María Anunciación González Muñoz - Pudor (1986)
O pudor é uma das noções-chave
dos tempos modernos, época individualista que, hoje, imperceptivelmente, se
afasta de nós; pudor: reacção epidérmica de defendermos a nossa vida privada;
de insistirmos em que uma carta dirigida a A não seja lida por B. (Milan
Kundera (1994). Os Testamentos
Traídos. Edições Asa, pp. 235)
A edição francesa de Os Testamentos Traídos, de Kundera, é de 1993. Há, nesta citação, uma palavra fatal:
imperceptivelmente. Já nesses dias a época individualista, isto é, a
modernidade, se afastava de nós. Como? Imperceptivelmente. Como um ladrão
sorrateiro abandona a casa, deixando-a mais pobre. Este afastamento é então uma
pauperização. Aquilo que nos é roubado é o pudor. Mas o pudor é lido como a
reacção epidérmica de defendermos a nossa vida privada. Passaram 22 anos, a
impudicícia cresceu, alastrou, a vida privada é agora exposta à publicidade.
Não há carta que não possa ser lida, não há conversa que não possa ser
escutada, não há passo que não se dê sob vigilância. Imperceptivelmente,
instalou-se, no lugar dos tempos modernos, a pós-modernidade.
A pós-modernidade não é o lugar do indivíduo, da sua expressão
exaltada, colorida pela cultura das emoções e dos afectos, dos quais haveria
agora a liberdade de os tornar públicos; teriam ganho, diz-se, direito de
cidadania, lugar na esfera pública. A pós-modernidade é a época de dissolução
do indivíduo. Sobre ele caiu o manto da vigilância global. O mundo tornou-se no
panóptico de Bentham. Não foi o medo que trouxe esta nova figura do mundo. O
terror, o 11 de Setembro, apenas tornou claro um processo que já estava em
curso, imperceptivelmente. (averomundo,
07/07/07)
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