer resquício de piedade e respeito.

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Uma questão de fé

Jan Vermeer - The Allegory of Faith (1671-74)

Pego num livro de Nuno Júdice, O fruto da gramática, e logo no início do segundo poema leio: Desfio um rosário de conjunções / nos dedos da memória. E uma iluminação desce em mim e transporta-me para um longínquo passado, aquele em que – certamente, por inépcia minha – tentava decorar as conjunções recitando-as de enfiada, talvez distinguindo, mas a memória já não recupera esse aspecto, as coordenativas das subordinativas. Descobri, ao ler o poema de Júdice, que aquilo que eu fazia, há bem mais de quarenta anos, era rezar, rezar o rosário das conjunções, ou das preposições, ou dos advérbios. Os dedos da memória de que fala o poeta não são apenas os dedos que nos transportam para essa longínqua experiência. São também os dedos com que eu tentava prender em mim, na precária casa da memória, essas classes de palavras. Julgo que a escola, essa escola que me incitava a desfiar rosários gramaticais, uns atrás dos outros, nunca conseguiu fazer com que eu percebesse para que serviam essas estranhas palavras. Na verdade, para rezar tantos rosários era preciso ter fé, muita fé, e eu, já nesses dias, sofria de uma manifesta falta de fé.

domingo, 10 de julho de 2016

Estrutura cerebral e posição política

Giorgio de Chirico - The Child's Brain (1914)

(…) Um grupo de investigadores de Londres, liderados por Geraint Rees – e incluindo o actor Colin Firth – explorou a relação entre as ideologias políticas e o volume estrutural do cérebro. Isto é, exploraram a possibilidade de o cérebro dos liberais [esquerda] e dos conservadores [direita] diferir na sua estrutura física. (…) A equipa de investigadores observou que as imagens dos cérebros dos liberais mostravam mais massa cinzenta no córtex cingulado anterior, a região do cérebro conhecida por estar envolvida na detecção e resolução de conflitos cognitivos. As imagens dos cérebros dos conservadores mostravam mais massa cinzenta na amígdala, que está envolvida no processamento de emoções, incluindo medo e recompensa. (…) Pode ser que as diferenças na estrutura e na actividade do cérebro contribuam para a emergência de diferenças ideológicas – ou que a adopção de determinadas perspectivas ideológicas  condiciona a estrutura e as funções do cérebro ao longo do tempo. [John T. Jost (2016), “O cérebro e as ideologias”, in XXI (Revista da Fundação Francisco Manuel dos Santos), n.º 7, Jun-Dez 2016, p. 78]

A relação entre a estrutura do cérebro e a ideologia política, ao descobrir-se a existência de correlação entre a estrutura cerebral e a ideologia política, permite fazer uma interrogação muito mais essencial do que aquelas que se levantam nos estudos que, de forma sistemática, mostram que – estatisticamente, note-se – as pessoas de esquerda são mais inteligentes do que as de direita. Devido ao alto valor que, nas nossas sociedades, se atribui à inteligência lógico-abstracta, este tipo de estudos gera sempre indignação nas pessoas de direita, indignação que as levam a menosprezar esses estudos, como se eles lhe trouxessem notícias que não são capazes de suportar.

O estudo citado por John T. Jost – Professor de Psiciologia e Política na Universidade de Nova Iorque e Presidente da Sociedade Internacional de Psicologia Política – diz-nos que as pessoas de esquerda têm mais desenvolvida a área cerebral ligada à detecção e resolução de conflitos cognitivos (serão mais inteligentes se utilizarmos a linguagem comum), enquanto as pessoas de direita apresentam um maior desenvolvimento na área ligada às emoções. O interessante nisto tudo é a espécie humana ter evoluído desta forma. Parece que do ponto de vista individual, não é grave, para a sobrevivência do indivíduo, ter uma estrutura mais desenvolvida ao nível da razão ou ao nível da emoção. Mas se olharmos para o desenvolvimento das sociedades democráticas, onde, com flutuações sempre pontuais, há um certo equilíbrio de forças entre esquerda e direita, percebemos que aquilo que é válido para o indivíduo pode não o ser para a sociedade.


Estas parecem precisar da tensão entre a inteligência racional e o domínio das emoções. Aquilo que aos olhos do cidadão comum parece ser uma luta dilacerante pelo poder surge, desde modo, como um ardil da própria natureza com vista a adaptação da espécie humana à realidade envolvente. Os indivíduos estão convencidos que seguem as suas próprias inclinações e perseguem aquilo que, aos seus olhos, é o bem para a comunidade. Ao olharmos para estudos como aquele que o professor Jost cita, descobrimos uma outra coisa. Descobrimos a necessidade da tensão entre direita e esquerda, entre o domínio da razão e o da emoção. O corolário político parece óbvio: o importante não é a vitória absoluta de um dos lados, mas o equilíbrio que resulta da ilusão de cada um dos lados estar do lado da verdade e do bem. No fundo, voltamos ao velho Aristóteles e à virtude do meio termo.

domingo, 19 de junho de 2016

Da eterna imaturidade

Mary Cassatt - Two Children at the Seashore (1884)

Sólon, Sólon, vós, os Gregos, sois sempre crianças; um Grego não pode ser velho. (Platão, 22 b)

A espécie humana tem o condão de nunca deixar de me surpreender. A fonte da surpresa nem sequer é a maldade. A origem reside na tendência de muitos adultos – adultos biológicos – se manterem numa fase de imaturidade que os assemelha a crianças na primeira infância. Tudo gira em torno das suas pessoas. Sonham com malfeitorias e desconsiderações que os outros tecem no recôndito da alma ou em obscuros lugares de poder. Tudo para as afectar, claro. São vítimas de uma conspiração, ora universal, ora particular. Então, uns propõem-se fazer umas maldades ou dizer umas maledicências pelas costas, outros prendem o burro, arrastando um doloroso amuo pela face mundo.

Este problema, para além de diminuir a qualidade da vida comunitária, é um indicador seguro de que os processos de maturação consolidados são muito mais raros na espécie humana. O sacerdote egípcio, no Timeu, dirigia-se a Sólon para acusar os gregos de serem eternas crianças. Evitou generalizar, mas se o fizesse não cairia, por certo, numa generalização precipitada. De facto, a pobreza da vida espiritual dos homens, a crença no ego e na importância deste, o centramento em si, tudo isto contribui para que muitos adultos, muitas vezes de provecta idade, se comportem perante o mundo e os outros como crianças. A maturidade nasce de uma capacidade que tem poucos cultores. Saber rir-se de si, saber quão risível se é e estar disponível para ser aquilo que se é, isto é, nada. A imaturidade, a eterna imaturidade, nasce da crença de que se é alguém, quando na verdade somos, como diz o Romeiro no Frei Luís de Sousa, ninguém.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Distância e harmonia

Henri Matisse - Armonía en rojo (1908)

A espécie humana é, muitas vezes, para além de previsível, muito cansativa. Aliás, uma coisa está ligada à outra. Cansa de tão previsível. Se imagina que tem de quebrar uma rotina, age em massa na defesa da repetição, do eterno retorno do mesmo. E torna-se uma ameaça. Na verdade, só há uma maneira de viver em harmonia com os seres humanos. Frequentá-los o menos possível. Αἰδώς (Aidos) era a deusa grega da vergonha, da modéstia e da humildade. Αἰδώς era também uma virtude essencial para a comunidade política. Costumo interpretar esta virtude como o exercício da justa distância, pois tanto a vergonha como a modéstia e a humildade trazem consigo um certo distanciamento do outro e da massa dos outros. É este distanciamento que nos permite viver em harmonia.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Uma abertura

Antón van Dyck - The Mystic Marriage of Saint Catherine (1618-20)

Pensa-se que o misticismo é um mistério pelo qual entramos num outro mundo; mas ele é apenas, ou mesmo, o mistério de viver de modo diferente no nosso próprio mundo. (Robert Musil, O Homem Sem Qualidades III, p. 212)

Ulrich, personagem principal do romance de Musil, em conversa com a irmã, sublinha o traço central daquilo que é visto como experiência mística. Não se trata de uma fuga ao mundo, tão pouco será a invenção de um mundo imaginário para onde os místicos se transportariam. A ligação entre mística e religião contaminou a primeira com o imaginário da segunda, mas tudo parece ser mais simples e muito diferente. Em vez de uma transferência para o além, a experiência mística será uma sobre-atenção ao real, um exercício de ultrapassagem da visão rotineira e vulgar do mundo, uma ruptura com o hábito e, por isso tudo, uma abertura para o não visto, o não ouvido, o não sentido e - porque não? - para o não pensado. Em resumo, uma abertura para a realidade.

domingo, 10 de janeiro de 2016

O bem que quero e o mal que faço

Edgar Jené - Sohn des Nordlichts (1949)


Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero, esse faço. (Paulo, Rom. 7:19)

Foi a psicanálise que tematizou a questão das feridas narcísicas. Com Copérnico - e a evolução posterior da astronomia - o homem descobriu que não está - nem é - o centro do universo. Darwin, por seu lado, torna claro que nenhum estatuto especial cabe ao ser humano, o qual é, como todos os outros seres vivos, o fruto da evolução das espécies. Por fim, a psicanálise sublinha que o homem nem sequer de si mesmo é senhor, que as suas razões, que parecem claras e transparentes, são, na verdade, obscuras, motivadas pelo inconsciente, que ele não controla ou sequer conhece.

Esta última ferida no narcisismo humano, a mais decisiva para a psicanálise, era já muito clara para Paulo de Tarso. A dilaceração da vontade, entre o bem que quer e o mal que pratica (induzida pela carne, que se pode aproximar do inconsciente freudiano), é a medida da nossa própria natureza. A fragilidade da nossa vontade é o sintoma e a prova da nossa finitude. A consciência dessa finitude deve, deste modo, cair sobre todas as nossas palavras e acções (e aqui há que seguir a lição de Austin e Searle: falar ainda é uma forma de agir), lançando sobre elas uma desconfiança generalizada. Quando, cheios de boa vontade, queremos derramar sobre o mundo palavras e acções boas, não será o mal (o interesse egoísta), que habita no nosso inconsciente ou na nossa carne, que estamos a espalhar? Que queremos, na verdade, espalhar?

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Uma estranha nostalgia de Natal

Jorge Carreira Maia - Black & White Dreams (2014)

A minha crónica de hoje no Jornal Torrejano online.

A noite de Natal aproxima-se velozmente. E essa aproximação traz-me uma angústia e uma estranha nostalgia. A angústia é fácil de explicar e reside nos presentes que me faltam comprar. A nostalgia, essa é bem mais difícil de elucidar. Poder-se-á formular do seguinte modo: é nostalgia de um tempo em que não havia presentes pelo Natal. Ora a estranheza dessa nostalgia reside no facto de nunca ter vivido um Natal sem presentes e, portanto, não poder ter uma memória saudosa do que nunca vivi.

É evidente que a troca de presentes é um acontecimento agradável. Há até mais prazer em dar do que em receber. Além do mais, o comércio do Natal tem um efeito benéfico na economia e assegura trabalho a muita gente, e nos dias que correm haver trabalho é um bem escasso que não devemos malbaratar. Toda esta civilidade associada ao Natal, contudo, não tem o poder de dissolver a nostalgia que toma conta do meu espírito.

Efectivamente, o Natal é o momento onde o mundo cristão revive o nascimento despojado de Jesus Cristo. Um nascimento marcado pela pobreza das coisas materiais, pelas difíceis condições físicas onde se dá o nascimento do Filho de Deus, marcado pelo rigor climatérico que, na nossa imaginação, sempre associamos ao presépio de Belém. Tudo no acontecimento apela à contenção, à austeridade, ao exercício de uma ascese onde o homem se liberte do peso da materialidade.

A nostalgia nasce dessa ânsia de despojamento e de abandono. Nostalgia daquilo que não se viveu, mas que, no fundo de muitos seres humanos, continua a clamar, como uma voz que clama no deserto. Imagino então um Natal frio, sem presentes, apenas um encontro de família, no qual, sem a exterioridade trazida pelo comércio, cada um se descobre nos laços mais íntimos e mais autênticos, se descobre como alguém que  também nasceu naquele lugar frio e despojado que é a gruta de Belém. Um Natal como um momento de descoberta e de abandono de si. Na verdade, uma estranha nostalgia de Natal.

domingo, 8 de novembro de 2015

Uma iluminação de domingo

Roberto Matta - Disasters of Mysticism (1942)

Por vezes retiro do acaso uma luz especial que me ilumina, que me deixa ver a causa maior do desastre que eu sou. Poderia argumentar – e não me faltariam excelentes e abundantes argumentos – que todos nós, desde os que vivem uma vida no subterrâneo da existência até aos que ocupam o mais glorioso lugar, seja no mundo ou nos altares, somos um desastre. Mas com o desastre dos outros posso eu bem. Estava eu a meditar por que razão as tardes destes domingos de outono soalheiros, cujo meio-dia é tão promissor, são tão propensas à irrealidade da angústia e da melancolia quando, por um súbito impulso, abro o blogue de Francisco Louçã, no Público, e leio, para parecer um homem preocupado com os nossos sarilhos quotidianos, o post Tudo depende da perspectiva. Não me interessa, para aqui, o conteúdo do texto. O leitor, se interessado, é só clicar no link e ler.

Fiquei siderado quando li: tudo se podia resumir assim: os factos são os factos, mas tudo depende sempre da perspectiva. Não se pense que aquilo que me iluminou foi a combinação de um realismo que crê na realidade dos factos e da humildade de um perspectivismo que confessa a existência de infinitas perspectivas sobre essa realidade factual. Não. O que me raptou da melancolia do crepúsculo dominical foi a afirmação os factos são os factos. Está aí a chave do meu desastre singular, do sem sentido de toda a minha existência. Por muito que me esforce, falta-me este sentido de realidade que, com uma humildade perspectivística, é confessado por Louçã.

No fundo de mim, reconheço-o e confesso-o contrito, nunca acreditei que os factos são os factos. Dito de outra maneira, nunca houve em mim uma réstia de realismo. Sempre pensei – ou, para ser mais exacto, há muito que o penso – que os factos não passam de meras interpretações que unificam e sintetizam o heteróclito da experiência, mas que, na verdade, não existe essa coisa última a que todos nós, se movidos pelo sadio bom senso, chamamos factos. É evidente para mim, nesta hora sombria que antecede a noite de domingo, que não acreditar na existência de factos, não acreditar nessa coisa que é a realidade, não poderia trazer-me nada de bom e que, por isso, a minha vida, por decreto dos deuses da factualidade, não poderia ser outra coisa senão um grande desastre, o qual só é poupado aos homens bons que acreditam na existência de factos. Fez-se noite.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Insónia

Remedios Varo - Insónia I (1947)

Na insónia, descobre-se a estranha e radical alteridade do corpo. O espírito e a vontade ordenam o sono, mas o corpo em tumulto invade o pensamento e gera rios de pensamentos que parecem não ter fim. São pensamentos insones, pensamentos não pensados, mas impostos pelo devir heraclitiano dos humores corporais. O corpo rola na cama, mas a cabeça não pára no atafulhamento que o corpo, esse grande inimigo dos ascetas, lhe impõe. A insónia vem, por norma, devagar, instala-se como quem não quer a coisa, sugere temas a merecer meditação ou urgente e clara resolução. Aqui já está tudo perdido e ao insone resta-lhe abdicar da sua vontade, agora manifesta em toda a fragilidade, levantar-se e espreitar a noite que corre decidida para a manhã. Na insónia, descubro-me como dois e ao levantar-me confesso a minha incapacidade de soldar com firmeza essas partes de mim. (averomundo, 2008/03/10)

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

E pluribus unum

Albert Rafols Casamada - La emoción y la razón (1965)

A propósito da vitória do Benfica, ontem em Madrid, recupero, adaptando, um texto antigo, a propósito dos 100 anos do SLB, sobre a paixão do futebol, a minha paixão, entenda-se.

Devido à influência da filosofia e das ciências, o uso da razão encontrou, nas sociedades modernas, uma hipervalorização. Mas a razão é uma luz que se enraíza no que há de mais obscuro no ser humano. Esse lado sombrio, esquivo à investigação, fugidio à claridade, manifesta-se nas múltiplas paixões dos homens: sejam as eróticas, sejam as da violência e do poder, sejam as do gregarismo e da pertença à comunidade. É deste lado umbroso que vou falar ao falar dos cem anos de fundação do Benfica, do meu clube do coração. Não por acaso emprego a palavra coração. Ninguém é adepto de um clube por um acto racional, por um cálculo utilitário, por uma razão ética. Ser-se do Benfica, do Porto ou do Sporting não está nas nossas mãos, fomos escolhidos mais do que escolhemos.

Das múltiplas paixões que me acometeram, a do Benfica é a mais persistente. Desde que me conheço que me sei “encarnado”. Posso traçar uma arqueologia dessa pertença, posso reconhecer a influência de meu pai, recordar a memória de meus tios também benfiquistas, apontar ainda o facto de ter crescido nos anos sessenta, nos anos gloriosos do clube. Posso racionalizar razões de pertença e dizer o prazer de fazer parte de um clube que combina uma forte raiz popular com um toque aristocrático dado pelo Dr. António Borges Coutinho, posso acentuar o prazer de não pertencer à família possidónia dos lagartos, etc., etc. Tudo isso é verdade, mas nada explica uma paixão, nada esclarece a alegria por um golo que é marcado ou a decepção por uma derrota.

As sociedades modernas racionalizaram os modos de vida e burocratizaram o mundo, mataram Deus e a vida comunitária, aniquilaram os símbolos e a festividade espontânea das sociedades tradicionais. Ora o futebol vem preencher esse lugar vago. Ele dá-nos sentimento de pertença e de partilha de valores, substitui a razão pelas emoções. Onde o homem moderno propõe argumentos, o futebol devolve-nos símbolos e uma festa garrida onde a cor dos clubes se combina com os sentimentos da alma. O futebol mostra-nos o outro lado de nós mesmos, mostra-nos que as nossas razões se erguem sobre paixões sem fim. Não há nada fazer! Resta apenas a esperança que amanhã sejamos campeões. Para quê? Para nada e para tudo, para que o coração se alegre e a vida tenha um momento de festa antes que o fulgor da morte sobre ela se abata. E isto é uma aspiração de todos ou como diz, em tradução livre, a divisa do Benfica: De todos e de cada um (E pluribus unum) (Jornal Torrejano, Abril de 2004)

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Entre dois mundos

Yasuo Kuniyoshi - Between two worlds (1939)

É esta a nossa pobre condição: estar entre dois mundos. Entre o mundo da realidade e o mundo do desejo, ou, para usar uma linguagem freudiana, estar espartilhado entre o princípio da realidade e o princípio do prazer. Pode-se sempre fazer da realidade possível o objecto do desejo. Pode-se, se houver força para isso, tornar a realidade adequada ao desejo. O mais das vezes, porém, a vida não é senão um constante vai-vem entre dois mundos. Um vai-vem onde a energia se dissipa e o tempo se esvai.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Causar poucos danos

William Blake - Job´s evil dreams

E graças sejam dadas a Deus, Johnny - disse o Sr. Dedalus -, por termos vivido tanto e causado tão poucos danos. (James Joyce, Retrato do Artista Quando Jovem)

Esta frase de Joyce, há quarenta, trinta, vinte ou mesmo há dez anos, talvez não me  dissesse nada. Pelo menos não a retive. Agora, que a idade se acumulou perigosamente em cima de mim, faz todo o sentido. Não tanto pela ideia de ter vivido muito, mas por causa do mal. Quando se é novo, pretende-se distribuir o bem pelo universo. Uns pensam fazê-lo de forma mais abstracta, através da acção política, por exemplo; outros, de forma mais concreta através de práticas de solidariedade. Quando se chega a certa idade, o que se deseja, e não é por medo de uma condenação eterna, é ter feito pouco mal, ter causado poucos danos. E este desejo não é de fácil concretização, pois estar vivo traz sempre consigo um agir sobre os outros, e neste agir há, muitas vezes, um dano efectuado, um mal praticado. Quantas vezes irreflectidamente, quantas vezes irreversivelmente. Por isso, se percebe bem a acção de graças do pai de Stephen Dedalus por ter causado tão pouco dano. Mas terá ele causado assim tão pouco? O melhor será ler o romance de Joyce.

domingo, 23 de agosto de 2015

Estranha fotografia esta

Eduardo Gageiro - Álvaro Cunhal

Descobri esta fotografia de Álvaro Cunhal, atribuída a Eduardo Gageiro, no Aventar. Há dias que ela me assombra, como se nela houvesse alguma coisa de fantasmático. Melhor, como se nela estivesse inscrita uma incongruência. A fotografia, segundo notícia de o Sol, consta de uma Fotobiografia - que não conheço - de Álvaro Cunhal lançada pelas Edições Avante, julgo que pela altura do centésimo aniversário do nascimento do líder histórico dos comunistas portugueses. A fotografia é, ao mesmo tempo, fascinante e perturbante, como disse. Compreende-se a intenção dos editores: glorificar o antigo chefe e humanizá-lo. A foto faria parte deste processo de humanização, de torná-lo menos angelical e mais próximo do homem comum. A mensagem seria esta: Cunhal, apesar da sua superioridade política e moral, não deixava de ser um homem como os outros, até bowling jogava. Mas a fotografia atingirá esses objectivos. Melhor: se ela atinge esses objectivos, não trará danos irremediáveis?

Olho a foto e o que vejo é bem diferente de uma mera humanização da personagem. O impulso é para relacionar a experiência à ideia de inquietante estranheza (das Unheimliche). Não tanto porque daquilo que é familiar surja aquilo que aterroriza, mas porque dessa familiaridade com uma certa imagem de Álvaro Cunhal se solta, através da ritualização presente na foto, uma outra realidade, a qual contamina por completo o que, na vida política portuguesa, se consolidou como a presença pública do antigo dirigente comunista. Na foto está toda a seriedade que, na sociedade portuguesa e no combate político, caracterizou Cunhal. Esta seriedade, porém, está concentrada na irrelevância de um jogo de bowling, de um divertissement, tomando este o sentido dado por Pascal, de uma prática de esquiva à realidade. Em vez de uma suposta humanização glorificadora, a qual serviria para reforçar as opções políticas de Cunhal, a foto contamina a actividade e as opções que foram as suas. E contamina-as levando o espectador a questionar-se se elas não foram, em última análise e em analogia com a fotografia, um divertissement, o seu divertissement privado. A sua prática de esquiva à realidade do mundo. Estranha fotografia esta. Talvez Cunhal gostasse que ela nunca tivesse sido publicada. Talvez.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

O lugar onde não se tem lugar

Leonard Misonne - Winter (1935)

Os vinte e cinco homens acolheram a boa nova em silêncio; nem um só se benzeu, nenhum agradeceu, e ficaram todos ali, com um ar sério e como que entristecidos pelo pensamento de que tudo, neste mundo, até o sofrimento, tem um fim. (Anton Tchékhov, A Ilha de Sacalina)

É corrente a interrogação sobre os motivos que levam as pessoas a preferirem manter uma situação dolorosa no lugar de lhe pôr fim. Por exemplo, por que motivo as pessoas prolongam casamentos que se tornaram uma chaga viva ou, num outro âmbito, que razões levam os eleitorados a escolherem os partidos que, sistematicamente, lhes infligem dor e engano? O senso comum, muitas vezes travestido de psicologia ou de sociologia, abunda em explicações sobre estes comportamentos, centradas no medo da mudança ou no temor das consequências e dos actos de vingança. Tudo isto fará sentido. No entanto, há uma outra motivação, talvez mais funda e mais pertinente.

Pôr fim a uma situação, por dolorosa que ela seja pessoal ou socialmente, é confrontarmo-nos com o fim de tudo e, por reflexo especular, sermos obrigados a considerar a nossa própria finitude. A mudança não é uma ameaça por ser revolucionária ou trazer o desconhecido. Ela é sentida como uma ameaça porque nos traz o futuro. E o futuro, ao contrário do que os amantes do progresso propagandeiam, não é o tempo da felicidade nem da realização da esperança num qualquer paraíso nascido de uma utopia realizada. O futuro, para cada um de nós, é apenas e só uma única coisa: o tempo da nossa morte, a concretização da nossa finitude. No mais fundo do homem, por muito radioso que se lhe pinte o amanhã, ele sabe que esse amanhã é o lugar em que ele já não terá lugar.

terça-feira, 14 de abril de 2015

O dever é o dever

Giorgio de Chirico - El gran autómata (1925)

Há dias em que percebo melhor do que noutros a moral kantiana. Dias como os de hoje, em que estive a dar aulas das 9:25 às 18:15, só com uma hora de intervalo para almoço. Chega-se ao fim e está-se vazio. Este vazio transborda e inunda a relação com aquilo que fazemos. Depois de todas estas horas, tudo aquilo parece inútil e infantil. Tudo parece destituído de sentido, como se o decurso do quotidiano, preenchido com as suas múltiplas tarefas, escondesse sob o seu manto um enorme buraco negro, que suga as energias, que destrói o espírito, que aniquila a pessoa. Perguntas insidiosas surgem ao espírito. Para quê fazer tudo isto? Por que motivo se há-de levar a sério todas estas tarefas e rotinas? Por que razão devo ocultar a funda descrença na utilidade da acção sob o véu da convicção? E quando todas as razões, mesmo as mais utilitárias, desaparecem, Kant chega com a sua voz salvífica: porque esse é o teu dever.

Talvez a doutrina kantiana do dever seja uma estratégia para que nós façamos aquilo cujo sentido se erodiu ou, pior do que isso, surge à nossa consciência como um contra-senso. Recordo aqui o zelo germânico com que a Alemanha hitleriana liquidou judeus, ciganos, comunistas, estropiados, deficientes mentais. Muitos daqueles homens, estou convencido, achavam os seus actos repugnantes e sentiam, dentro de si, o pulsar da rejeição. No entanto, aquele era o seu dever, um dever tão forte que os levava a contrariar as suas inclinações humanitárias, o seu horror ao sangue e ao sofrimento. Sim, o dever pelo amor ao dever – essa terrível herança do professor de Konigsberg – é aquilo que, quando o vazio nos invade ou a consciência se revolta, sustenta a nossa acção. Ela perdeu o sentido, mas é objectivamente o nosso dever. O dever salva-me do desalento como salvou muitas consciências que, ao cometer atrocidades, o faziam apenas por amor ao dever. O problema é que esse amor condenou milhões à morte. E é nestes dias em que melhor entendo Kant, que mais perturbado fico. Há no mundo uma inexorabilidade que se nos impõe e que toma, dentro de nós, a forma imperativa do dever, a qual tanto me pode mandar ensinar alunos como matar outras pessoas.

quarta-feira, 1 de abril de 2015

A fortuna e a húbris

Julia Hidalgo Quejo - La Fortuna (1994)

Se nasceram num país ou numa época em que não só ninguém aparece para matar as vossas mulheres, os vossos filhos, mas em que ninguém aparece também para vos dizer que matem as mulheres e os filhos dos outros, dêem graças a Deus e vão em paz. Mas mantenham sempre presente no espírito esta ideia: talvez tenham tido mais sorte do que eu, mas nem por isso são melhores do que eu. Porque no momento em que tenham a arrogância de pensar sê-lo, aí começa o perigo. (Jonathan Littell, As Benevolentes)

Nos tempos que correm, motivados pelo excesso de abstracção e de racionalidade trazido pelo triunfo da modernidade, esquecemos, com demasiada facilidade, aquilo que os antigos tinham por essencial: a fortuna e a hýbris (desmedida). A nossa vida e os nossos empreendimentos dependem mais do que do planeamento racional do gestor, essa figura quase-divina da nossa pobre mitologia, da boa fortuna e da limitação da hýbris, da desmedida.

É isso que o narrador de As Benevolentes lembra ao leitor. Se este não cometeu excessos na guerra, isso não se deve à sua bondade pessoal, mas à boa fortuna que lhe concedeu um tempo e um lugar onde a guerra não se intrometeu. No entanto, a boa fortuna deve ser lida não como um simples acaso mas na sua conexão com a hýbris. A desmedida, a arrogância de exceder a sua medida, acabará por atrair a má fortuna.

Quando a filosofia deixa de nos ensinar estas coisas, a literatura está aí para as trazer à nossa memória. Tem ainda a vantagem de nos fornecer quadros de leitura da espúria realidade que nos cabe. Vejamos por exemplo a má fortuna que atingiu personagens como Sócrates, os Espírito Santo e outros do mesmo jaez. Quem poderá afirmar que foi apenas a má fortuna que ditou a sua queda? Em toda esta gente, que por momentos pareceu favorecida pelos deuses, a húbris não deixou de fazer o seu trabalho. Não, o planeamento racional e a atenção à gestão das coisas não bastam para levar o barco a bom porto. Os deuses são muito susceptíveis à desmedida dos mortais.

domingo, 8 de março de 2015

Da nostalgia da lentidão

Umberto Boccioni - A Futurist Evening in Milan (1911)

Talvez tivesse sido com o Futurismo que a humanidade ocidental celebrou de forma mais perspicaz a sua natureza moderna. Se a rejeição do passado, inerente à própria denominação do movimento, é um dos seus traços característicos, a sua dimensão profética derivou-lhe do culto da velocidade, da máquina e das grandes metrópoles. Aquilo que já era então visível tornou-se um destino consumado. Passado mais de um século do início do movimento, agora que a generalidade dos homens vivem em metrópoles desmedidas, que o dinheiro e a comunicação circulam à velocidade da luz, que os próprios corpos - homens e mercadorias - se deslocam, transportados por máquinas cada vez mais velozes, por que motivo olhamos para tudo isso de forma muito menos celebratória e uma estranha nostalgia se apodera da alma? Que nostalgia é essa? Não será a da ausência de máquinas, nem do passado que não vivemos. Não será sequer a nostalgia dos campos perante o horror da vida urbana. A nostalgia nasce de um desejo de lentidão. A velocidade cansa-nos e torna tudo mais superficial. Passamos pelas coisas e elas logo desaparecem. Abre-se assim, no fundo da alma, um vazio. É daí que nasce a nostalgia pela lentidão, e a crença que só ela - essa lentidão que o amor exige - pode preencher.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Um pensamento feliz

Francisco Bores - Felicidad (1955-58)

Li há pouco a estranha expressão “era um homem de pensamento feliz” e fiquei tomado por uma perplexidade tal que suspendi a leitura. O que naquela frase poderia causar-me tão grande perplexidade? Nunca me tinha ocorrido fundir pensamento e felicidade. Talvez o autor estivesse a usar uma expressão figurada e quisesse apenas dizer que se estava perante alguém cujo pensamento é oportuno, que possui perspicácia ao analisar uma situação ou ao propor uma solução. Alguém que pensa bem, em suma. Isso, porém, seria substituir uma avaliação técnica por um estado de alma pouco adequado à retórica da avaliação. O que me causa perplexidade é, de facto, essa conjugação entre pensamento e felicidade, a substituição da verdade enquanto virtude do pensamento pela felicidade.

Talvez hoje em dia exista um mercado para esse tipo de coisas, para um pensamento feliz ou para uma filosofia que promete felicidade, que vende bem-estar pela deglutição de algumas teorias filosóficas, devidamente expurgadas da malevolência que existe em todo o pensar. Tudo isto, contudo, é uma falsificação. Pensar é já uma confissão, a confissão de que se abandonou a busca da felicidade, para enfrentar o terrível que se esconde e que deve vir até nós sob o nome da verdade. Por que motivo a verdade que o pensamento nos revela sobre o mundo nos deveria fazer felizes? Não encontro qualquer motivo. Talvez a razão maior da minha perplexidade nasça de uma antiga convicção que nunca consegui abandonar: se deixasse de pensar conseguiria abrir a porta da felicidade.