terça-feira, 21 de abril de 2015

A música e a farda


A história do "contabilista de Auschwitz", para além do seu desejo de expiação e do reconhecimento da verdade da shoah, é irrelevante. Um caso entre muitos outros, um caso não particularmente grave, perante muitos outros de gravidade extrema. Há, no entanto, no artigo do Público uma referência que gostaria de sublinhar: Fascinado pelas músicas e fardas, alistou-se nas SS. Isto que parece um pormenor não o é. Ninguém explicará o nazismo pela música ou pela farda militar ou para-militar. No entanto, o papel de ambas na adesão de milhões de alemães ao nazismo não é pequeno. Têm um papel fundamental na dissolução de uma certa ordem da razão e na sua substituição por uma outra ordem de carácter ritual e de aparência sagrada, neste caso de um sagrado negativo, diabólico.

A música dos movimentos revolucionários - e o nazismo foi um movimento revolucionário - tem sempre uma tonalidade dionisíaca, cuja finalidade é desagregar uma certa ordem racional e estabelecer uma comunhão entre os homens que, através dessa música dissolvente, se sentem irmanados. A música - certo tipo de música - tem esse poder de estabelecer fraternidades nos lugares onde existia separação, hierarquia, indiferença. Cantando, os alemães sentiam-se irmãos, sentiam a comunidade que os unia para além da diferenciação que a vida social gera. Dito de outra maneira, a cantar os alemães passaram da sociedade (gesellschaft) para a comunidade (gemeinschaft). Este espírito comunitário, nascido do fascínio dionisíaco trazido pela música, para não degenerar num caos, necessita de uma nova ordem.

A nova ordem é trazida pelo outro fascínio, o das fardas. A farda remete para a dimensão ritualística e hierática da vida. Dissolvida a ordem racional, o caos é reorganizado segundo os rituais militares e militantes. Todos os movimentos revolucionários - de direita ou de esquerda - têm esta atracção pelas fardas, pelas organizações ritualísticas ligadas à violência e à mobilização das pessoas para a acção. Veja-se, num caso com coloração política oposta, na China maoísta, a transformação do vestuário quotidiano num fardamento universal. A farda consagra a fraternidade daqueles que a vestem e, ao mesmo tempo, simboliza uma comunidade mobilizada para um fim por todos partilhado. A música gera o mito revolucionário na consciência e no coração do indivíduo, a farda implica o ritual que dá vida ao mito. E é assim, cantando e marchando fardados, que os homens dissolvem a consciência que os poderia inibir de matar milhões de homens apenas porque pertencem a outro grupo étnico, ou a outra classe social, ou a outra religião.

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