Gerardo Rueda - Verde (1961)
Era uma janela estreita. A guarnição de ferro acastanhado, talvez
oxidado, encaixava pedras de calcário, frustes, que serviam de batentes e travessas.
Duas dobradiças metálicas, pintadas de verde, articulavam a veneziana com a
parede. Aberta, deixava entrar a luz da manhã. Dali avistavam-se os campos e a
ordem que deles se desprendia. As propriedades variavam de acordo com a
dimensão das casas. Grandes lençóis de verde intercalavam-se com outros cor de
saibro, terras deixadas em pousio, imagens do ritmo dos campos, símbolos do
equilíbrio precário que alimenta estômagos e ateia imaginações. As casas,
embora diferentes em tamanho e forma, eram idênticas pela cor. Sem excepção, os
telhados de cor avermelhada encimavam paredes imaculadamente brancas, de um
alvor que fulgurava se o sol incidia sobre elas. Um pouco mais ao longe, num
pequeno promontório, vicejava, entre sombras e luz, uma aldeia adormecida,
inclinada para as terras de cultivo. No horizonte longínquo, adivinhava-se a
cinza escura das grandes montanhas recortadas num céu claro e luminoso. Sentada
à janela estava uma mulher, macerada pelos anos, enrugada por desgostos e
mistérios. O pescoço pregueado assentava nuns ombros encurvados. A idade, se a
tinha, era indecifrável. Um vestido longo, até aos pés, e de cor indefinida,
castanho ou púrpura, disfarçava-lhe as formas. As mangas deixavam ver um
antebraço delicado que se rematava num pulso estreito prolongado por mãos
magras e longos dedos. Os cabelos, da cor do vestido, estavam atados no alto da
cabeça. A luz banhava-a e aquecia-a. Nada do que se passava lá fora, contudo,
parecia interessá-la. A cabeça inclinava-se um pouco para a frente, para que os
olhos pudessem pousar no livro que segurava sobre as pernas. Observava. Os
olhos caíam no livro como aves de rapina sobre uma presa. Intensos, rápidos,
decididos. Depois, fechavam-se durante longos minutos, como se assim fosse
possível reter um sonho ou realizar um desejo, e tornavam a abrir-se, enquanto
ela, com uma energia insuspeitada, mudava de página. O livro não tinha
palavras, apenas imagens, que ela olhava interrogativamente, como se alguma
delas pudesse devolver a vida mortal e passageira que tinha sido retida, numa
promessa de eternidade, pelo disparar do fotógrafo. Um velho álbum de
fotografias de guerra. Campos de batalha, carros de combate, aldeias arrasadas,
terras incendiadas, soldados, muitos soldados, à deriva, gente anónima, de
olhos devastados, estropiada, marcada pela fome e pelo terror. Tocada pelo sol,
a mulher – que nome teria? – olhava em silêncio e imaginava o troar das
batalhas, o desespero dos homens, a desconsolada consolação que a morte talvez
lhes trouxesse. Havia páginas em que se demorava longamente, perscrutava-as com
um olhar de águia. Cada rosto era submetido a um longo inquérito. Depois
passava à seguinte e esperava. Esperava, no seu manso desespero, um milagre, a
descida de um deus que tocasse o álbum e fizesse o filho saltar daquelas páginas
para o seu colo seco e descarnado.
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