Francisco de Goya - Murio la verdad
Com a eleição de Donald Trump - o corolário de um conjunto de eleições em que os que estão fora do sistema político tradicional nele irrompem estrídulos e ameaçadores - tornou-se um lugar comum verberar esta época maldita em que reina a pós-verdade. O vozear e os ecos que lhe respondem, como acontece muitas vezes, acabam por lançar um véu sobre o problema e, dessa maneira, evitam que ele seja pensado e compreendido na sua efectiva natureza. Passa-se a usar a expressão, neste caso pós-verdade, não como um conceito que pense alguma coisa, mas como um mero chavão ou slogan. Literalmente, pós-verdade significa aquilo que vem depois da verdade. Não se trata da mentira, mas de um registo que está para além do jogo entre verdade e mentira na vida política.
Antes de mais e para desfazer equívocos, convém sublinhar que a verdade não é uma virtude política em si mesma. Ela diz respeito aos sistemas cognitivos e não aos sistemas de poder. A verdade é usada pelos políticos conforme ela os aproxima ou afasta do poder. Se dizer a verdade os afasta do poder, então eles não o fazem. Mentem ou omitem, em conformidade com aquilo que lhes for estrategicamente mais favorável. Isto não significa, contudo, que a política estivesse desde sempre inscrita numa dimensão da pós-verdade. A verdade se não era uma virtude política, era, muitas vezes, uma exigência ou dos súbditos, caso tivessem força para o exigir, ou dos cidadãos, como nas actuais democracias representativas.
Há no século XX experiências políticas que poderíamos ser levados a pensar como estando já na pós-verdade. Os regimes totalitários tinham esse aspecto. Retomo, mais uma vez, a referência ao romance de Thomas Mann, Doutor Fausto. O narrador, Serenus Zeitblom, a dada altura, na época posterior ao fim da primeira guerra mundial, nos tempos em que o nazismo começava a germinar, descreve reuniões de intelectuais onde, explicitamente, se torna claro que a ciência, a verdade e a justiça estão ultrapassadas intelectual e politicamente. No seu lugar estaria a vontade orgânica do povo e o mito, os quais haveriam de redimir os alemães e fazê-los cumprir o seu destino de dominadores do mundo. Repare-se que, nesta perspectiva que abriu caminho para o terror nazi e uma nova guerra mundial, o desprezo da verdade ainda era argumentado. Apresentavam-se razões delirantes, é verdade, mas ainda assim razões.
O que se passa hoje em dia não tem a ver nem com o habitual uso estratégico da verdade e da mentira por parte das elites políticas, nem, tão pouco, com a produção de uma mitologia nacional e étnica que substitua a justificação racional das decisões políticas por justificações mitológicas. Para compreendermos a ideia de pós-verdade, teremos de olhar para aquela que tem sido a forma de actuação política mais eficaz do presidente eleito dos EUA, o Twitter. Um tweet não oferece razões, mas exprime vontade, desejos, emoções ou sentimentos. Num tweet não há lugar para argumentos. Quando se usam argumentos é porque se considera necessário justificar opções. Essas precisam de ser confirmadas na sua verosimilhança através do uso da razão argumentativa.
Ao utilizar o tweet como instrumento de acção política fundamental, Donald Trump está a deslocar a acção política da esfera da justificação para a esfera da expressão. Já não se trata de argumentar para convencer um auditório. Trata-se antes de exprimir um sentimento que encontra uma reverberação, através de um processo de empatia, nas pessoas. A pós-verdade é a situação onde a razão argumentativa colapsou na vida política. Os eleitores - ou uma parte considerável deles - não quer saber de razões nem de argumentos, pois não está interessado em saber se aquilo que é dito se adequa à realidade. A retórica não os interessa. Querem a comunhão dos sentimentos e a identificação empática com o líder.
Note-se, porém, que não estamos, como aconteceu com o nazismo e o fascismo, perante a substituição da argumentação racional por uma mitologia que provenha da unidade orgânico de um povo. Estamos apenas na esfera do sentimento e do afecto, do encontro de um indivíduo com outros indivíduos, que estão perdidos num deserto social que eliminou a própria dimensão do povo. Indivíduos que fazem parte de uma massa que não se configura como povo. A pós-verdade de que se fala representa o triunfo do sentimento sobre a razão. Representa a derrota das estratégias filosóficas, científicas e retóricas perante a explosão expressiva de uma emoção, que se condensa num grito, que é isso o que é um tweet. Às pessoas não interessa se um grito é verdadeiro ou falso. Importa-lhes se esse grito se identifica com o grito que recalcam na zona mais sombria do coração.
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