Giorgio de Chirico - El gran autómata (1925)
Há dias em que percebo melhor do que noutros a moral kantiana. Dias
como os de hoje, em que estive a dar aulas das 9:25 às 18:15, só com uma hora
de intervalo para almoço. Chega-se ao fim e está-se vazio. Este vazio
transborda e inunda a relação com aquilo que fazemos. Depois de todas estas
horas, tudo aquilo parece inútil e infantil. Tudo parece destituído de sentido,
como se o decurso do quotidiano, preenchido com as suas múltiplas tarefas,
escondesse sob o seu manto um enorme buraco negro, que suga as energias, que
destrói o espírito, que aniquila a pessoa. Perguntas insidiosas surgem ao
espírito. Para quê fazer tudo isto? Por que motivo se há-de levar a sério todas
estas tarefas e rotinas? Por que razão devo ocultar a funda descrença na
utilidade da acção sob o véu da convicção? E quando todas as razões, mesmo as
mais utilitárias, desaparecem, Kant chega com a sua voz salvífica: porque esse
é o teu dever.
Talvez a doutrina kantiana do dever seja uma estratégia para que nós
façamos aquilo cujo sentido se erodiu ou, pior do que isso, surge à nossa
consciência como um contra-senso. Recordo aqui o zelo germânico com que a
Alemanha hitleriana liquidou judeus, ciganos, comunistas, estropiados,
deficientes mentais. Muitos daqueles homens, estou convencido, achavam os seus
actos repugnantes e sentiam, dentro de si, o pulsar da rejeição. No entanto,
aquele era o seu dever, um dever tão forte que os levava a contrariar as suas
inclinações humanitárias, o seu horror ao sangue e ao sofrimento. Sim, o dever
pelo amor ao dever – essa terrível herança do professor de Konigsberg – é aquilo
que, quando o vazio nos invade ou a consciência se revolta, sustenta a nossa
acção. Ela perdeu o sentido, mas é objectivamente o nosso dever. O dever
salva-me do desalento como salvou muitas consciências que, ao cometer
atrocidades, o faziam apenas por amor ao dever. O problema é que esse amor
condenou milhões à morte. E é nestes dias em que melhor entendo Kant, que mais
perturbado fico. Há no mundo uma inexorabilidade que se nos impõe e que toma,
dentro de nós, a forma imperativa do dever, a qual tanto me pode mandar ensinar
alunos como matar outras pessoas.
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