Julia Hidalgo Quejo - La Fortuna (1994)
Se nasceram num país ou numa
época em que não só ninguém aparece para matar as vossas mulheres, os vossos
filhos, mas em que ninguém aparece também para vos dizer que matem as mulheres
e os filhos dos outros, dêem graças a Deus e vão em paz. Mas mantenham sempre
presente no espírito esta ideia: talvez tenham tido mais sorte do que eu, mas
nem por isso são melhores do que eu. Porque no momento em que tenham a
arrogância de pensar sê-lo, aí começa o perigo. (Jonathan Littell, As Benevolentes)
Nos tempos que correm, motivados pelo excesso de abstracção e de
racionalidade trazido pelo triunfo da modernidade, esquecemos, com demasiada
facilidade, aquilo que os antigos tinham por essencial: a fortuna e a hýbris
(desmedida). A nossa vida e os nossos empreendimentos dependem mais do que do planeamento
racional do gestor, essa figura quase-divina da nossa pobre mitologia, da boa
fortuna e da limitação da hýbris, da desmedida.
É isso que o narrador de As
Benevolentes lembra ao leitor. Se este não cometeu excessos na guerra, isso
não se deve à sua bondade pessoal, mas à boa fortuna que lhe concedeu um tempo
e um lugar onde a guerra não se intrometeu. No entanto, a boa fortuna deve ser
lida não como um simples acaso mas na sua conexão com a hýbris. A desmedida, a
arrogância de exceder a sua medida, acabará por atrair a má fortuna.
Quando a filosofia deixa de nos ensinar estas coisas, a literatura
está aí para as trazer à nossa memória. Tem ainda a vantagem de nos fornecer
quadros de leitura da espúria realidade que nos cabe. Vejamos por exemplo a má fortuna que atingiu
personagens como Sócrates, os Espírito Santo e outros do mesmo jaez. Quem
poderá afirmar que foi apenas a má fortuna que ditou a sua queda? Em toda esta
gente, que por momentos pareceu favorecida pelos deuses, a húbris não deixou de
fazer o seu trabalho. Não, o planeamento racional e a atenção à gestão das
coisas não bastam para levar o barco a bom porto. Os deuses são muito
susceptíveis à desmedida dos mortais.
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