Júlio Pomar - Mário Soares (Presidente) (1992)
Em 1974 e 1975, eu não era propriamente um admirador do dr.
Mário Soares. Com a idiotice inerente à minha idade, com as ilusões sobre a
humanidade e o devir do mundo, com a profunda ignorância da política e da vida,
eu militava pela revolução socialista, arvorava a bandeira do esquerdismo radical. Julgava que o socialismo, mas aquele socialismo puro e duro e verdadeiro, seria não só o futuro como a salvação do
mundo. Não era nem uma coisa nem outra. De certa maneira, o dr. Mário Soares, a quem nunca
vi pessoalmente, salvou-me de mim mesmo, ao contribuir de forma decisiva para o
fim de um período onde essas ilusões
floresciam. E poderiam ter crescido de tal maneira – Kissinger chegou a
pensar que não seria mau que este pobre país se tornasse numa Albânia, para
servir de vacina – que era real a possibilidade de o destino fazer com que o meu desejo de então se tornasse realidade. Mário Soares é o principal
responsável – não o único, saliente-se – para que os meus sonhos de então, e os de uma parte
substancial dessa juventude um pouco tresloucada e ébria de liberdade dos anos 70, não se tivessem tornado num
enorme pesadelo, mesmo para aqueles que acalentavam
tais sonhos. Quando percebi isso, e não demorei muito tempo a perceber,
tornei-me um admirador de Soares.
Descobri, posteriormente, que a minha visão do mundo,
conforme a formação ia crescendo e consolidando-se, tinha muitos pontos
em comum com a do fundador do Partido Socialista. Em primeiro lugar, a questão da liberdade. Esta é a
questão decisiva. Não impor a ninguém as próprias crenças e não ser incomodado
por aquelas que se possui. Isto significa respeitar os outros, respeitar mesmo
aquilo que se considera profundamente errado, desde que esse erro não elimine a
liberdade e os direitos de terceiros. Este respeito é o fundamento da
tolerância. E a tolerância foi uma das principais virtudes de Mário Soares. Não
perseguiu as figuras do antigo regime, como não perseguiu, posto fim aos
devaneios de 74 e 75, aqueles a quem derrotou. Tentou – e na verdade conseguiu –
reconciliar os portugueses uns com os outros, mesmo que ele, Mário Soares, seja o bode expiatório onde uma franja, pequena mas activa, da população concentra o ódio, um ódio motivado ou pelo paraíso perdido ou pelo paraíso não conquistado. A sua eleição para Presidente da
República foi fundamental para esse fim. Se, por acaso, Freitas do Amaral tem
ganho, essa reconciliação teria sido impossível, não pelo carácter do fundador
do CDS, mas pela falta de reconhecimento político por uma parte do país. Soares
contribuiu não apenas para a liberdade, mas também para um clima de tolerância
que ainda hoje vigora.
Há um terceiro aspecto em que me aproximei, desde os anos 70, da visão de Mário
Soares. A necessidade do equilíbrio. As sociedades precisam de um certo
equilíbrio político e social. Foi a procura desse equilíbrio que levou Soares a
enfrentar, em 1975, a deriva esquerdizante da revolução. Foi esse equilíbrio
que procurou nas suas presidências. Foi a procura desse equilíbrio que o levou
a confrontar o anterior governo e o início da destruição do Estado social patrocinada
por Passos Coelho e Paulo Portas sob o véu da intervenção da troika. Nem sempre as sociedades podem
ser governadas pelo ideal do equilíbrio político e social, mas isso não
significa que não nos devamos bater até ao fim pela busca desse meio termo
aristotélico, onde se encontra aquilo a que os gregos chamavam a justa medida.
Mário Soares foi, para além de um lutador pela liberdade e pela tolerância, um combatente
pela justa medida, pelo equilíbrio, pelo reconhecimento de que todos devem ter
um lugar na sociedade. Foi com esta arquitectura que ele construiu o resto.
Errou? Claro, não era, e nem pretendia ser, um deus. Contudo, no que era essencial nunca se
enganou.
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