Brice Marden - Grove Group, I (1973)
Salazar. Esse nome, essas letras, quasi deixaram de pertencer a um homem
para significar o estado de espírito dum País, na sua ânsia de regeneração, na
sua aspiração legítima de uma política sem política, de uma política de
verdade. (António Ferro)
Para além do encómio ao professor Salazar, a citação de António
Ferro tem a virtude de manifestar um dos elementos estruturais dos estados autoritários, a política sem política. E a política sem política é assim tida
como a verdadeira política. O que significa a política sem política? Significa
a ausência de confronto entre perspectivas políticas adversariais, a negação da
concorrência pela ocupação do poder. A política sem política é aquela que
concentra o poder na mão de um homem, ou de um grupo, e que exclui todos os
outros.
A citação de António Ferro tem ainda uma outra virtude. Esta
política sem política mais do que uma imposição é uma aspiração da comunidade,
a qual legitima a ditadura e a exclusão da concorrência pelo exercício do
poder. Isto revela uma dificuldade dos portugueses: suportar a tensão que a
concorrência entre perspectivas diferentes impõe, suportar o conflito e a
contradição trazida pelo facto de se existir. E isto não desapareceu com o
regime democrático. Dois exemplos sintomáticos tornam claro que essa política
sem política continua a habitar o imaginário dos portugueses.
O primeiro exemplo provém de Cavaco Silva. Sempre tentou
mostrar-se para além da classe política, ser um político que não era político,
que tinha uma política sem política. E esta posição foi quase sempre acolhida
em delírio pelos portugueses que o tornaram o político mais vitorioso do regime
democrático. E não se pense que a posição de Cavaco Silva era meramente
estratégica. Não era. Ele acreditava nisso. Acreditava que havia só uma
política verdadeira e daí aquela ideia da necessidade de um grande acordo, pois
havendo um claro conhecimento da situação, facilmente se perceberia a solução
única a aplicar.
O segundo exemplo é a forma como as pessoas mais empenhadas
no debate político o encaram. Não o vêem como o exercício de posições
diferentes e meramente relativas sobre a governação. Pelo contrário, encaram-no
como a afirmação de verdades absolutas que, infelizmente, ainda não eliminaram
o contraditório e a possibilidade do outro ter um ponto de vista diferente. O
que se assiste, na verdade, não é a uma afirmação radical do pluralismo, mas ao
confronto de projectos que cada um deles, em última instância, visa instaurar a
política sem política.
Para acentuar a gravidade de tudo isto, a política sem
política corresponde, ao nível da economia, à livre concorrência sem
concorrência ou à inovação sem inovação. Corresponde ao nível das instituições
no recrutamento de quadros imparcial sem imparcialidade ou aos compromissos
sem compromisso. A política sem política, tão louvada por António Ferro, não é
mais do que o processo pelo qual nós portugueses nos tornamos ausentes de tudo
o que requer a nossa presença. É a forma como disfarçamos perante nós mesmos
esse terrível fardo de existirmos.
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