Rodney Smith, Samuel from Behind, 1997 |
quarta-feira, 31 de março de 2021
Beatitudes (44) Solipsismo
terça-feira, 30 de março de 2021
O tempo do desejo e o da pandemia
Oscar Dominguez, Quelques mouvements du désir, 1937 |
Mais uma vez se comprova que os países ocidentais deixaram de ter – se alguma vez a tiveram – disponível a disciplina de grupo como arma para enfrentar perigos colectivos, como é esta pandemia. Há uma enorme discrepância entre o tempo do desejo e o tempo da pandemia. O desejo surge perante a vontade como um imperativo que se quer realizar o mais rapidamente possível. O desejo de conviver com os outros e o desejo de voltar ao modo de vida anterior são investidos por uma grande urgência. O tempo do combate à pandemia – apesar da aceleração que tem tido – é muito mais lento. À urgência do desejo contrapõe-se a lentidão daquilo que permitiria criar condições seguras para a consumação do desejo.
O caso é agravado porque, numa sociedade de mercado, a competência de diferir a realização dos seus desejos é constantemente dinamitada pela própria sociedade. A necessidade de que os produtos sejam rapidamente consumidos, para que novos entrem no mercado, é uma forma de intensificar até ao paroxismo o desejo humano. O ideal da sociedade em que vivemos é que todos os desejos sejam consumados instantaneamente, mal emirjam a situação da sua não consumação torna-se insustentável. O mercado – e todos nós fazemos parte do mercado e dependemos dele – exige que assim seja. Percebe-se por que razão estão as autoridades americanas assustadas. Temem não ter mãos nas máquinas desejantes em que todos nos tornámos.
segunda-feira, 29 de março de 2021
A Garrafa Vazia 54
domingo, 28 de março de 2021
Nocturnos 57
Greg Girard, Tokyo, Shinjuku, 1976 |
sábado, 27 de março de 2021
Alma Pátria 71: Mara Abrantes, Fecho a Janela
In illo tempore, a alma pátria deveria andar sempre cruelmente devastada. Não havia rua, viela ou beco onde um coração desfeito não sangrasse dolorosamente. Um rio de sangue motivado por amores desencontrados, desfeitos, atraiçoados, dir-se-ia, corria por Portugal de lés-a-lés. Mara Abrantes, uma brasileira chegada ao país em 1958, faz parte, sem qualquer favor, dessa alma pátria que era segregada pela rádio e, depois, pela televisão. O público gostava deste tipo de dramas amorosos com sabor a fado e, neste caso, temperados pela pronúncia, sempre agradável, do outro lado do Atlântico. A canção – um fado canção – foi editada em EP em 1970, tem por autores António José e Ferrer Trindade, cuja orquestra acompanha a cançonetista, como então se dizia.
sexta-feira, 26 de março de 2021
Simulacros e simulações (19)
Duane Michals, Andy Warhol, 1972 |
quinta-feira, 25 de março de 2021
Beatitudes (43) Meditação
Emilio Pettoruti, Meditazione, 1915 |
quarta-feira, 24 de março de 2021
A Garrafa Vazia 53
terça-feira, 23 de março de 2021
A força da sociedade civil
Fernand Léger, Soldier with a Pipe, 1916 |
segunda-feira, 22 de março de 2021
Nocturnos 56
Richard Peter, Under the lantern, Dresden, 1935 |
domingo, 21 de março de 2021
Simulacros e simulações (18)
Johan Hagemeyer, Fashion Shop, Hollywood, 1930 |
sábado, 20 de março de 2021
A arte do possível
Nunca deixam de espantar-me as intervenções na comunicação
social que, perante o confinamento, trazem sempre à colação as consequências
terríveis que isso trará. Há casos em que essas preocupações se percebem,
pessoas que são afectadas nos seus negócios ou empregos, às quais não se poderá
pedir imparcialidade na reacção às decisões necessárias para conter a pandemia.
Nos outros casos, porém, em que se apontam as terríveis desgraças que hão-de
cair sobre as pessoas por causa do confinamento, há qualquer coisa de patético.
É um facto que, por exemplo, o fecho das escolas tem consequências graves nas
aprendizagens e no desenvolvimento de competência sociais dos alunos. Haverá,
porém, uma solução exequível que permita combater a pandemia e evitar os
efeitos secundários desse combate?
A política implica fazer escolhas, hierarquizar prioridades, perceber que não se pode ter tudo. Alcançar um bem maior implica muitas vezes perder outros bens que, apesar de grandes, são menores. Nenhum governo – pelo menos num país democrático – gosta de confinar os cidadãos. Nenhum governo gosta de ver a economia retroceder, o desemprego aumentar, as empresas a falir, as receitas ficais a diminuir, os gastos a aumentar drasticamente, os seus cidadãos a ficarem mais doentes e com menos recursos para combater a doença. Os governos não escolheram governar em pandemia. Quando muitas associações, que deveriam ser razoáveis, vêm chamar a atenção para as consequências nefastas do confinamento e das restrições impostas e se esquecem de dizer que as consequências de não haver confinamento seriam muito piores, não só estão a desinformar a população, como acabam por ter um efeito negativo no combate ao inimigo principal.
Agora que começamos a desconfinar é tempo de dar atenção aos efeitos colaterais da guerra ao coronavírus. Contudo, é preciso ter em atenção que as sociabilidades tradicionais não podem ser restauradas e que muitas coisas terão de mudar, talvez durante muito mais tempo do que aquele que imaginamos. Teremos de inventar novas formas de convivência, porque a pandemia não está debelada, nem de perto nem de longe. Teremos de interiorizar outras regras comportamentais. E é nesta mudança de atitude que muitas daquelas entidades, que traçam cenários apocalípticos por causa do combate à pandemia, deviam estar empenhadas. As coisas não são como nós as desejamos. São como são e é a isso que há que responder em cada momento, estabelecendo períodos e escolhendo o mais importante. Não se pode ter sol na eira e chuva no nabal. A política é a arte do possível. O resto é lançar confusão.
sexta-feira, 19 de março de 2021
A Garrafa Vazia 52
quinta-feira, 18 de março de 2021
Simulacros e simulações (17)
Francis Picabia, Jardins de Saint-Cloud, 1909 |
quarta-feira, 17 de março de 2021
Uma doença difícil de controlar
Pierre Dubreuil, La Place de L’Opera, 1909 |
O sonho do Iluminismo de construir um mundo habitado por uma população plenamente ilustrada choca com barreiras que parecem inultrapassáveis. Talvez a superstição não seja apenas um problema de acesso à cultura e à educação, mas exista no homem uma disposição para habitar o mundo escorado nessa superstição, a qual muito dificilmente cede perante as evidências, perante aquilo que um dia se chamou a luz natural da razão. Diante de uma sugestão de perigo, logo os homens se abrigam no guarda-chuva das crenças irracionais. A irracionalidade é um vírus que, enquanto o homem for homem, não encontrará vacina eficaz para o erradicar. O mais que se poderá aspirar é torná-la uma doença crónica que se vai tentando controlar, sem grande expectativa que chegue o dia da cura.
terça-feira, 16 de março de 2021
Beatitudes (42) A bela ilusão
Rodney Smith, Anika on Bicycle, 1993 |
segunda-feira, 15 de março de 2021
Nocturnos 55
Todd Webb, Broadway at Wall Street, New York, 1959 |
domingo, 14 de março de 2021
A Garrafa Vazia 51
sábado, 13 de março de 2021
Alma Pátria 70: Trio Odemira, Menino de Oiro
sexta-feira, 12 de março de 2021
Começou o segundo mandato presidencial
Vicente Vela, ¡Desátame!, 1999 |
quinta-feira, 11 de março de 2021
Simulacros e simulações (16)
Ray K. Metzker, Valencia,1961 |
quarta-feira, 10 de março de 2021
Descrições fenomenológicas 65. No parque
Pier Luigi Lavagnino, Alberi, 1969 |
terça-feira, 9 de março de 2021
A Garrafa Vazia 50
segunda-feira, 8 de março de 2021
Nocturnos 54
Harry Callahan, Aix-en-Provence, 1957 |
domingo, 7 de março de 2021
Jeffrey Eugenides, Middlesex
Publicado em 2002, Middlesex, do norte-americano, de
origem greco-irlandesa, Jeffrey Eugenides, ganhou o Pulitzer de ficção no ano
de 2003. O romance é mercado por duas temáticas identitárias. Por um lado, ele
é situado na comunidade grega que emigrou para os Estados Unidos na sequência
da primeira guerra mundial e, fundamentalmente, dos conflitos entre gregos e
turcos. Não sendo apenas uma resposta à questão quem somos nós?, não
deixa de ser uma exploração da vida dessa comunidade, uma descrição dos seus
valores, tradições e modos de ser, assim como da forma como se vão integrando
na vida americana e alimentam o, e se alimentam do, american dream. É
neste pano de fundo comunitarista, que emerge uma outra interrogação, agora
sobre quem sou eu? O motivo da interrogação não é metafísico, mas
físico, uma deficiência no gene SRD5A2, que codifica a enzima 5-alpha reductase.
O resultado é o nascimento de um rapaz, embora com caracteres sexuais externos
femininos. É isto que acontece ao protagonista do romance. Calliope – nome que
recebeu de baptismo, enquanto rapariga – e Cal, nome que adaptou em adolescente
quando se descobriu como rapaz. É um caso de intersexualidade.
Algumas leituras da obra tendem a questionar a necessidade da primeira metade do romance, a sua inutilidade para a questão central que é o drama da adolescente que se descobre ser um adolescente. A primeira metade é a narrativa que traz os avós paternos de Cal de uma aldeia grega, mas em território turco, para os Estados Unidos, em 1922, durante a guerra greco-turca. É um fresco épico que vai até a 1960, ano em que nasce Calliope. A questão que se coloca é a de como narrar a acção à distância de um gene recessivo que vai acabar por se manifestar. O autor fá-lo contando a história de uma consanguinidade intensa, a qual se inscreve na história dos homens e das comunidades. Podemos imaginar uma história genética puramente natural nos animais. No homem, apesar de se poder traçar a história genética dos homens como se traça a de seres de outras espécies, ela, para lá do discurso científico, é incompreensível. O drama de Cal não é um drama proveniente de nenhures, mas inscreve-se na duração, e esta só inteligível através da narrativa. Por isso, Eugenides conta a história de Eleutherios Stephanides, conhecido como Lefty, e da sua irmã e mulher Desdémona Stephanides, os avós de Cal. Conta também a de Milton, filho do casal incestuoso, e de Tessie, os pais de Cal e do seu irmão Capítulo 11 (uma referência ao capítulo da lei das falências dos EUA e à propensão do irmão de Cal para levar os negócios a mau porto).
Uma história de sangue no sangue da história. Em Bithynios, uma aldeia na Ásia Menor habitada pela minoria grega e de onde vêm os antepassados de Cal, o casamento entre primos, considerado incestuoso, era uma prática corrente. Isto significa que a consanguinidade e uma maior concentração de traços genéticos já ocorriam antes do casamento incestuoso dos irmãos Lefty e Desdémona. O filho de ambos, Milton, pai de Cal, acaba por casar também com a filha de uma prima dos pais. Esta história de concentração genética não é pura história genética, mas está inscrita, no romance, na própria história, no sangue que a história, no seu papel de negar continuamente as configurações do mundo humano, faz correr. Os pais de Lefty e de Desdémona morrem vítimas da guerra entre turcos e gregos. Os filhos órfãos fogem para os EUA do momento em que se dá o grande incêndio de Esmirna, motivado pelo conflito greco-turco. Eugenides não deixa de dar uma visão, nas passagens referentes à fuga dos avós de Cal, do genocídio arménio. Se o autor, que dá uma tenção a esses conflitos muito localizados, passa muito por cima a segunda guerra mundial, torna a focar-se na histórica localizada, agora em Detroit, com os seus conflitos interétnicos, como os motins de 1967, mas também a emergência da Nação do Islão, ou as condições de trabalho nas fábricas de automóveis. Narra a ascensão e queda de Detroit. A história de uma desgraça genética precisa da história humana para ser contada, mas não uma história mundial. É sempre a história local, quase que se pode dizer paroquial, que é mobilizada. É sempre a história de comunidades muito precisas e caracterizadas no espaço e no tempo.
A segunda parte do romance foca-se em Calliope e a sua descoberta da realidade sexual que lhe coube em sorte. Está-se em meados dos anos setenta do século XX, ela entrara na adolescência, mas não lhe aparece nem a menstruação nem se lhe desenvolvem os seios, ao contrário do que acontece às suas colegas do colégio feminino que frequentava. A revelação deve-se a um acidente. A narrativa, a partir daqui, concentra-se no processo de reconhecimento da nova situação e na disputa interior do protagonista sobre a sua condição. Eugenides explora a tensão entre cultura e natureza na definição do género e parece questionar a ideia de que o género é uma construção fundamentalmente social. Cal cresceu e foi educado como rapariga e frequentou um colégio feminino. Toda a construção do género foi feita no feminino. No entanto, a sua primeira paixão pelo Objecto Obscuro (uma referência ao filme de Buñuel, O Obscuro Objecto do Desejo), uma colega do colégio, era tipicamente masculina, de acordo com a sua natureza masculina. Quando chega o momento de optar, opta de acordo com o sexo genético e não com o género social, mesmo estando desprovido externamente da genitália masculina.
Se o romance é uma resposta às questões quem somos nós? e quem sou eu?, essa resposta não se funda numa revolta contra a própria condição comunitária e pessoal. A comunidade grega de que Cal provém não deixou de ser uma comunidade grega, mas agora claramente integrada no modo de vida americano, estabelecendo pontes entre os preconceitos da cultura originária e os da cultura em que se integram. Uma imagem de integração do sonho americano. É verdade que a questão racial, mesmo no romance que a trata a partir da visão preconceituosa da comunidade grega, é uma nota dissonante dessa visão idílica de uma América integradora. É como se esta fosse acolhedora para aqueles que a procuram e têm a perspectiva adequada sobre o trabalho e a riqueza, mas fosse impiedosa para aqueles para ela foram levados contra a sua vontade, enquanto escravos. Os gregos que fugiram da Europa são agora plenamente americanos, apesar de ainda serem gregos. Também Cal, ao narrar a sua vida até à assunção da sua identidade masculina, se mostra reconciliado com a sua situação, tendo ultrapassado as inquietações psicológicas, nunca estando em causa outras. Não há qualquer questionamento metafísico e as abordagens da situação circulam entre o conhecimento científico de natureza genética e médica e a abordagem psicológica. Cal quando narra a sua história, quase trinta anos depois, mostra-se completamente reconciliado com a sua natureza. É plenamente homem, apesar daquilo que nele ainda subsiste de feminino. Middlesex não é um romance de revolta, mas de reconciliação.
sábado, 6 de março de 2021
Da bazuca à bazooka
Quando uma palavra utilizada no discurso político como
metáfora se torna um lugar comum, devemos desconfiar de que ela não quer dizer
rigorosamente nada. A vida social está cheia de palavras que são uma referência
ao vazio. Por exemplo, empreendedorismo. De tão utilizada como mezinha para
curar os males de que padece a vida económica, chegou ao ponto de não querer
dizer absolutamente nada, embora muita gente faça cursos de empreendedorismo,
dos quais, por norma, poucos ou nenhuns empreendedores resultam. A metáfora a
que me referia é, porém, bazuca. É aplicada aos fundos europeus gigantescos que
irão ser mobilizados para enfrentar os danos colaterais da pandemia. Como o
empreendedorismo seria a atitude que viria resolver o problema do emprego, a
bazuca será a salvação de economias debilitadas pelos confinamentos.
Uma bazuca é uma arma de guerra para fazer explodir alvos inimigos. Ora o alvo do dinheiro da União é, directa ou indirectamente, a economia. A ideia será fazê-la explodir? Imaginemos, todavia, que a bazuca se dirige contra uma recessão económica e a subsequente liturgia da austeridade. Não será a metáfora nem mais elegante nem a com maior poder descritivo. Apesar disso, ela não deixa de fazer salivar muita gente. E é esta salivação que me aborrece. Compreendo que a União Europeia tenha o dever de ter uma estratégia para os seus Estados membros. O sórdido da questão diz respeito à forma como em Portugal há muita gente habituada a viver à custa dos fundos europeus. Estes têm ajudada a disfarçar a nossa pobreza endémica e a bazuca irá, mais uma vez, mascarar essa indigência nacional.
Instalou-se uma cultura de desprezo pelo esforço e pela autonomia do país. Autonomia não significa voltar ao velho soberanismo nacionalista. Significa que através do nosso esforço cuidamos de nós. Os fundos da União Europeia – onde se incluem os da bazuca – deveriam ser entendidos como uma ajuda a que desenvolvêssemos a nossa autonomia, através de um esforço patriótico persistente, que dispensasse a necessidade de mais ajudas. Não parece ser esse o entendimento geral. A ideia parece ser a de vivermos de ajudas crónicas dos outros países. É por isso que a palavra bazuca faz salivar muita gente. São as novas especiarias da Índia, o novo ouro do Brasil. Quando era criança, também havia bazucas, eram umas pastilhas elásticas chamadas precisamente bazooka. Eram óptimas para fazer um balão enorme que rebentava e de lá apenas saía ar. Temo muito que a bazuca europeia, nas mãos nacionais, não passe de uma bazooka.
sexta-feira, 5 de março de 2021
Beatitudes (41) O fluir do rio
Édouard Boubat, Paris, 1962 |
quinta-feira, 4 de março de 2021
A Garrafa Vazia 49
quarta-feira, 3 de março de 2021
Simulacros e simulações (15)
Alfred Eisenstaed, Decorative multiple exposure of neon signs at night on Virginia Street in Reno, NV, “The Biggest Little City in the World”, 1937 |
terça-feira, 2 de março de 2021
Globalização e confinamento
É plausível pensar que a actual pandemia de COVID-19 revelou
a outra face da globalização mundial. Habituámo-nos nas últimas décadas a uma
aproximação entre povos e culturas, a uma partilha do espaço mundial por gente
de todas as paragens. Não apenas os capitais e as mercadorias se deslocam para qualquer
lado, como as pessoas se encontram permanentemente em viagem. O aeroporto
tornou-se um dos lugares simbólicos do mundo actual, povoado por gente de todas
as condições, pessoas que precisam de se deslocar rapidamente. Uns em trabalho,
outros em turismo. A implosão do Bloco de Leste, simbolizada na Queda do Muro
de Berlim, abriu caminho para que as fronteiras se tornassem muito mais
maleáveis.
O processo de globalização não foi e não é pacífico. Desencadeou reacções tanto ao nível social como político. Se se olhar para os conflitos ideológicos de hoje em dia, eles são muito menos económicos do que de natureza cultural e identitária. Culturas ameaçadas pela globalização geram reacções violentas de afirmação. Também nos países onde existe diversidade étnico-cultural, os conflitos identitários, fundados no ressentimento, cresceram, numa espécie de enclausuramento simbólico. Na Europa, a expansão da extrema-direita soberanista é também uma reacção política à globalização. Uma parte dos Europeus assustou-se com a alteridade que o novo mundo lhe trouxe e sonha com o retorno à segurança de um mundo que acabou. Contudo, estas reacções culturais e políticas à globalização são ainda formas de um processo de adaptação a essa mesma globalização e estão longe de constituir o seu reverso.
O reverso da globalização, descobrimo-lo no último ano, é o confinamento. O confinamento significa, de forma radical, o outro lado de tudo aquilo que vinha a suceder. Deslocações limitadas, a azáfama dos aeroportos drasticamente atingida, o turismo estilhaçado. Contudo, o mais importante não é isso, mas a imposição de ficar em casa. De ficar cingido ao domicílio. As pessoas passam da experiência de um mundo aberto à clausura do lar. Sempre que os números dos contágios sobem, fazemos a experiência, mesmo que mitigada pela simulacro do global que é a internet, da prisão domiciliária como forma de sobrevivência da espécie. Começamos agora a compreender a face oculta da globalização, aquela que ainda não tínhamos visto, mas que um ser microscópico teve o condão de revelar. O confinamento não foi uma coisa que aconteceu. Ele é o estado de sítio do mundo globalizado. A partir de agora é sempre uma possibilidade em aberto, a qualquer momento, pois esta pandemia parece ser apenas a primeira de outras cuja probabilidade é muito maior do que se pensa.
segunda-feira, 1 de março de 2021
Nocturnos 53
Gordon Parks, Alexander Calder’s hand, 1952 |