Paul Klee - Angelus Novus (1920)
Serenus Zeitblom, o narrador de Doutor Fausto, de Thomas Mann, quase no início do capítulo XXXIV,
faz uma reflexão sobre a grande guerra de 1914-1918. Diz ele, um filólogo
educado no mais estrito humanismo burguês, que tinha a sensação de ver o fim de uma era, que abrangia não só o século XIX,
senão recuava até ao término da Idade Média, à ruptura dos entraves
escolásticos, à emancipação do indivíduo, ao nascimento da liberdade.
Thomas Mann tinha claramente a percepção da profundidade histórica, do longo
braço da história. E este braço, cujos músculos nem sempre perdem vigor com o
passar do tempo, antes pelo contrário, tem, muitas vezes, uma importância
decisiva nos acontecimentos que nós vivemos no quotidiano e que a nossa
ignorância, pressa e desatenção apenas nos permitem perceber os contornos que daquilo que nos afecta no momento, das dores do presente.
As querelas políticas que animam – e felizmente o fazem – o debate
público na sociedade democrática, as opções dos vários quadrantes do jogo, as
próprias avaliações que se vão fazendo, tudo isso assenta numa cegueira
estrutural e numa desatenção à realidade mais funda que sustenta a vida vivida.
A acção política – esse tricotar da história com as agulhas da paixão e o fio
dos interesses – ocorre muitas vezes em terreno arenoso, pois, devido ao
fulgor da actualidade, ela raramente tem consciência do longo braço da
história, cuja força, sempre dissimulado, nos condiciona no presente. A ânsia
dos que disputam o poder bem como a fé dos acólitos e a razão dos críticos sofrem, por sistema, dessa
cegueira perante o apertado abraço com que a história envolve a actualidade.
Isto não significa que a consciência clara da existência de
grandes condicionantes nascidas na história redima os agentes políticos das más
opções ou que retire a glória que cabe às decisões benéficas para a comunidade.
Significa apenas que todos – os agentes políticos, os acólitos e os avaliadores
críticos da esfera pública – deverão ser um pouco mais cuidadosos no que
pretendem, no fervor ideológico na defesa da sua seita e na escolha dos
critérios com que se julgam homens e acções. A liberdade de acção, essa
possibilidade de escolher caminhos perante os problemas com que uma comunidade
se defronta, assenta as suas raízes num terreno, o passado, que, apesar da sua
representação poder ser manipulada, é muito menos maleável do que aquilo que se
gostaria. A cada momento e em cada decisão, quer o saibamos ou não, o longo
braço da história não deixa de nos envolver e apertar, condicionando e
limitando os nossos desejos e sonhos.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.