Estes últimos dias, devido à morte de Mário Soares, foram
assombrados, como não o eram há muito, pela questão colonial com os episódios
da descolonização e das independências a serem relembrados. Como é hábito,
sempre que a questão colonial é levantada, uma parte daqueles que tiveram de
regressar de África toma o fundador do PS como bode expiatório da situação. Digo
bode expiatório porque, factualmente (embora quando se interpreta a realidade
através dos sentimentos os factos contem para muito pouco), a sua
responsabilização é delirante. Vale a pena, até porque muitos portugueses não
fazem a mínima ideia do que se está a falar quando se fala de colónias, de
guerra colonial, de retornados, de descolonização, etc., vale a pena, repito, sublinhar, por
isso, alguns pontos.
1. Em 1974, Portugal vivia em guerra há treze anos, um conflito onde os
soldados portugueses se tinham de distribuir por três frentes: Angola,
Moçambique e Guiné Bissau. O país estava completamente isolado na cena
internacional. O próprio Vaticano tinha uma posição desfavorável relativamente
às pretensões portuguesas. Não havia solução militar nem, tão pouco, uma solução
política disponível. A perspectiva da guerra se prolongar sem fim à vista era
real, embora a situação na Guiné Bissau estivesse praticamente perdida. Em
Moçambique e em Angola, a situação era menos dramática para o exército
português, mas uma guerra de guerrilhas, como a que existia, pode ser combatida
mas não ganha, ainda por cima quando os movimentos guerrilheiros têm
reconhecimento internacional e o apoio sistemático das grandes potências da
época, como era o caso.
2. O 25 de Abril foi feito por militares. Uma das suas
finalidades – a principal, diga-se – foi pôr termo à guerra. Dito de uma forma
clara, os oficiais que participaram no movimento não queriam continuar a
combater. Ainda por cima, os oficiais milicianos – aqueles que eram militares
por incorporação obrigatória, mas que não pertenciam à carreira militar – tinham
um grande peso e uma clara consciência, formada nas lutas universitárias, da
situação político-militar. Perceberam que a situação não tinha qualquer saída a
não ser o derrube do regime. Se alguém foi
responsável próximo da descolonização esse alguém é o Movimento das Forças
Armadas, isto é, os militares. Os políticos da oposição eram, claramente,
anti-coloniais, mas os militares nem sequer lhes pediram opinião. E os
militares envolvidos já vincaram isso múltiplas vezes. Foram eles que impuseram
a descolonização. Eram eles que, na verdade, tinham o poder. Uma coisa curiosa
na transformação de Mário Soares em bode expiatório é que os políticos da
direita na época não mexeram um dedo para defender uma solução diferente. Todos
eles ficaram aliviados com o fim da guerra e com o processo de descolonização
tal como correu.
3. Os portugueses que viviam na chamada metrópole
revoltaram-se contra os militares que fizeram o 25 de Abril? Não. Fizeram uma
grande festa, mas foi mesmo uma grande festa. Festa pela liberdade, mas,
fundamentalmente, porque perceberam de imediato que a guerra ia acabar. Os
portugueses que viviam em Portugal estavam cansados da guerra, estavam cansados
de ver os rapazes partir para combater e festejaram com exuberância a
aproximação do fim. Também é verdade que a generalidade dos rapazes que estavam
incorporados – e aqueles que sentiam o aproximar do tempo da incorporação –
sentiram um grande alívio. Também eles quiseram de todo o coração a
descolonização. A seguir aos oficiais revoltosos, os grandes responsáveis pela
descolonização são os portugueses. Não queriam ir combater ou não queriam ver
os filhos partir para combater. A generalidade dos portugueses não queria saber
das colónias para nada.
4. Dado o 25 de Abril, feito para pôr fim à guerra, dado o
facto que, de imediato, as tropas no terreno, na sua maioria, se recusaram a
continuar a combater e passaram mesmo a confraternizar com o inimigo, seria
possível uma solução diferente daquela que aconteceu? Podemos continuar a
especular até ao fim dos tempos, mas para qualquer outra solução – e não se
sabe lá muito bem qual seria – era preciso uma coisa, e essa coisa nunca é
claramente dita: era preciso que a guerra continuasse, que os nossos soldados
continuassem a partir para África e a morrer por lá. Isto é, era preciso que
tudo continuasse na mesma. Este facto é sempre ocultado nas diatribes contra a
descolonização. E é preciso ser muito claro nisto. Para que todas as pessoas
que tiveram de sair de África à pressa continuassem lá, era necessário continuar a
combater e a morrer em combate. Sejamos também claros: na chamada metrópole,
estavam todos fartos.
5. Há responsáveis políticos? Há mas não são aqueles a quem
são apontadas as culpas. No início das guerras coloniais, em princípio dos anos
sessenta do século passado, o Dr. Salazar já tinha informação suficiente para
perceber que os impérios coloniais tinham os dias contados. As grande potências
coloniais foram obrigadas a abandonar as suas colónias e reconhecer-lhes as
independências. Podia ter, naquele momento, tentado encontrar um caminho mais
negociado, uma transição mais tranquila. Ele percebeu, porém, que a guerra era
a forma dele próprio sobreviver, numa altura em que as ditaduras tinham passado
de moda e a Europa ocidental, com uma ou outra excepção, se democratizara, após
a segunda guerra mundial. Tinha também tido a experiência dolorosa de ver um generalizado apoio à candidatura de Humberto Delgado. Assim, Salazar preferiu a guerra e lançou uma ridícula
campanha ideológica, a qual certamente foi agradável para quem vivia nas
colónias portuguesas – então, províncias ultramarinas – e que, durante muito
tempo, foi recebida pacificamente pelos portugueses que viviam no continente.
Salazar e, depois, Caetano não quiseram enfrentar a realidade e conduziram o
país para uma guerra sem solução, a não ser aquela que aconteceu. E isso
prolongou-se de tal maneira que militares e cidadãos em geral se cansaram. Na
década de sessenta talvez fosse possível uma solução mais sensata, embora essa
solução teria de passar sempre por uma transição do poder para as maiorias
negras e para as suas elites incipientes. Culpar Soares, os políticos
democráticos, os militares de Abril pode consolar o ânimo – bodes expiatórios são
sempre consoladores –, mas tem pouco a ver com a realidade e esconde,
na verdade, a existência de pretensões insustentáveis, isto é, que a guerra
continuasse, que as pessoas fossem combater e morrer, por uma coisa que, na
verdade, lhes era completamente estranha.
Espero ainda escrever um outro post sobre dois aspectos
ligados à questão colonial. A boa integração dos portugueses provenientes das
ex-colónias e o papel positivo e dinâmico que tiveram no tecido social
português.
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